Florescer escrita por Bruninhazinha


Capítulo 7
O começo dos problemas


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente. Primeiro capítulo de 2019. Espero que o ano de vocês seja maravilhoso! A todos que comentaram o capítulo passado, muito obrigada!
Peço perdão pelos erros gramaticais, estou postando de madrugada, to meio que morta de sono, mas tentei ao máximo corrigir. Espero que gostem!



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O começo dos problemas

As coisas realmente melhoraram para Perséfone após o desjejum. Enquanto Hécate manteve certo distanciamento, a expressão indiferente e o olhar frio, Nyx e os gêmeos foram calorosos na despedida – com direito a abraços por parte da deusa da noite. Assim, depois as saudações intermináveis, ela resolveu esquecer a preocupação com o sequestro para acompanhar Hades pelos corredores, rumo ao exterior do majestoso castelo.

Estava ansiosa – talvez fosse até um eufemismo usar essa palavra, já que, na realidade, o entusiasmo queimava seu interior. 

O banquete foi delicioso e ela se alimentou bem, comendo um pouco de tudo que foi posto à mesa. Agora, caminhando pelo corredor com a barriga cheia, sentia-se exausta.  A sonolência sempre foi uma amiga presente após as refeições. 

— Mais tarde te mostrarei os cômodos principais. — o deus comunicou, mais a frente, com a habitual expressão neutra. — Alguns locais foram encantados por Hécate, então evite zanzar sozinha por aí.

— Qual o motivo para encantar o castelo? — a pergunta escapou sem que percebesse e, depois do estranho olhar que o rapaz lhe lançou, se sentiu na necessidade de se explicar. — Parece desnecessário.

— Se tem algo que prezo, é a minha segurança. — respondeu. — E a do meu elmo. — acrescentou.

A deusa assentiu, compreendendo. Não chegava a ser novidade o fato do elmo ser um objeto visado entre os deuses – principalmente os mal-intencionados –, afinal, quem não quer a capacidade de ser invisível?

Hades possuía uma das armas mais – se não a mais – poderosas do mundo, mesmo que aos olhos só parecesse um capacete de guerra comum.

Perséfone suspirou pesadamente, com os orbes oliva fincados nas costas dele. Notou, nada surpresa, que ele era uns trinta centímetros mais alto. Não possuía tantos músculos ou um porte atlético, mas os ombros largos compensavam. O maxilar quadrado e o rosto proporcional, cheio de ângulos, tornavam-no assombrosamente bonito, o que combinava de forma bizarra com o estranho ar artístico no castelo.

Por mais que detestasse admitir, o lugar impressionava. Até mesmo as paredes do corredor possuíam minúcias nos tijolos de concreto – uma sequência de ilustrações gregas que narravam lendas jamais contadas.

— Minha mãe sempre fala que uma casa diz muito sobre o dono. — comentou, como quem não quer nada, apenas para quebrar o silencio. A curiosidade a rasgava por dentro, e isso não se dava apenas à vontade de conhecer o Submundo, mas principalmente por Hades.

Ele a sequestrou, um ato, no mínimo, questionável, mas nunca a tratou como prisioneira, sem mencionar o fato de ter arriscado a própria vida para salva-la. Como se não bastasse, apesar das feições duras e a áurea excêntrica, a gentileza em seus olhos chegava a ser reconfortante.

O que pensar de um sujeito assim?

Confusa, afastou os pensamento. Ele havia dito que sanaria suas dúvidas no momento adequando, quando estivesse preparado. Perguntou-se quando seria o tal momento adequado.

— É mesmo? — ele abaixou os olhos para fita-la, retirando-a dos devaneios. — Interessante. O que acha que esse castelo diz sobre mim?

— O que disse? — pensou ter escutado errado. 

— Quero saber o que acha que esse castelo diz sobre mim. 

Isso a pegou de surpresa. Sendo uma deusa menor, um ser insignificante, era de se esperar que poucos deuses dessem importância para suas opiniões. Hades, porém, parecia atento a cada palavra proferida por seus lábios, como se realmente as considerasse.

— Não sei se seria educado de minha parte.

— Oras, e porque não seria? — só pela fisionomia da moça era perceptível o quanto ela era presa às normas do Olimpo, normas sujas e sem qualquer sentido. — Ficaria feliz em escutar o que tem a dizer.

— Bom, — o timbre ainda era incerto, cheio de hesitação. Ele acenou com a cabeça em um pedido silencioso para que ela continuasse. — acho que mostra que é alguém detalhista, extremamente perfeccionista. Um castelo geralmente serve como fortaleza. É um refúgio, uma construção fortificada para proteger. Mas o seu não é só isso. Penso que gosta de ostentar seu dinheiro na própria casa. Ela é quase um monumento.

