Florescer escrita por Bruninhazinha


Capítulo 13
A reunião


Notas iniciais do capítulo

Oi, oi, gente. No meio de todo o desespero com as provas e a faculdade, voltei com mais um capítulo e espero de coração que vocês gostem. Talvez tenha um errinho ou outro, não pude corrigir direito, mas farei isso assim que possível.
Obrigada por cada comentário e apoio, estou amando a recepção!
Um beijo!

* Lembrando que a história não segue a risca os contos gregos originais. É uma versão minha.



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A reunião

Perséfone não pôde deixar de pensar que aquele estava sendo um dia estranho – e olha que ainda era manhã. Só para começar, as suspeitas perguntas que Nyx fez na biblioteca continuavam a ecoar em sua cabeça. E ainda havia Hades e a espontânea demonstração de afeto que ocorreu mais cedo, depois que entregou a lista. Para ser sincera, o toque dele ainda queimava em sua pele e seria mentira dizer que o assunto não a inquietava. Ela precisou fazer força para conseguir direcionar os sentidos para qualquer coisa que não fosse o recém encontro que tiveram no meio do corredor. Não sabia o que as horas seguintes lhe reservavam, mas torceu para que o resto do dia fosse minimamente normal.

Seus almejos, entretanto, não foram atendidos – notou isso ao atravessar o batente da sala de jantar. Os biscoitos de Nyx serviram apenas para forrar o estomago, por isso foi uma felicidade encontrar a mesa tão lotada por aperitivos – estaria tudo bem, tudo muitíssimo normal, exceto por um único detalhe.

Acomodada à ponta, Hécate mantinha-se cabisbaixa, encarando o próprio prato como se fosse a coisa mais interessante do mundo, enquanto uma das mãos se encarregava de cutucar a comida com o garfo. Com as ametistas levemente arregaladas, ela parecia estar se recuperando de um recente choque. Foi realmente inusitado vê-la tão absorta no próprio mundo, afogando em pensamentos, o semblante da mais pura derrota.

“Bom dia”, a deusa da primavera cumprimentou ao sentar em uma cadeira qualquer, não se surpreendendo ao receber o silêncio como resposta. “Hécate?”, fez uma nova tentativa e a outra voltou ao mundo real, saindo do estado de torpor. Pela primeira vez, seus olhares cruzaram.

— Há quanto tempo está aqui? — Hécate questionou, perplexa, sacudindo levemente a cabeça como se tentasse se livrar dos pensamentos. Não era para menos. Embora já soubesse que seria rejeitada novamente, a recusa doeu mais do que pensou que doeria.

— Acabei de chegar. — disse, lhe lançando um olhar cheio de significados. — O que aconteceu? Você parece chateada.

A deusa da magia crispou os lábios. Toda aquela confusão não dizia respeito a ninguém, senão ela e Hades.  

— Nada. Estou bem.

— Se você diz. — a resposta não a convenceu, mas decidiu não insistir e esticou os braços para se servir com uma porção de pães doces, sempre dando uma espiadinha curiosa na direção da outra. Por uma fração de segundos, lembrou-se de como Hades também parecia desconfortável mais cedo, com a expressão atônita e o caminhar perdido.

É claro que não pôde deixar de se perguntar se as duas coisas estavam relacionadas. Nunca chegou a presenciar uma briga entre os dois – eram discretos demais para isso –, conquanto, não precisava ser um gênio para saber que algo estava acontecendo.

Hécate continuava a cutucar a comida. O pedaço de torta rolava para lá e para cá, lambuzando a superfície do prato de porcelana com glacê. A xícara na outra mão, antes fumegante, começava a esfriar.

— Não vai comer? — questionou de repente, não sabendo ao certo o porquê. Talvez fosse a agonia em ver a comida rolando de um lado para o outro, ou quem sabe o desconforto em presenciar a deusa da magia tão amuada.

— Oi?

— Perguntei se não vai comer. — repetiu, analisando a mulher a frente com olhos de águia. Hécate bebericou o chá frio, em seguida fez uma careta. — Tem certeza de que está bem, Hécate?

— Nunca estive melhor.  

Aquilo era claramente uma mentira. Mesmo que não fossem amigas e que a maga vivesse com a cara amarrada, a deusa da primavera sabia que já houve dias muito melhores para a deusa maior, como qualquer um poderia observar, mas achou mais sensato não comentar a respeito.

