Florescer escrita por Bruninhazinha


Capítulo 8
O pedido da Noite


Notas iniciais do capítulo

Gente prometo ler e responder os comentários do capítulo passado depois. Peço perdão pela demora, estive com um bloqueio terrível, mas acabou saindo. Espero que gostem desse capítulo!



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O pedido da Noite

Os dias seguintes foram entediantes. Perséfone não fez muito mais do que ficar no quarto, deitada, com o corpo cansado. Ainda não tinha se acostumado totalmente com o peso espiritual, de forma que seus membros sempre pareciam pesados ao fim dos dias. Hades disse que logo se adaptaria, mas, sinceramente, ainda tinha dúvidas.

Estava na banheira, tentando relaxar, com os olhos fechados e a sensação da água quente sobre a pele. O vapor umedecia o rosto oval e os cachos foram presos em um coque no alto da cabeça. Não queria correr o risco de adoecer, por isso vinha evitando molhar o cabelo antes de dormir.

Os deuses tinham a vida eterna, mas isso nunca significou que estavam livres da morte. Todo cuidado era pouco, ainda mais em um local com clima tão peculiar.

O frio era constante, mas as coisas realmente pioravam no momento do jantar. As manhãs possuíam temperatura amena, que caía com o decorrer das horas.

Perséfone saiu do banheiro com passos largos, molhando o piso até o quarto. Abriu as gavetas do armário e escolheu um vestido com mangas. Ele era confortável e bonito, de tonalidade abacate, que serviu para contrastar sua pele bronzeada e os olhos. Soltou o cabelo e o penteou, sentada em frente ao tocador.

Suspirou pesadamente, perguntando-se se Hades viria busca-la para o jantar. Ela não o viu durante todo o dia, o que era, no mínimo, estranho, já que ele considerava as refeições como um momento quase sagrado.

De qualquer forma, ainda faltavam algumas horas até que a sala de jantar estivesse organizada. Até lá, ficaria no quarto fazendo absolutamente nada.

Perséfone odiava a monotonia. Ela se colocou de pé e caminhou pelo cômodo, inquieta, buscando nas gavetas algo que pudesse mantê-la entretida. Não encontrou.

Inconscientemente, seus olhos voltaram-se para a porta que levava ao corredor e uma ideia brilhou em sua mente, mas tratou de afasta-la. Seria imprudente de sua parte – e, se tinha algo que evitava desde o incidente com Cérbero, eram as imprudências. O próprio Hades alertou para que não zanzasse sozinha por aí.

Suspirou, outra vez, cansada e afundou na cama dossel, em meio os travesseiros, com o cabelo esparramado pelo colchão macio.

Estava com saudades de casa. Não se encontraria tão melancólica se, ao menos, estivesse entretida com algo. Quatro dias se passaram desde que chegou ao Submundo, quatro longos dias, e ela duvidava que fosse ser liberta tão cedo.

Ao escutar passos vindos do corredor, sentou e tratou de ajeitar o cabelo com a ponta dos dedos. Desamassou o vestido e, quando as batidas soaram, ela correu para atender.

Não era Hades. 

— Hypnos. — disse, não exatamente surpresa. O deus da tranquilidade foi quem a acompanhou para as refeições, mais cedo. — Boa noite.

— Boa noite, minha senhora. — ele sorriu pequeno, um sorriso educado e gentil. — Com todo respeito, está muito bonita. 

As bochechas dela formigaram diante do comentário. Não esperava por um elogio vindo de Hypnos, já que ele era sempre tão quieto.

— Você também.

— Agradeço. — respondeu, sincero, oferecendo o braço. — Vim busca-la para o jantar.

Ela aceitou, fechando a porta atrás de si, sendo arrastada pelos corredores.

— Sabe, — quebrou o silencio, recebendo a atenção do rapaz. — pode dizer ao Hades que já aprendi o caminho até a sala de jantar. Não há necessidade de me buscar sempre.

— Ah, mas ele faz questão de que alguém venha lhe fazer companhia. — respondeu, achando graça na observação da moça. — Quer ter certeza de que está bem.