— Bem observado. — ele sorriu, um daqueles sorrisos satisfeitos. Duas eram as qualidades que admirava em uma mulher, e Perséfone as possuía: esperteza e sinceridade. — Mas devo esclarecer que meu intuito nunca foi ostentar riquezas. Apenas aprecio uma boa decoração. Não deixa de ser uma forma artística de se expressar.

— Nunca imaginei que você possuísse apresso pela arte. 

— Todo mundo precisa de um passatempo, meu bem, até mesmo o senhor dos mortos. — confessou, arrancando um sorriso da moça. — Não tenho tanta destreza com pincéis, música ou qualquer coisa relacionada, mas tive a felicidade de estudar um pouco sobre o assunto. Essa é uma das vantagens de se ter muito tempo livre. — deu de ombros. — Meu trabalho mudou pouca coisa nos últimos séculos. 

— A morte parece ser bem monótona ouvindo isso de você.  

— E ela é. — encarou um ponto qualquer adiante, com os pensamentos longe. — Não significa que seja um trabalho ruim. Mantém minha cabeça ocupada, e só. Achei tudo muito interessante no início. Acredito que todo início seja assim. Só que depois de alguns anos, realizar as mesmas tarefas fica um pouco... 

— Chato?

— Não usaria essa palavra, — os olhos dele pareciam rir. — mas, sim, chato.

Os dois só retornaram a conversar quando saíram do castelo. A entrada não era exatamente bonita. Perséfone respirou profundamente o ar fresco, sentindo-o preencher os pulmões, e estranhou a noite que se estendia adiante, sumindo no horizonte. De onde estavam, era possível enxergar Caronte atravessar as novas almas pelo Estige. O casal desceu a escadaria e Hades ofereceu o braço a moça, para que pudessem dar inicio ao passeio. Perséfone notou, não muito impressionada, que não havia qualquer resquício de plantas, ou mesmo um pequeno jardim. Tudo era muito escuro, sombrio, morto. Apenas um chão de concreto chegava até as margens do rio, de onde desembocava a areia rala e esbranquiçada.

— Venha comigo.  

Hades a conduziu para a esquerda. Adiante, a uma distância considerável, erguiam-se inúmeras montanhas. Todavia, o que chamou a atenção da deusa, de fato, foi o estonteante palacete grego de marfim escuro e pilastras brilhantes que se erguiam do chão em meio a variadas árvores de troncos secos e desfolhados – uma visão tétrica, terrivelmente macabra, de causar arrepios.

Observando o rei dos mortos de soslaio, ficou impressionada ao notar que a visão dele e a imagem do Submundo harmonizavam perfeitamente. O cabelo escuro esvoaçava com a brisa e o olhar gélido quase se assemelhava a uma nevasca, mesmo não sendo intencional.

Desceram outra sequência de degraus, que levavam até a estrada de terra batida cercada por galhos de uma planta seca. A deusa nunca viu nada como aquela espécie. Eram galhos espinhosos, que se enroscavam e contribuíam com o ar fúnebre do lugar.

Andando pela estrada, ainda agarrada ao braço do homem, temerosa, enxergou almas postas logo a frente da enorme porta que levava ao interior do palacete grego. Todas esperavam em silêncio do lado de fora, em fila única e ordenada.

— O que eles esperam? — nessa altura, não podia mais ficar em silêncio. A curiosidade rasgava suas entranhas e, de um jeito estranho, o calor emanado do corpo de Hades a deixou mais segura. Tentou afastar o medo, pensando que era bobagem se assustar com uma simples paisagem.

— O julgamento. — a voz dele saiu rouca, bem baixa. — São poucas almas na fila porque, ao contrário do que muitos acham, o julgamento é rápido, exatamente o tempo de Caronte retornar a baía da travessia, embarcar novos passageiros e trazê-los aqui.

— O que acontece com aqueles que não possuem dracmas para atravessar? — estavam mais próximos do aglomerado.

— Infelizmente, não há nada que possa ser feito.

— Está me dizendo que eles ficam do outro lado para sempre? — o tom feminino saiu mais alterado do que pretendia, e Hades a mirou com as sobrancelhas arqueadas, segurando uma risada, o que a fez encolher os ombros e corar as bochechas, envergonhada. — Quero dizer... Não acha que seja injusto?

— Sim, acho.  — respondeu, ainda com os resquícios de um sorriso. 

— E por que não muda isso?