— Aconteceu algo entre você e Hades? — perguntou sem rodeios, e pela cara de desgosto da outra ao escutar o nome do senhor dos mortos, era mais do que óbvio que a resposta era positiva. — Agora faz sentido.

— O que faz sentido?

— Ele estava bem distraído quando o encontrei, agorinha. Fui entregar a lista e nos encontramos na entrada da biblioteca. — narrou, capturando cada reação da deusa maior. — Ele parecia distraído e sério. — comentou, como quem não quer nada. — O que aconteceu entre vocês?

— Não é da sua conta.

— Achei que você queria resolver as coisas com ele. — murmurou, a contra gosto, lembrando-se da conversa que as duas tiveram na biblioteca há alguns dias.  

— Há certas coisas que não dá para se resolver tão facilmente, Perséfone. — levantou o olhar e descansou o braço na mesa, ainda segurando o garfo. — Ao contrário de você, minha vida não é um mar de rosas.

— E como sabe que a minha é um mar de rosas? — questionou, começando a sentir a irritação crescer. — Você nem me conhece.

— Você também não me conhece, então pare de ficar dando sua opinião ou conselhos como se conhecesse! — ela tentou não alterar a voz, mas foi praticamente impossível. Estava chateada demais com a droga da vida para ser educada. No momento, só desejava berrar e, mais do que isso, mandar aquela garota para o quinto dos infernos.

— Ótimo! — Perséfone retrucou, trincando os dentes. Estava cansada daquele comportamento. Logo quando pensou que as coisas estavam dando certo entre elas, que um avanço aconteceu... — Isso mesmo! Joga suas frustrações em mim, é só o que você sabe fazer! Eu só quis ajudar.

— Eu sei. — Hécate murmurou, desviando um olhar para um canto qualquer. — Desculpa. Mas é que eu preciso ficar sozinha.

— Tudo bem.

Decidida a não dizer mais nada, Perséfone bufou e saiu da saleta batendo a porta com força, não antes de apanhar um monte de balas doces da mesa. Comeria no corredor mesmo, sem qualquer pudor – tudo para manter-se longe da áurea consternada da bruxa. Com esses pensamentos, ela enfiou uma quantidade exorbitante de caramelos goela abaixo, ainda parada em frente a porta de madeira envernizada que levava a sala de jantar.

Ninguém mais apareceu nesse meio tempo e ela não se impressionou. Os outros deveriam estar trabalhando e era bem provável que Hades ainda estivesse com Hermes no escritório, discutindo sabe-se lá o que.

Um tanto entediada – e aborrecida com o que acabara de acontecer –, resolveu se acomodar outra vez na biblioteca, disposta a finalizar a pintura, buscando ocupar a cabeça com qualquer coisa que não fosse o desapontamento com Hécate; o resto do dia passou-se como um borrão. Dispensou o almoço e as refeições seguintes, parte por não sentir fome, parte por ainda estar com raiva – e a outra parte, por criar mil e uma situações na cabeça, imaginando como entregaria o presente.

Estava em dúvida se entregava pessoalmente, se deixava na porta do escritório com uma carta, ou se o fazia através de terceiros. Absorta em pensamentos, Perséfone nem viu quando cochilou, entre as almofadas de uma das confortáveis poltronas, com a tela no colo.

O sonho não foi dos melhores. Nele, Hades fitava a pintura com sua pior expressão de desapontamento. "Isso é o melhor que você pode fazer?", ele perguntava a todo momento, cheio de desgosto. 

Quando acordou, a ideia do presente nunca lhe pareceu tão idiota e toda sua confiança evaporou feito água. O deus era um artista, é lógico que consideraria o desenho ridículo, mesmo não expressando ou admitindo. Reparando melhor nos traçados da tela, percebeu que nem estava tão bom assim. Parecia meio torto, um pouco desproporcional.

Desanimada, escondeu a pintura no lugar de sempre, atrás das prateleiras. Talvez não fosse uma boa ideia entregar agora. Precisava aperfeiçoar um pouco mais os traçados e também esfriar um pouco a cabeça. Continuava irritada com Hécate. 

 Depois de desamassar a saia do vestido com a ponta dos dedos, Perséfone se retirou da biblioteca, caminhando sem rumo. O clima estava mais gélido e o vento assobiava contra as janelas, produzindo um barulho sinistro. Ela desceu vários lances de escada, sem saber aonde estava indo, até se ver em uma das saídas do castelo – aquela que levava aos jardins.