— Compreendo.

Considerava a preocupação do deus dos mortos bem invulgar. Desde que chegou, todos os dias, quando possível, ele a buscava. Caso não o fizesse mandava alguém, geralmente Hypnos. Não estando ocupado, em alguns momentos, os dois conversavam. Os diálogos eram curtos, mas interessantes o suficiente para manter sua atenção. A todo momento indagava se ela precisava de algo, se estava bem, confortável ou o que desejava.

Tirando a falta do que fazer, sua estadia - poderia chamar assim? - estava boa demais para ser verdade. Não que estivesse reclamando. Só temia ficar mal-acostumada. 

— Falando nisso, — continuou. — o que aconteceu com o Hades? Não o vi hoje.

— Ele esteve muito ocupado com o trabalho. — não quis entrar em detalhes. — Embora não pareça, as coisas andam agitadas por aqui.

Ela resolveu não tocar no assunto.

Ao chegarem na sala de jantar, notou Nyx e Hécate sentadas à mesa, conversando amigavelmente como velhas conhecidas e a imagem deixou Perséfone com as sobrancelhas arqueadas. Desde que chegou, Hécate não demonstrou nada além de desprezo, sempre mantendo a expressão dura.

Foi inusitado vê-la expressar algo além da arrogância. Notou, curiosa, que as ametistas eram serenas, cheias de ternura e respeito, um sentimento direcionado apenas a deusa da noite – mas não durou muito tempo. Bastou as duas cruzarem o olhar para que Hécate incorporasse, outra vez, a mais pura superioridade, como se Perséfone não passasse de um inseto insignificante. Uma baratinha de nada, prestes a ser pisoteada por seu salto agulha. 

Embora tentasse, não entendia o porquê de tanto ódio gratuito. Não havia feito nada errado, tinha certeza disso!

Apenas a ignorou, sendo guiada por Hypnos até Nyx, que fez questão de se levantar para recebe-la com um abraço caloroso. Ela assentou-se ao lado da mãe de Hypnos, e ele de frente para elas, pondo-se a se servir com um pedaço do cordeiro. Tânatos apareceu mais tarde e acomodou ao lado de Perséfone, soltando gracejos engraçados para cima da moça só para deixa-la envergonhada, aproveitando que Hades não estava presente.

— Pare de perturbar a pobre menina! — a deusa da noite ralhou, fuzilando o filho com os olhos.

— Só estou brincando. — ele murmurou, entediado, colocando um pouco de salada no prato. — Você leva tudo muito a sério.

— Não é isso. — Hypnos se pronunciou pela primeira vez, segurando a taça de cristal entre os dedos. — Você é quem leva tudo na brincadeira. 

Tânatos praticamente rosnou, pensando em uma resposta, mas acabou não conseguindo formular nada, então afundou na cadeira, murmurando algo sobre o irmão ser um estraga prazeres.

A atmosfera era eufórica e o cheiro das iguarias preenchia o ambiente. A comida parecia deliciosa, e dava para perceber que os empregados se empenharam mesmo para manter tudo impecável. 

Eles terminaram o jantar após uma hora. Perséfone respirou profundamente, sentindo o estomago cheio e sono chegando. Piscou algumas vezes e, por pura educação, segurou o bocejo. Nessa altura, Tânatos estava menos sociável, carregando um semblante sonolento e desinteressado. Hypnos mantinha o olhar na mãe, que dizia, muito – frise o muito – irritada, algo sobre Hades e a terrível mania que ele tinha de trabalhar feito um condenado.  

— Às vezes penso que aquele garoto só está querendo me testar! — resmungou, agarrando a garrafa de néctar e virando o gargalho acima da taça de cristal, enchendo-a. — Onde já se viu ficar o dia inteiro sem comer? Vai acabar doente se continuar enfurnado naquele maldito escritório.

— Não adianta reclamar, Nyx. — Hécate comentou, indiferente, empurrando o prato intocado para longe. — Ele não escuta ninguém, independente do que pensamos.

