Florescer escrita por Bruninhazinha


Capítulo 14
Confidentes




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Confidentes

— Você demorou. — foi a primeira frase que Perséfone exprimiu ao ver Hades atravessar o batente da biblioteca. Ele parecia cansado, notou, mesmo que houvesse resquícios de satisfação nas feições duras. Sem cerimônias, o deus afundou ao seu lado no confortável sofá, de frente para a lareira, não antes de soltar um suspiro profundo de quem vinha carregando uma tonelada nas costas. — Como foi de viagem?  

Hades torceu o nariz para a pergunta, rememorando a conversa que tivera com Zeus, mais cedo. O fato de sair vitorioso não a tornou menos desgastante. Sentia os membros arderem e nunca esteve tão desejoso por um banho.

— Cansativa. — respondeu, por fim, abaixando o olhar para as mãos da moça, que seguravam firmemente um livro que ele conhecia muito bem. Arqueou as sobrancelhas, intrigado. — Esse não é o livro que a Hécate vive carregando por aí?

— Sim. — deu de ombros. — Encontrei em uma das prateleiras e fiquei curiosa.

— Quais foram suas conclusões sobre a leitura?

— Que Hécate provavelmente é louca e curte bizarrices. — Hades riu. Perséfone, por outro lado, permaneceu sisuda. — Sério, tem de tudo aqui. — folheou algumas páginas e inclinou o exemplar na direção dele, mostrando uma sequência de desenhos de um homem virando sapo. — Eu não sabia da existência desse tipo de magia. Quer dizer, transformar pessoas em animais? Isso é sério?

— Não é nem a ponta do iceberg. — revelou entre uma risadinha, achando graça de todo aquele espanto. — Ficaria impressionada se soubesse do que Hécate é capaz.

— Me lembre de nunca a tirar do sério. — sua fisionomia era sombria. — Ela já não vai com a minha cara, imagina só se perder a linha comigo.

— Hécate é uma maga poderosa — comentou. —, mas não faria mal a uma mosca. Bom, eu acho.

— Prefiro não pagar para ver. — fechou o exemplar. A chama flamejante da lareira bruxuleava nos olhos escuros do deus. Coçando o queixo cheio de ângulos, ele mantinha a cabeça inclinada, o cabelo quase caindo sobre os olhos, despenteado. — Você parece exausto.

— Estou.

— Devia descansar, dormir um pouco. Há quanto tempo não dorme?

— Alguns dias, acho. — bocejou longamente. — Mas ainda tenho coisas a fazer. Pergaminhos para ler. Essas baboseiras de sempre.

Perséfone rolou os olhos.

— Minha opinião sobre essa sua obsessão por trabalho está mais do que expressa, então simplesmente irei fingir que não escutei isso.

— Que maldosa. — os orbes ônix brilharam e o canto da boca repuxou em um sorrisinho debochado. — Gostei.

— Você está sendo um tremendo teimoso.

— Se serve de consolo, compartilho dos seus sentimentos, um descanso cairia bem, mas o trabalho não espera. 

— Bom, você tem opções a escolher. Todo mundo tem. 

— Que seriam?

— Trabalhar feito um condenado ou ser como eu. — os olhos esverdeados brilharam de forma travessa. — O tipo de pessoa capaz de ignorar as responsabilidades e não sentir qualquer remorso por isso.  

— Isso não é algo do qual as pessoas normais se orgulhariam, meu bem.

— Achei que nessa altura do campeonato você já teria notado que não me enquadro no que ditam como normal.  — sorriu, começando a fazer pontuações. — Quase fui engolida por um cachorro de três cabeças por pura falta de senso, depois disso não fiz qualquer esforço para tentar sair daqui, do Submundo; para finalizar com chave de ouro, virei confidente do meu suposto sequestrador.

Confidentes. Foi a primeira vez que Perséfone usou essa palavra e a moça não pode deixar de pensar em como era perfeita para descrever o relacionamento deles. Claro, mesmo que não dissessem em voz alta, eram bons amigos, porém, de certa forma, o estranho vínculo que tinham parecia ultrapassar essa barreira.

— Não dá para negar que seus argumentos são validos. Mas tenho que ressaltar, novamente, que isso não é bem um sequestro. Já disse que você é minha convidada.

— Não é como se eu estivesse aqui por pura e espontânea vontade, — alfinetou, semicerrando os olhos. — mas não tenho do que reclamar. Está sendo melhor do que imaginei.

— E o que imaginou, no início? Que eu te manteria em cárcere privado em alguma masmorra fedorenta?

— Exatamente.  

— Tudo bem, não julgo. — deu de ombros. — Eu pensaria o mesmo.

Mantiveram-se em silencio por algum tempo, ambos escutando o crepitar do fogo, que aquecia parcialmente o cômodo. Ela manteve as mãos juntas o tempo inteiro, incomodada com a quietude. Não que fosse desconfortável, acontece que sua hiperatividade a impedia de permanecer muda por mais do que cinco minutos.