— Mesmo que eu queira, a barca não atravessa sem as dracmas. — explicou. — Estige não é apenas um rio: é uma divindade. Ela fez um monte de exigências antes de assumir a forma que possui hoje, incluindo as dracmas. Os que não as possuírem são encaminhados para o vazio, onde vagam por toda a eternidade.

— Estige já foi uma mulher? — o rosto da moça se configurou para o mais puro choque, os olhos levemente arregalados e a boa entreaberta. Aquilo, sim, era uma novidade. Ninguém nunca contou isso a ela!

— Não uma mulher qualquer — Hades inclinou o corpo em sua direção, confidenciando baixo, como se fosse um segredo, o olhar carregado por um brilho de divertimento. —, mas a primeira a jurar lealdade ao deus supremo. Por isso os votos feitos a partir do rio Estige são os mais sagrados. Nem mesmo Zeus pode quebrar uma promessa quando feita em nome do Estige.  

Perséfone acenou com a cabeça, compreendendo. A caminhada não foi exatamente curta, também não foi excepcionalmente demorada. O palacete grego era um deleite aos olhos, e as colunas prateadas erguiam-se em todo seu esplendor.

Ela semicerrou os olhos para enxergar melhor a caligrafia no topo da construção.

Δικαστήριο πέραν του — Tribunal do Além.

Haviam diversos soldados, todos trajando armadura completa, esparramados do lado de fora. A maioria deles se encarregou de organizar e vigiar a fila de almas. Dois colocaram-se diante da porta principal, permitindo a entrada de um em um, de sentença em sentença. Muitos fantasmas encararam o casal de relance, outros arregalaram os olhos ao enxergarem a figura imponente do deus dos mortos e alguns atreveram-se a tentar sair da fila para se ajoelhar aos pés dele, implorando por perdão. Felizmente, foram barrados pelos soldados antes que pudessem fazê-lo. Perséfone odiaria presenciar algo assim.

— Iremos entrar na Sala dos Tronos, onde as almas são julgadas. Fico a maior parte do tempo lá. Os juízes são Éaco, Radamanto e Minos. Venha.

A moça foi conduzida até o interior do palacete. Se por fora era bonito, a parte de dentro era magnífica. As paredes brilhavam, o chão refletia os lustres que pendiam do teto e, ao centro, acima de uma elevação, foi posto um trono majestoso – o trono de Hades, ela soube –, atrás de outros três menores, onde três sujeitos se acomodaram.

Era impossível diferenciar quem era quem. Os juízes vestiam a mesma roupa – uma armadura horripilante. O homem ao centro era mais alto que os demais, e pela fisionomia prepotente, imaginou ser Minos, o dono da palavra final. Ela não conhecia muito sobre Éaco e Radamanto, apenas que um era mais severo e o outro, mais piedoso.

— Eles não parecem ser muito amigáveis. — Perséfone só se deu conta da besteira que fez quando sua voz ecoou pela sala. Tapou a boca rapidamente, com o coração acelerado, a risada baixa de Hades soando atrás de si e as três cabeças dos juízes voltadas em sua direção. — Oi. — acenou na direção deles, nervosa. Felizmente, foi ignorada, já que se atentaram a nova alma que adentrou o palacete. Uma mulher baixinha e rechonchuda.

— Aqui foi projetado para que as almas ouçam bem o que os juízes têm a dizer. — Hades praticamente sussurrou em seu ouvido. Mesmo assim, foi possível escutar a voz masculina soar pelo salão. Perséfone sentiu as bochechas formigarem. — As paredes brilham, pois são encantadas. Elas ampliam a voz.

— Por que não avisou antes de entrarmos? Que vergonha! — sussurrou de volta, escutando o eco quase imperceptível de seu timbre.

— Eu ia avisar, mas você foi mais rápida.

A vontade dela era enfiar o rosto na palma das mãos, só não o fez por educação.

A alma se posicionou ao centro, pronta para a sentença, e cada juiz abriu um pergaminho enquanto se acomodavam melhor em seus tronos. Perséfone ficou animada com o fato de assistir a um julgamento, porém, a animação não durou muito.

— Acho melhor irmos. — cochichou novamente no pé de sua orelha.  

— Pensei que iriamos assistir o julgamento.

— Não seria apropriado. Os únicos autorizados a fazer parte dos julgamentos sou eu e os juízes. Deixar com que outras pessoas escutem viola o nosso tratado, além de violar, também, a privacidade das almas.

— Compreendo. — a voz soou decepcionada, e aquilo partiu o coração do rapaz.  