Perséfone pensou ter escutado um tom chateado, mas ignorou, imaginando ser apenas coisa de sua cabeça. A deusa mais velha suspirou pesado. Achava fofa a forma com que Nyx se preocupava com Hades, como se ele fosse um de seus filhos.

— Aquele menino não tem jeito mesmo. — disse, ainda indignada. — Precisa ser tão responsável? Tão cabeça dura?

— Ser responsável não é ruim, mãe. De qualquer forma, você sabe muito bem como o Hades é. — Hypnos suspirou baixo, como se escutasse as mesmas reclamações há éons. — Não vai sossegar enquanto tudo não estiver resolvido. Esse trabalho é a vida dele. Pode ficar tranquila que assim que ele se resolver, você estará livre para o empanturrar com suas comidas o quanto quiser, como sempre fez.

A gargalhada de Tânatos soou baixa e Perséfone o acompanhou. Nem mesmo Hécate ficou indiferente ao comentário do deus. Nyx, por outro lado, o perfurou com seu olhar de dragão.

— Garoto insolente.

Foi tudo o que ela disse antes de virar a taça de uma vez, bebendo todo o néctar em um só gole.

Não demorou para que os servos – que nada mais eram que almas - aparecessem para retirarem os talheres e pratos. Hécate foi a primeira a sair, dando a desculpa de estar com dor de cabeça. Logo depois, Perséfone despediu-se de todos e retornou ao quarto, onde trocou o vestido por uma camisola longa e fina. Colocou o penhoar por cima, soltou o cabelo do penteado e se acomodou embaixo das cobertas, pronta para apagar as velas em cima da mesa de canto.

Entretanto, foi impedida pelas batidas que soaram, levemente. Perguntou-se quem poderia ser a essa hora.

— Entre. — falou, e a porta foi aberta. — Nyx? Aconteceu algo?

— Nada disso, querida. — ela adentrou o quarto, fechando a porta com o pé. — Fique onde está, não precisa se levantar. — sorriu, mostrando a pequena bandeja de prata que segurava, contendo duas xícaras e um bule. — Imaginei que ainda estivesse acordada e decidi trazer um chá, para mantê-la aquecida. As noites aqui são muito frias, penso que ainda não se acostumou.

A deusa menor acenou com a cabeça em confirmação, observando a outra sentar-se na beirada da cama para servi-la.

— Obrigada. — disse, sinceramente, aceitando o pires da mais velha. — Por tudo.

— Ah, meu bem, não precisa agradecer. Imagino que tenha se sentido só hoje, já que todos andam tão ocupados.

Perséfone entendeu que quando ela disse todos, estava se referindo apenas a Hades.

— Nem tanto. — deu de ombros, tentando não pensar no assunto. — Entendo que vocês possuem muitos afazeres.

— Se eu soubesse que passaria o dia sozinha, teria ficado. Tive que sair para ajudar os mortais com algumas coisas, espero que me perdoe. 

— Não se preocupe com isso, de verdade. Está tudo bem.

— Imagino que sinta saudade de casa.

Perséfone ficou quieta, sem saber o que dizer. Sim, sentia muitas saudades de casa. Especificadamente de sua mãe.

— Sinto muito, meu bem.

— Não sinta. — sorriu, passando o indicador na borda da xícara. — Não significa que aqui esteja ruim. Estar com vocês é bem divertido, na realidade.

A mais velha sorriu. Um daqueles sorrisos grandes, que mostram todos os dentes. Um sorriso verdadeiro e carregado por felicidade.

— Fico feliz que pense assim. Não nos conhecemos tão bem, já que está aqui há tão pouco tempo, mas espero passar mais momentos agradáveis com você.

Perséfone esperava o mesmo. Gostava da deusa maior. De certa forma, ela era como uma mãe.

— Sabe, — começou, pensativa. — Me pergunto se você conhece o motivo de eu estar aqui.

Pela forma com que os olhos púrpuros se atentaram ao seu rosto, soube que a resposta era afirmativa. A Noite, definitivamente, era um livro aberto.