— E então? — mordeu o interior das bochechas.

— Então o quê? — fitou o rosto oval.

— O que faremos agora?

— Você eu não sei — endireitou a capa nos ombros. —, mas eu vou trabalhar.

— Você não sabe o quanto me desanima, Hades. — abriu o livro outra vez, os olhos passeando pelas páginas amareladas, sem conseguir esconder seu real desânimo.

— Não entendo o porquê de toda essa indignação. Tenho certeza de que seu pai trabalha tanto ou mais do que eu.

Uma risada cheia de escárnio escapou dos lábios rosados.

— Meu pai? — levantou os orbes esmeraldas para o rapaz. Ele a fitava cheio de interesse. — A única coisa que Zeus faz além daquelas festas ridículas é sair engravidando as pobres coitadas que caem nos encantos dele. Sinto pena da Hera. Ela, sim, é uma guerreira por aguentar esse casamento.

— Sua sinceridade é comovente.

— Não sei se foi um elogio, mas obrigada. Só não muda de assunto. O que vamos fazer?

— Eu realmente preciso trabalhar.

Os ombros de Perséfone murcharam e ela acenou com a cabeça, retornando os olhos esverdeados para o capítulo “Os prós e contras de uma poção rejuvenescedora”, tentando não exprimir todo seu desapontamento, evidentemente sem sucesso. Hades se levantou e caminhou até a porta, mas parou abruptamente antes de sair, encarando-a por cima do ombro.  

Embora ela não demonstrasse, sabia que a deusa estava sedenta por atenção e uma boa conversa. Certamente, ficaria bem infeliz se passasse mais tempo sozinha.

E, claro, tudo o que ele mais desejava era aproveitar cada segundo ao lado dela.

— Tudo bem, podemos fazer alguma coisa. Mas só dessa vez.

Claro que estava mentindo. Ele sempre cedia as vontades dela, independente de tudo. Toda. Maldita. Vez. Era impossível resistir àquela carinha de cachorro abandonado.

Perséfone nem disfarçou a felicidade. Deu um pulo do sofá, deixando o livro jogado de qualquer jeito entre as almofadas, e o seguiu, saltitante como uma criança, pelo corredor.

— Eu tenho várias ideias. — tagarelou. — Podemos ajudar os novos brotos no jardim, as romãzeiras também precisam de um trato, um pouco de adubo vai deixá-las bem mais felizes e...

— Nada de jardinagem. — cortou-a, arrepiando-se até o último fio de cabelo só em pensar em ter que mexer com aquelas plantas. Ele não levava o menor jeito com elas. — Nem jogos. — foi a vez dela de suspirar de alívio. — Vamos fazer algo novo.

— Me surpreenda.

Ele sorriu e ofereceu o braço, que foi prontamente aceito. Não dava para negar que a aproximação deles era reconfortante. Ele a guiou pelos corredores, sendo alvejado com perguntas dolorosamente pessoais, a maioria sobre coisas corriqueiras que soariam pouco interessante a outras pessoas.

Perséfone, contudo, estava mais do que interessada.

— Qual foi a coisa mais difícil que você teve que fazer na vida?

— Ter que responder as suas perguntas. Nunca vi uma pessoa com uma criatividade tão fértil.

Ela rolou os olhos.

— É sério.

— Bom, — deu de ombros, pensativo, fitando um ponto qualquer à frente. Estavam quase chegando no destino. — essa eu vou ter que passar. Já fiz tanta coisa difícil na vida que fica até complicado em lembrar.

— Como?

— Como prender meu próprio pai no Tártaro, por exemplo. Coisas assim.

— Certo, — sentiu o sangue subir até as bochechas. — acho que fui longe demais nas perguntas.

— Por que está tão interessada na minha vida, meu bem?

Ela mordeu o lábio inferior com força, um gesto que não passou despercebido por ele. Então, os orbes esmeraldas estavam fixos nos seus, brilhando feito estrelas.

— Seria estranho se eu dissesse que quero te conhecer melhor?

Hades ficou em silencio, tentando digerir as palavras dela, o estomago despencando dentro do corpo como se acabasse de receber um soco. Não esperava por isso. Verdadeiramente, não esperava.

Porra, como ela conseguia fazer essas perguntas tão normalmente? De fato, deusa não tinha ideia das sensações que causava nele.

— Não diria estranho. Talvez surpreendente?  

— Sabe, pensei muito nisso, naquele dia em que conversamos... bom, sabe, sobre sua falecida namorada. — disse a última parte com um cuidado anormal, contudo, o deus não pareceu ligar. Ele estava meio chocado, meio estranho, piscando sequencialmente. — Por isso fiz aquelas perguntas aleatórias tão fora do contexto. Naquela hora eu me dei conta de que você sabe tudo sobre mim e que eu não sei quase nada sobre você.