As romãzeiras erguiam-se do gramado seco e o campo de narcisos dourados iluminavam os arredores, até a margem das montanhas. Atravessou entre as árvores, livrando-se dos galhos que agarraram as suas vestes, e se acomodou na beirada do enorme chafariz, centralizado no recinto, os jatos de água voando direção ao céu e caindo no fundo, produzindo um soar relaxante.

Não soube por quanto tempo ficou ali, sozinha, de costas para o castelo. Estava tão distraída que mal notou os passos vindos em sua direção. Só se deu conta de que não se encontrava mais só quando o característico aroma amadeirado preencheu o ar.

— Por onde esteve? — a voz grossa ecoou ao lado e ela levantou o rosto, deparando-se com a feição enigmática de Hades. As estrelas acima deles piscavam e a luz do luar clareava parcialmente as masmorras do castelo.  

Por um instante muito breve, ela recordou de quando se conheceram, na festa de apresentação. De quando fugiram para caminhar nos jardins de Zeus, em um silêncio confortável. A lembrança lhe pareceu distante, como se tivesse ocorrido há anos. De fato, era assim que se sentia quando estavam juntos – como se já se conhecessem há éons.

— Na biblioteca, — respondeu com uma tranquilidade quem nem ela sabia que tinha, retornando os orbes para frente, onde era possível enxergar o contorno da montanha em meio a penumbra. — depois vim para cá.

— Você anda passando muito tempo naquela biblioteca. — pontuou com um quê de curiosidade na voz, acomodando-se ao lado dela no chafariz. — O que está aprontando? 

— Nadinha. — apertou os lábios, segurando um sorriso. 

— Sei. — era perceptível a desconfiança na voz dele. — Você nem apareceu para o almoço.

— Desculpe por isso. — disse, sinceramente, encarando-o diretamente nos olhos; não foi exatamente uma escolha inteligente. Os orbes negros brilhavam intensamente com a luz do luar, fixos no rosto dela com uma evidente adoração. Sentiu-se tão estranha que precisou de alguns segundos para continuar. — Não estava com fome e acabei me distraindo.

— Não tem problema. — Houve uma pausa, enquanto se encaravam em silêncio. Observou-o, então, retirar a própria capa. Não entendeu o que ele pretendia, até vê-lo inclinar sobre seu corpo e passar a veste por suas costas, deixando-a cair sobre os ombros miúdos, pesada e quente. — Você está congelando.

— Ah, — soou surpresa, apertando a capa dele com força, um tanto desconcertada. — não precisava. Não estou com tanto frio. 

— Seus lábios estão roxos, Perséfone. — argumentou, encerrando a discussão, contudo, ela não se deu por vencida. 

— Mas você...

— Eu estou bem. — tratou de responder, já sabendo o que a jovem diria. — Já estou acostumado com o clima. Não se preocupe comigo.

A deusa acenou com a cabeça e voltou a encarar o nada, o perfume dele perfurando cada poro de seu corpo – um cheiro irresistível de sabonete, café e um toque de notas cítricas. Encarou-o de soslaio só para se certificar de que ele continuava lá, mas acabou surpreendendo-se ao encontrar os orbes negros fixos em seu rosto.

— Você está estranho hoje. — comentou e um sorriso de canto formou-se no rosto pálido.

— Jura? — ela desceu os orbes olivas para as próprias mãos quando o deus as capturou, esfregando-as com as próprias, na tentativa de aquecê-las. Sentiu uma eletricidade anormal percorrer seu braço, mas não se afastou. As mãos de Hades eram quentes, grandes e macias. — Bom, não é exatamente uma novidade — deu de ombros, com um brilho divertido no olhar. — as pessoas vivem dizendo que sou estranho.

— Eu não disse que você é estranho. — pontuou, arqueando uma das sobrancelhas. — Disse que está estranho. São coisas diferentes.

— Bem colocado. — sorriu. — E por que acha isso?

— Não sei. — sussurrou, embora não fosse exatamente verdade. Queria saber por que parecia tão abatido, saber o motivo da briga com Hécate. Conquanto, não era exatamente isso que a incomodava no momento. Não que Hades estivesse incomodando no sentido literal da palavra. Só era curioso tudo aquilo que acontecia entre os dois, o clima ameno e bom que se instalava quando estavam sozinhos. Acima de tudo, a forma com que a olhava. — Por que está me olhando assim?