— Não pode me contar?

— Não posso, meu bem. — ciciou, sentindo-se culpada. — Entendo que esteja confusa, e realmente gostaria de lhe dizer tudo, mas não posso fazer isso. Quem tem que contar a você é o Hades.

— É algo ruim?

A mais velha pareceu pensar por alguns segundos, olhando para um ponto qualquer do quarto.

— Isso vai depender de você, Perséfone. Só peço que tenha um pouco mais de paciência, querida.

— Está parecendo o Hades, falando assim. — murmurou, levemente emburrada. A outra riu. Bebeu o resto do líquido e colocou o pírex de volta na bandeja, percebendo que Nyx não se serviu. — Não vai beber também?

Recebeu como resposta um olhar travesso e um sorriso amarelo. 

— Quanto a isso, gostaria de lhe pedir um favor.

+

Perséfone só conseguia pensar que aquilo era loucura. Ela nem sabia andar pelo castelo! Tudo bem, a deusa da noite fez questão de repetir mais de três vezes como chegar ao destino, mas, raios, só queria estar deitada, sem se meter em problemas!

Tentava, verdadeiramente, não se envolver em confusões, contudo, era como se estivesse vivenciando uma espécie de carma. Só podia ser.

As mãos trêmulas seguravam a bandeja de prata e o corredor continuava o mesmo de sempre – mal iluminado, idêntico a um labirinto. Respirou profundamente ao parar de frente à porta, perguntando-se se deveria mesmo entrar.

Bateu uma, duas, três vezes e esperou. Passados alguns segundos, ninguém atendeu. Bateu outra vez, resolvendo não desistir. Já estava ali, de qualquer forma.

Porque Nyx não fez isso ela mesma?

"Hécate pode ter dito que Hades não escuta ninguém...", lembrou-se das palavras da Noite e de como os olhos dela brilhavam com as chamas das velas “mas ele certamente escutará você”.

Na hora, Perséfone não conseguiu dizer não, afinal, como poderia negar um favor a uma mulher tão gentil? Por isso só aceitou e saiu do quarto, carregando a bandeja. Parando para pensar, o que havia lhe dito não fazia qualquer sentido. Mal o conhecia, como seria possível ele dar mais ouvidos a ela que aos outros?

Bateu outra vez. Estava começando a ficar com medo. O castelo era escuro, sombrio, e agora, estando sozinha, as imagens gravadas nas paredes do corredor não pareciam mais tão bonitas ou artísticas como outrora.

Respirou profundamente, pensando seriamente se devia ou não fazer o que tinha em mente. Deu de ombros e resolveu que faria. Estendeu a mão e tocou a maçaneta, sentindo-a gélida em seus dedos. Girou.

Estava trancado.

Ótimo, era só o que faltava. Aquilo tudo para nada! Ela deu meia volta, decidida a retornar ao quarto. Havia sido apenas perca de tempo.

Não era possível ver a noite do lado de fora já que as pesadas cortinas de veludo foram fechadas. O único som era o de seus passos contra o piso de pedra. Nunca havia andando por aqueles corredores sozinha. Ela manteve a respiração compassada, mantendo-a firme e profunda. 

Olhou para trás, só para se certificar de que ninguém a seguia. Só havia uma eterna penumbra e pequenos pontos de luz, onde ficavam as tochas.

Está tudo bem, disse para si mesma, tentando conter o pânico. Está tudo bem.

O vento forte batia contra as janelas, produzindo um ruído sinistro. Sentido o coração a mil, decidiu caminhar mais rápido. A xícara e o bule balançavam levemente a cada passo emitindo um tilintar agonizante.

Abaixou o rosto, encarando os próprios pés. O frio era intenso e se arrependeu por não lembrar de ter trocado a camisola por um vestido. A única coisa que a protegia era o tecido fino do penhoar.

Continuou a caminhada, engolindo o seco, ainda sentindo o coração bater no pescoço.  