— Está enganada se acha que sei tudo sobre você. — as palavras apenas escaparam, os orbes ônix parecendo mais profundos que o habitual; — Quer dizer, não tanto quanto eu gostaria.   

Perséfone fechou a boca, sem saber ao certo como responder.

— Chegamos. — ela nem percebeu que tinham andado tanto, ocupada demais em encará-lo com incredulidade.  

Estavam diante de uma porta imensa, como todas as outras portas do castelo. Hades tirou um molho de chaves do bolso da capa, desvencilhando-se de Perséfone para escolher uma. Ela esperou pacientemente enquanto ele destrancava a porta.

— Você é a primeira pessoa que trago aqui.

Ela não soube se ficava feliz ou ainda mais confusa.

Ao contrário dos demais cômodos do castelo, aquele era de longe o mais simples. O papel de parede estava descascando, e quase não havia móveis.

O que mais chamava atenção eram as magníficas telas, variando entre pequenas, médias e grandes, esparramadas pelo chão, empilhadas por todos os cantos. Havia também prateleiras contendo material de pintura, incluindo pincéis com haste de ouro e tubinhos de tinta.  

— Esse é o meu ateliê. — revelou. — Não é grande coisa, mas é um dos poucos locais do castelo que realmente gosto.

— É incrível. — disse, deslumbrada, dando uma voltinha pelo lugar. Era impossível ser indiferente as pinturas de Hades, tão bem-feitas e realistas. — Mas porque me trouxe aqui? 

Hades encostou na parede, analisando as próprias unhas, como quem não quer nada. 

— Ontem, antes da viagem, talvez eu tenha esbarrado com Nyx no corredor.

Talvez, é? — cruzou os braços, uma das sobrancelhas arqueadas, começando a entender onde ele queria chegar. — E o que ela disse?

— Disse que te encontrou bem cedo na biblioteca, e que você estava pintando.

Não estava surpresa com a resposta. Não havia contado para Nyx sobre os reais motivos por trás de estar pintando – sabia que a deusa maior entenderia errado, principalmente depois daquelas perguntas minimamente estranhas. Para a Noite, Perséfone só estava tentando uma nova atividade.

E é evidente que isso acabaria chegando aos ouvidos de Hades, ainda mais ele, um amante das artes.  

— Por que não me contou?

Oras, porque aquilo tecnicamente deveria ser um segredo. Agora ele nem ficaria surpreso em receber o presente que estivera se empenhando tanto em fazer nos últimos dias.

— Você está sempre trabalhando, e eu não queria te fazer perder tempo. — mentiu descaradamente. Hades, por outro lado, limitou-se a suspirar, fitando-a com a expressão séria, embora seus olhos demonstrassem um carinho quase imperceptível.

— Você nunca foi perca de tempo, meu bem. Cada segundo com você é precioso. 

Perséfone não soube por que, mas um frio invernal tomou conta de todo seu corpo, começando dos dedinhos do pé até o último fio de cabelo. Uma sensação de dormência, de anestesia. O estômago, então, despencou e a palma das mãos ficaram molhadas.

— Eu posso te ensinar a pintar — ele disse, analisando-a feito uma águia. —, se quiser, é claro.

— Eu quero, não vou mentir. — exprimiu em um fio de voz.

Um sorriso surgiu no rosto masculino, deixando-o ainda mais bonito. Perséfone engoliu o seco, tentando afastar os pensamentos, enquanto o observava esticar a mão em sua direção, segurando a minúscula chave prateada.

— Ótimo. A partir de agora você tem acesso livre ao ateliê. — Perséfone apanhou o objeto, um tanto incerta.

— Tem certeza?

— Absoluta. Podemos começar suas aulas amanhã.

Eles passaram mais um tempo no ateliê, o deus dos mortos empolgadíssimo, mostrando os materiais e alguns livros empoeirados sobre arte, guardados em meio aos entulhos. Perséfone sorria para ele, concordando nos momentos certos e participando ativamente da conversa, sem conseguir deixar de pensar que estava agradecida a Nyx por contar seu segredinho.

No fim das contas, seria divertido passar um tempo a mais com ele.


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Notas finais do capítulo

Nem sei por onde começar. Sinceramente. Quero pedir desculpas pela demora, foi um mês muito corrido para mim, de verdade. Tive aula durante todo o mês de julho e entrei de ferias literalmente só há alguns dias, especificadamente no dia 6 de agosto. Vou ter só uma semana de recesso antes das aulas voltarem novamente. Isso sem mencionar o bloqueio criativo.
De verdade pessoal, perdoem minha demora. Prometo que tentarei postar com mais frequência durante esse curto tempo de recesso. E claro, quero deixar meus agradecimentos a todos que estão comentando, acompanhando e favoritando. Vocês são incríveis! Muito obrigada pelo apoio e pela recepção!
E ai? O que acharam desse capítulo?



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