— Não posso mais te olhar? — devolveu a pergunta em tom de brincadeira, observando-a rolar os olhos. — É porque você é linda. — Ela o empurrou com o ombro como se o repreendesse, mas não estava brava, tampouco fez questão de se desvencilhar das mãos dele.

— Você não tem um pingo de vergonha na cara, não é? — disse, sem graça, abaixando os olhos. — Sempre me elogia quando dá na telha. Assim eu vou ficar mal-acostumada.

— Bom, talvez eu possa não ter vergonha na cara, como disse, — um sorriso brincou em seus lábios. — mas da minha sinceridade você não pode reclamar.

— Bom, — deu de ombros. — não vou dizer que não gosto.

— Ora, — ele coçou o queixo, fitando-a de cima a baixo. — quem é que não tem vergonha na cara agora?

Ela riu e ele a acompanhou.

— Como foi o encontro com Hermes? — resolveu questionar, apenas por curiosidade. Há muito tempo que não via o mensageiro.

— Normal. — exprimiu, simploriamente. — Nada demais.

Ficaram em silêncio por algum tempo, não um silencio incômodo – era familiar. Um daqueles momentos em que você só se contenta em apreciar a companhia do outro, como se conversassem, embora nenhuma palavra fosse dita.

— Acho melhor você retornar para o castelo. — Hades falou, levantando-se e esticando a mão para ajudá-la a fazer o mesmo. A jovem aceitou de bom grado, — Está muito frio e você deve estar faminta. O jantar deve estar pronto. — levou a mão até a capa que ainda pousava sobre os ombros dela, ajeitando-a, prendendo a gola de forma que a protegesse melhor do frio. Perséfone limitou-se a fitá-lo longamente, sem nem perceber o que fazia, enquanto ele mantinha-se absorto, concentrado em fechar os botões. — Pronto. — alisou os ombros dela, sorrindo minimamente.

— Tem certeza de que não quer a capa de volta? — hesitou, meio incerta de continuar com a vestimenta.

— Não precisa. Buscarei outra agorinha.  

— Você não vem comigo?

— Não. — negou, sem desviar o olhar do dela. — Tenho que... fazer uma viagem de última hora.

— Uma viagem? — ela pareceu interessada, de repente.

— Isso. Tenho alguns assuntos a resolver. — decidiu não entrar em detalhes. Seria melhor assim. — Partirei em uma hora.

— E — a moça ponderou por algum tempo, como se pensasse se deveria ou não fazer a pergunta — essa viagem...

— O que tem, querida?

— Você vai demorar para voltar?

Ele manteve a expressão neutra, porém, fogos de artifício explodiam em seu peito. Mesmo desejando o contrário, não pôde controlar a pontinha de esperança e otimismo que surgiu em seu interior. Perséfone não parecia ter noção do que acabara de dizer, mas Hades, apaixonado do jeito que estava, percebeu.

Ela gostava da presença dele. Não queria que demorasse, porque sentiria sua falta.

Ele estava tão feliz que mal conseguia respirar.

— Chego antes do almoço. — informou, sorrindo minimamente, embora sua vontade fosse gargalhar de felicidade.  

— Então, nos vemos amanhã. — ela devolveu o sorriso com um olhar enigmático.

— É claro. Até amanhã, querida.

— Até.

Ela saiu com passos apressados para o castelo, puxando a capa para o corpo enquanto atravessava o jardim, o frio soprando gélido contra as árvores. Quando a jovem desapareceu de vista, entrando no calor do castelo, Hades resolveu deixar de lado os sentimentos e focar no que era realmente importante, no momento.

Foi com esses pensamentos que ele se encaminhou à coudelaria, para informar ao estaleiro sobre sua partida. Os pégasos precisavam ser preparados o mais rápido possível, afinal, seria uma longa viagem.  

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O início de abril trouxe um céu bonito, com mesclas de roxo, laranja e azul no horizonte, um anúncio de que não tardaria para o despertar de Apolo. Encostado no gazebo do jardim, em frente ao grandioso palácio no pico do monte Olimpo, Zeus observava a paisagem adiante com ares de impaciência, buscando vestígios de qualquer movimentação na penumbra.   