Foi então que ela viu. A silhueta formando no meio da penumbra, adiante, e o barulho pesado dos passos. Engoliu o seco, travando no lugar, sentindo o estomago embrulhado.

Não conseguia enxergar direito, mas lá estava, se aproximando cada vez mais.

A coisa parou. 

— Mas o que...? — A moça deixou a cabeça tombar para o lado, confusa, semicerrando os olhos a medida que a silhueta tomava forma. Certamente, aquilo só poderia ser homem. O corredor, ao contrário dos outros dias, possuía pouca iluminação e o escuro a impedia de enxergar corretamente. 

— Perséfone?

Ela gelou.

— Hades?

Houve um silencio. 

— O que está fazendo acordada?

— Eu... er... — precisava pensar rápido. Ele parecia desconfiado. — Fiquei sem sono e resolvi ir ao seu escritório.

— Ao meu escritório? — não conseguia ver o rosto dele, mas pelo tom de voz, percebeu que ele estava aborrecido com a confissão. — E como descobriu onde fica? Nunca te mostrei nada além da sala de jantar e como chegar ao lado de fora.

— Eu... eu... — como explicaria isso? Não seria adequado fofocar que foi Nyx quem pediu para que ela fosse até ali. — Eu perguntei a um dos servos e me contaram como chegar até lá. — era uma péssima mentirosa, sabia disso, mas não custava nada arriscar. — Você não apareceu para as refeições e ficamos preocupados – essa parte não era mentira, mesmo odiando admitir. — Então, — mostrou a bandeja. — eu vim para trazer um chá. Precisa de algo para forrar o estômago.

— Oh. — ele pareceu realmente surpreso. — Bom, nesse caso, agradeço a preocupação. Mesmo assim, não devia andar sozinha pelo castelo. Ainda não te mostrei as passagens, nem os cômodos. Pode ser perigoso.

— Será que dá para chegar um pouco mais perto? — pediu, agoniada. O escuro era apavorante. — Não consigo te ver.

— Desculpe.

Ele aproximou. Carregava uma quantidade exorbitante de pergaminhos nos braços, todos mal empilhados e era questão de tempo até que os derrubasse.

— Céus. O que é isso?

— Hoje andei um pouco ocupado na Sala dos Tronos. — explicou simploriamente, mal-humorado. 

Perséfone analisou-o de cima abaixo, ainda apertando a bandeja prateada.

— Um pouco? — sorriu pequeno. — Tem certeza?

Ela suspirou pesadamente, fitando-o no rosto. Ele estava cansado, com o semblante abatido. Enxergou olheiras claras rodeando os olhos escuros e as linhas de expressão começavam a salientar.

 — É. — devolveu o sorriso, sem graça. — Já tive dias piores. Acho que até amanhã cedo termino tudo.

— Bom, não é justo que fique sem dormir. Teremos que dar um jeito nisso.

+

De todos os cômodos do castelo, aquele era o que, certamente, mais combinava com o deus dos mortos. Era grande, bem decorado, com móveis em tons escuros e papel de parede grafite. Um majestoso – e horripilante – lustre de ossos pendia do teto, iluminando bem todo o local. O barulho da lenha queimando na lareira preenchia o silêncio. Ao centro, estava uma escrivaninha escurecida, na frente de uma poltrona aparentemente confortável. Tanto a escrivaninha quanto a poltrona foram postas sobre um tapete de pele de urso. Sofás foram espalhados em alguns pontos. Haviam muitas prateleiras e livros, além de pinturas penduradas em diversos locais.

Ela o ajudou a carregar os pergaminhos até o escritório, equilibrando alguns na bandeja, entre a xícara e o bule, tomando cuidado para não derrubar. Seria um estrago caso derramasse o chá em cima daqueles papéis.

— Pode colocar tudo em cima da escrivaninha. — ela obedeceu, antes de dar uma voltinha pelo cômodo. 

— Uau. — foi a única coisa que pôde dizer. Nem percebeu que tinha prendido o fôlego.