— Não fique chateada. — a puxou para longe, levando-a até a outra extremidade do palacete, onde desembocava uma porta imensa, idêntica à da entrada. — Vou te levar para conhecer Asfódelos e os Campos Elísios.

Bastou isso para que ela ficasse animada outra vez. Ao o que indicava, era muito fácil agrada-la.

O calor quentinho vindo do palacete foi substituído pelo frio gélido do Submundo. Perséfone estremeceu com o choque térmico. Começava a ficar mais frio. O homem, notando que ela tremia e abraçava o próprio corpo na inútil tentativa de se esquentar, ofereceu a própria capa que, após muita insistência, foi aceita.

Ficou grande, parte dela arrastava no chão, mas serviu – e bem – para aquecê-la.

— Obrigada. — resmungou em um tom praticamente inaudível. Estava sem graça com todo aquele cavalheirismo.

— Não precisa agradecer.

Eles continuaram a caminhada em silencio.

O problema é que Perséfone sempre detestou silencio. Sendo uma pessoa extremamente sociável, era de se esperar que logo ela desatasse a conversar.

— Pensei que você assistisse a todos os julgamentos.

— Antigamente, sim. Hoje fico apenas com os mais complicados. As sentenças mais simples deixo para os três cuidarem.

— Imagino que as sentenças mais complexas sejam bem... intensas.

— Você não faz ideia.

A estrada alargava a medida que se aproximavam do destino. Acima da cabeça deles, as estrelas brilhavam e o frio começava a piorar. Perséfone agradeceu internamento por Hades insistir tanto para que ela aceitasse a capa. Nessa altura, se usasse apenas o vestido, estaria congelando.

Ele, porém, não sentia a diferença climática. Estava tranquilo, o semblante neutro e o olhar distante.

Caminharam por mais cinco minutos, e a estrada se abriu, revelando uma paisagem que a deixou boquiaberta. Adiante, o chão de terra transformou-se em um enorme círculo de blocos de concreto. No centro, estavam dois enormes portais dourados, que cintilavam e iluminavam toda a região. De um saía uma luz branca, do outro, uma acinzentada.

Era impossível ver o que estava dentro.

Perséfone piscou algumas vezes só para se certificar de que não estava maluca.

— O portal cinza é Asfódelos, o limbo, destinado as almas que não fizeram mal, mas também não fizeram algum grande feito. — o deus informou, feliz com o fato de a jovem estar maravilhada com tudo. — E o portal branco trata-se dos Campos Elísios, o lar dos heróis, das pessoas justas que propagaram a benevolência na sua passagem pelo mundo.

— Podemos entrar?

— Só os mortos podem entrar.

— E o Tártaro?

— O Tártaro é diferente. A entrada dele é livre para as almas condenadas. Agora, no caso de vivos, você sabe muito bem o que acontece. — ele a fitou, um olhar cheio de significados, e ela soube o que viria a seguir. — É necessário passar por Cérbero, antes.

Perséfone engoliu o seco só por relembrar a cena. Parando para pensar, agradecia o fato de Cérbero estar na entrada. Estaria queimando e sendo castigada com criminosos se tivesse adentrado aquela caverna terrível.

— Acho melhor voltarmos. Está ficando muito frio e logo o almoço será servido. — ele a tirou dos devaneios, apoiando a mão em sua lombar. Mesmo com a capa imensa, conseguia sentir o calor reconfortante da pele dele. — Você deve estar cansada. Podemos continuar depois. 

Perséfone acenou com a cabeça, dando uma ultima olhada nos portais, ainda maravilhada, antes de retornar ao castelo.

+

Hades se retirou para o escritório após deixar Perséfone no quarto para que ela descansasse um pouco, antes do almoço ser servido. Andando pelos corredores, ele se sentia renovado, ousaria utilizar a palavra animado. Eram raros os momentos em que ficava assim, contudo, Perséfone parecia causar esse efeito nele  – bastava pensar nela para receber uma injeção de ânimo.

A quantidade exorbitante de pergaminhos sobre a escrivaninha não foi suficiente para abalar seu bom humor. Ele se atirou na cadeira e respirou profundamente, com a capa pesando nos ombros. O tecido ainda tinha o cheiro dela. Um aroma único de sabonete e rosas. Era a mistura perfeita, o cheiro perfeito, porque era o cheiro dela.

Ele sorriu pequeno, contudo, aquele era, de fato, um sorriso apaixonado – e ridículo. Odiava a sensação do nó na garganta e o frio na barriga. Odiava as palpitações que tinha ao vê-la, ou quando se tocavam, mesmo que fosse um gesto simples como oferecer o braço para guia-la por aí.