— Fiz questão de decorar pessoalmente. — respondeu, com um meio sorriso, acomodando-se na poltrona para começar o trabalho. — Por isso torço para que esse “uau” tenha sido uma reação positiva.

—  Com certeza. — afirmou, sincera, mirando-o por cima do ombro, de frente para um dos quadros pendurados na parede. — Você tem muito bom gosto. 

Hades a encarou de um jeito estranho, que ela não soube bem como explicar, mas o brilho nos olhos de ébano era bonito.

— Obrigado, Perséfone.

Um silencio se instalou entre os dois. Perséfone acabou se acomodando em um dos sofás, observando-o abrir um dos rolos, sem saber o que fazer. Por algum motivo, estava sem graça com a situação. Aquela era a sala particular do deus; de certa forma, era como se estivesse violando a privacidade dele.

Hades, por outro lado, segurava a respiração. Aquela noite estava especialmente fria, mesmo dentro do castelo. Enquanto ele tinha sobre os ombros a típica capa de pele o protegendo, Perséfone usava uma camisola decotada que marcava cada curva de seu corpo. E só os deuses sabem o quanto ele se esforçava para não olhar demais

Ela era uma tortura para qualquer homem.

Sentiu a presença feminina mais próxima e levantou os olhos, tentando, com força, fita-la apenas no rosto.

Ela se inclinou para pegar um dos pergaminhos, curiosa.

Por que era tão insuportavelmente bonita?

— O que está fazendo?

— Eu vou te ajudar. — ela respondeu, simplesmente, retornando para o sofá, sentando-se com as pernas cruzadas.

— Nada disso. Você vai voltar para o quarto e vai dormir. — ela quase rolou os olhos. — Está tarde, e se não dormir, ficará o dia inteiro cansada. 

— Não quero mais ficar naquele quarto. — reclamou, com uma careta desgostosa, torcendo o nariz. — Estou cansada. Apenas durmo, como e fico de bobeira por aí. Preciso de algo para me manter ocupada. Quero me sentir um pouco mais útil. Por favor, Hades.

Então, ela mostrou aquela carinha de cachorro pidão, a mesma que fez com a mãe quando a convenceu a deixa-la ir à floresta, antes do sequestro. Não deu outra. Hades caiu direitinho. Ele suspirou pesadamente, um daqueles suspiros longos, de quem sabe que está tomando uma decisão errada, e acenou com a cabeça.

— Certo. — ela sorriu como uma criança recebendo doces. Por pouco não fez a dancinha da vitória.

— Ótimo! — exclamou, eufórica. — Eu posso organizar tudo, posso te ajudar a ler e...

— Nada disso. — ele levantou, contornando a escrivaninha, em direção a ela. Perséfone não entendeu quando ele puxou o pergaminho de suas mãos, com uma das sobrancelhas arqueadas. — Você não pode ler. — virou de costas, retornando para o lugar de onde saiu, sendo acompanhando pelo olhar indignado da moça.

— O que farei, então?

— Pode começar servindo o chá.

Ela bufou e se levantou abruptamente, rolando os olhos. Com os orbes de ébano fixos no papel, Hades conteve o sorriso, achando engraçado a expressão no rosto delgado. Ela estava evidentemente enfezada, carregando uma expressão pouco condizente com seus modos tão recatados de dama. A deusa serviu o pírex e o empurrou na direção dele, chateada.

— Mais alguma coisa, senhor? — ironizou, cruzando os braços em seguida. O que era aquilo no rosto dele? Ele estava rindo? — Não tem graça, Hades. Estou falando sério! Se vai me manter presa nesse castelo, ao menos me ocupe com algo. Já faz quatro dias que estou enfurnada naquele maldito quarto.

— Respire fundo, Perséfone. Acalme-se. — ela o fez, retornando a postura educada. — Se quer tanto assim me ajudar, então tudo bem. Pode ler os pergaminhos. Mas que isso fique apenas entre nós. 

— Juro pela minha vida que não contarei a ninguém. — ela falou, novamente feliz, ignorando completamente a raiva que sentiu há alguns minutos e apanhou um dos rolos antes de se jogar, outra vez, no sofá. 

Ao desenrolar o laço, puxou as extremidades do papel e varreu o olhar pela caligrafia elegante.

— Isso é... — abriu a boca, chocada.

— Um relatório dos julgamentos. — completou a frase dela. — Como não posso fazer parte de todos, os juízes me mandam relatórios para que eu veja como as coisas estão caminhando no Tribunal. — Perséfone acenou com a cabeça, atenta.

— Já aconteceu de alguma alma ser julgada erroneamente?

— Sim. — respondeu, remexendo-se no lugar, incomodado. — Todas as almas que trabalham para mim nesse castelo, como servas, são pessoas boas que foram injustiçadas. Querendo ou não, nós deuses estamos suscetíveis a falhas, como os humanos. Foi há muitos séculos, pouco tempo depois que assumi a responsabilidade de ficar com o Submundo; erros eram inevitáveis. Aqui ainda não era totalmente organizado e nem sempre eu podia estar nas audiências. Na época não tínhamos os três juízes, apenas Minos e ele é um pouco... difícil. O único modo de contornar a situação foi mantê-los comigo, no castelo. Não é o destino que muitos gostariam de ter, mas é bem melhor que queimar no Tártaro. 

— Nossa. — disse, sinceramente admirada. Hades havia feito uma boa ação, no fim das contas. — Parece ser complicado decidir o futuro de alguém. Ser responsável pelo destino final das pessoas.

— É um fardo pesado. — confidenciou, pensativo. — Sei que todos reclamam que trabalho muito, mas não é como se eu tivesse escolha. Preciso manter as coisas aqui funcionando. 

O silencio reinou. Perséfone não soube o que dizer e isso a deixou desconfortável. Era ruim vê-lo daquela forma. Não que estivesse demonstrando tristeza, mas algo na expressão dele a incomodou.

— Seria mentira dizer que entendo, — ela disse, cuidadosamente. —  porque eu não entendo, mas consigo imaginar e penso que deve ser difícil — fez uma pausa, olhando-o, sem jeito. O que raios estava tentando fazer? —, mas não acha que está sendo um pouco duro consigo mesmo? Você tem toda a eternidade pela frente, não devia ficar tão encanado com o trabalho ao ponto de se privar de comer e dormir. Hécate e os outros reclamam, mas não é por mal. Só estão preocupados com seu bem-estar. Não estou dizendo para parar de trabalhar, só não se prive de viver sua vida como deseja.

Hades desceu o olhar para a mão que segurava a asa da xícara, girando-a sobre o pírex, pensando naquelas palavras.

— Você tem razão.

— Tenho?

— Por que está fazendo essa cara surpresa? — ele riu. Ela o acompanhou, com os lábios entreabertos e os olhos ainda arregalados.

— Só não esperava que fosse concordar comigo.

— E porque acha que não concordaria com você? — indagou, inclinando sobre a mesa, curioso.

— Eu não sei... — evitou o olhar dele, fixando as esmeraldas no papel em seu colo, perdida em pensamentos. — Digo, eu não passo de uma deusa menor. Não sou sábia como Atena, nem tenho poderes como os outros.

Houve uma pausa longa, seguida de um suspiro. Perséfone voltou o rosto ao rapaz e surpreendeu-se ao ver que ele lhe lançava um olhar carregado por carinho.

— Você não sabe o poder que tem, querida. — a voz dele soou calma, cheia de gentileza. — O fato de ser uma deusa menor, de não ter tantas atribuições divinas, não significa nada. Você é forte. Forte em carisma, em personalidade, em caráter. Isso te torna muito mais poderosa que Atena ou qualquer um. Você é mais especial do que imagina.

Perséfone abriu e fechou a boca, sem palavras. Havia um nó em sua garganta, como se algo estivesse preso, e o coração batia com força, martelando contra o esterno.

Porque ele estava dizendo aquelas coisas? 

— Droga. — a voz saiu trêmula e ela abaixou a cabeça, evitando o olhar do rapaz. 