Hades odiava tudo isso porque não sabia se um dia seus sentimentos seriam retribuídos. Aquele era um amor unilateral.

Sabia que Perséfone não o odiava, mas será que um dia ela o amaria? Seria isso possível?

Provavelmente não.

Hades estava apaixonado, não iludido. Teve decepções demais na vida para acreditar que um dia alguém como Perséfone gostaria desse jeito de alguém como ele.

Ainda assim, tentaria conquista-la – isso jamais seria possível no mundo dos mortais, já que estava proibido de subir aos domínios de Zeus.

De qualquer forma, não pretendia manter a deusa presa ali para sempre. Jamais faria algo assim.

Suspirando, apanhou um dos pergaminhos. Era um relatório completo sobre uma das sentenças. Ele leu, releu, pegou outros pergaminhos. Distraído, nem notou as horas passando – sempre foi muito difícil ter uma noção de tempo em um local como o Submundo, onde sempre era noite.

Só parou o trabalho quando batidas ecoaram. Dizendo para entrar, retornou o olhar para a caligrafia elegante de Minos. Escutou o barulho do salto batendo contra o piso e o farfalhar do vestido. Não precisava olhar para saber quem era – o cheiro de lavanda denunciou.

— Você não apareceu para o almoço. Fiquei preocupada. — a voz de Hécate soou, delicada, tão delicada que nem pareceu ela.

— Desculpe. Fiquei entretido com o trabalho. — respondeu, afastando os pergaminhos antes de levantar o olhar para fita-la. — Alguém buscou Perséfone para almoçar?

— Hypnos se encarregou disso.

— Ótimo.

Ele continuou encarando a feiticeira por breves minutos. Hécate parecia incomodada, o nariz empinado estava torcido e as sobrancelhas juntas. Provavelmente estava tentando criar coragem para lhe dizer alguma coisa.

Ou talvez fosse só impressão sua.

— Independente do que tem a me dizer, diga de uma vez. — falou, impassível. — O que foi?  

— Você precisa mandar ela embora enquanto ainda é tempo, Hades. 

Ele aspirou profundamente para manter a calma, o ar quente enchendo seus pulmões.

— É só isso? Se for, já pode ir. Tenho muito trabalho a fazer. 

— Pelo Caos, será que dá para me escutar? Abra os olhos! — continuou, os orbes ametistas raivosos. Hécate era explosiva, mas Hades a conhecia o suficiente para saber quando a raiva dela era genuína. E, naquele instante, era. — Você está arriscando tudo por uma garota que nem te ama!

— Sei que ela não me ama. — afirmou com tranquilidade. — Por isso a trouxe aqui: para conquistar sua confiança, seu amor.

— Ela só te trará problemas!

— Não, não vai. E se ela me trouxer problemas, pode ficar tranquila, que não foi por falta de aviso.

— Você é mesmo um cabeça dura. — ela gemeu, frustrada. — Está cometendo um erro.

— Hécate. — fez uma pausa, mirando-a com seu olhar de águia. — Eu sou um adulto, não uma criança, e sei muito bem como lidar com os meus assuntos que, inclusive, não dizem respeito a você. — ela arregalou os olhos, irritada, contudo, ele não se importou. — Se não gosta dela é problema completamente seu, não estou nem aí. Não vou mandar Perséfone embora só para realizar os seus caprichos.

— Não faço isso por capricho, Hades. — a voz dela saiu cheia de mágoa, e ele se sentiu culpado, por um breve momento. A feição dela era triste, estava chateada. — Você já passou por muita coisa. Eu não suportaria vê-lo infeliz.

— Eu entendo, Hécate, e realmente agradeço. Você sempre esteve ao meu lado e, da mesma forma que se preocupa comigo, eu também me preocupo com você. — agora, sim, o sentimento de culpa o corroía por dentro. Hécate olhou para um lado qualquer, tentando conter a chateação. — Me perdoe, nunca tive a intensão de te magoar. Só entenda que eu amo a Perséfone e não irei desistir dela assim, tão facilmente.

Eles se encararam. Embora hesitasse, Hécate não desviou os olhos. Continuou fitando-o com aqueles orbes ameaçadores, esforçando-se para manter a dignidade. 

— Essa conversa ainda não acabou. — foi a última coisa que ela disse antes de sair, batendo a porta com fúria, um baque ensurdecedor. 

— Tenho certeza que não. — Hades murmurou para si mesmo, cansado,  fitando o lustre de ossos que pendia do teto, com a certeza de que seus problemas só estavam começando.


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Notas finais do capítulo

Que tal um comentário para alegrar essa escritora que vos fala? :)



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