Hades a principio não entendeu. Pensou que a deusa ficaria feliz pelas palavras – provavelmente as mais sinceras que havia dito em toda a sua vida.

— Perséfone... você está...?

— Não. — negou, virando o rosto para o lado oposto, envergonhada por estar em tal situação. 

Foi questão de segundos. Em um momento ele estava sentado atrás da escrivaninha, no outro ao lado dela, um tanto desesperado.

— Disse algo errado? — perguntou, preocupado. Embora vivesse há éons, foram poucas as vezes que presenciou uma mulher chorar. No caso de Perséfone, quase chorar. Ela se esforçava para segurar as lágrimas, mas foi em vão. Escorreram, pesadas, pelas bochechas da jovem. 

Hades, sem nem se dar conta, tocou justamente em seu ponto fraco.  Sendo filha de deuses poderosos, era de se esperar que ela fosse igual, não uma tremenda de uma fracassada, uma fraca, sem poderes. 

Perséfone passou a vida inteira acreditando nisso. Sua mãe lhe protegia com unhas e dentes e, pensando bem, talvez esse fosse o motivo. Nem mesmo Demetra achava que a filha fosse capaz de se cuidar sozinha. 

Aquela era a primeira vez que se sentia importante. 

— Não. — respondeu, mal-humorada. — É que ninguém nunca falou algo assim para mim. — confessou, baixo, antes de limpar os olhos com o dorso da mão. — Não se preocupe. Foi só um cisco que caiu no meu olho.

— Existem desculpas melhores que essa, querida. Não imaginei que fosse tão sentimental. — ele riu, satisfeito em descobrir esse lado dela e retirou um lenço de dentro do bolso da calça, colocando-o sobre o nariz da moça. — Assoe.

Ela o fez, sentindo-se patética. 

— Eu sei. — resmungou, dando uma fungada longa. — Só estou tentando manter minha dignidade. Você não está ajudando. — puxou o ar, sentindo-o preencher os pulmões. — Odeio chorar.

— Chorar faz bem. — deu de ombros, dobrando o lenço antes de coloca-lo sobre a mesa de centro.

— Fala isso, mas não acho que tenha chorado muito em sua vida. 

— Bom, isso é verdade. Mas não significa que nunca tenha acontecido. 

Ela o fitou por um longo tempo e ele arqueou uma das sobrancelhas, intrigado. 

— O que foi? 

— Desculpe. — ela falou, sinceramente. — É que ainda não o conheço, e passei a vida com uma ideia diferente do que você é, então estou um pouco surpresa. 

Ele ciciou pesadamente, voltando o olhar para ela, e repuxou o canto dos lábios em um sorriso pequeno.

— Entendo seu lado e não a culpo. — ela acenou com a cabeça, aliviada, com o rosto inchado e o nariz escorrendo. 

Ele a ajudou a se levantar, depois disse que a levaria até o quarto. Perséfone não fez objeções e aceitou o braço que lhe foi oferecido. Sentia-se cansada, com muito sono. O castelo continuava silencioso e os dois não conversaram até chegarem diante dos aposentos. 

— Obrigado pela ajuda. — ele disse. 

— Não fiz nada além de ler um pergaminho e chorar como uma tola. 

— Não diga isso. Foi divertido. Digo, não a parte em que você chorou — tratou de acrescentar. —, mas todo o resto. 

Ela riu, involuntariamente, tapando a boca com a mão. 

— Eu quem agradeço, — a moça disse, honestamente. — principalmente pelo o que disse. Acho que precisava escutar algo assim.

— Não é necessário agradecer. Só falei a verdade. — deu de ombros, olhando-a profundamente. — Boa noite.

— Boa noite. Nos vemos pela manhã.

— Até amanhã.

Hades beijou a mão dela antes de partir, com passos largos, pelo corredor. Perséfone continuou parada onde estava, observando-o sumir na escuridão, ainda sentindo o calor dos lábios dele em sua pele. 


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Notas finais do capítulo

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