As tochas ardiam, fincadas na grama orvalhada, iluminando parcialmente as plantas. Parado e com os braços ao redor do próprio corpo, o homem tremia de forma imperceptível, protegido pela grossa capa de pele de cordeiro. O clima grego era sempre quente, contudo, aquela era uma madrugada particularmente gélida.   

Ainda que sutis, as mudanças que ocorreram desde o sumiço de Perséfone eram perceptíveis. A temperatura passou a oscilar, começando quente pela manhã, terminando gélida a noite; a colheita de trigo reduziu consideravelmente e a terra começava a mostrar os primeiros indícios de infertilidade. Foram dias difíceis, especialmente para Demetra. A mulher não saia de casa para nada, exceto encher o saco de Zeus, gritando aos quatro ventos para que ele trouxesse Perséfone de volta, como se o pobre homem soubesse do paradeiro da filha.   

Bom, até algum tempo ele realmente não sabia. Como poderiam culpá-lo? A garota simplesmente desapareceu em uma floresta, no meio da noite, sem deixar rastros. Não houve gritos ou qualquer sinal suspeito. Foi como se tivesse evaporado.   

É claro que mandou seus subordinados atrás dela - mais por uma questão de senso que por preocupação. Já esperava que a garota fosse dar um jeito de se livrar da insuportável da mãe, por muito tempo até achou que esse fosse o motivo do desaparecimento – e não a culparia, caso fosse.   

Um barulho fez com que abandonasse os pensamentos. Os olhos castanhos captaram a figura que se aproximava lentamente, em meio aos arvoredos, com o som dos sapatos apertando o cascalho e o contorno masculino ficando visível a cada passo. A feição de Hades nunca pareceu tão aterrorizante quanto agora, com a pouquíssima claridade. Uma energia negra o rondava, sugando toda a alegria ao redor, e a postura altiva o deixava ainda mais intimidador. Ele atravessou as plantas, a capa negra arrastando pelo chão e o cabelo caindo sobre a testa, despenteado, como se fizesse pouco caso daquele encontro.   

Os dois se encararam por um instante demorado. Os olhares foram significativos, e ambos, de certa forma, sabiam como tudo acabaria.   

— Irmão. Está atrasado. — Zeus quebrou o silêncio gélido, odiando o vento álgido da madrugada. Hades, por outro lado, estava bem à vontade com a temperatura. — Como foi de viagem?   

— Bem. — Deu de ombros, pouco comovido com as preocupações do caçula. — Deixei meus cavalos no estábulo. Espero que não se importe.   

— Claro que não.   

O assobio do vento preencheu o silencio que se instalou entre os dois.   

— Deixemos as informalidades de lado — Hades tornou a falar, dando uma olhadela aos arredores, só para se certificar de que estavam sozinhos. — e vamos ao que realmente interessa.   

— Certo. — murmurou, sério. — Vamos ao meu escritório. É mais seguro. Não confio nos sátiros e nas ninfas que rondam por aqui; podem nos escutar.   

O moreno concordou com a cabeça, depois seguiu o senhor dos raios até a escadaria que levava ao interior do ilustre palacete, que brilhava na noite, convidativo, como uma enorme estrela. Andaram pelo salão principal, onde as festas eram dadas, e subiram uma enorme escada antes de passarem por vários corredores largos e tilintantes.   

O escritório continuava decorado até o canto mais esquecido, com móveis pomposos e paredes extremamente brilhantes para os olhos mal-acostumados do senhor dos mortos. Tudo naquele palácio reluzia, igual a uma grande bolha mágica de felicidade, o que Hades considerava irritante.   

Zeus se sentou atrás da escrivaninha, gesticulando para que o irmão fizesse o mesmo, na cadeira a frente.   

— Bom, — a voz do grisalho ecoou pela sala. — aqui ninguém poderá nos escutar.  Agora, — inclinou o corpo para frente, apoiando os braços na superfície lisa. — vamos começar nossa reunião. Você já sabe por que o chamei aqui.

— Como soube do paradeiro de Perséfone?    

Zeus o observou por um segundo, as lembranças vagando pela mente. Durante suas investigações, há apenas alguns dias, um de seus subordinados trouxe Nayra, a fiel ninfa de Demetra e melhor amiga de Perséfone, que estava junto da jovem deusa pouco antes de ela desaparecer. A náiade narrou detalhadamente os acontecimentos. Disse que Demeter permitiu a filha a passear no bosque, desde que fosse vigiada pelas ninfas. Passaram as horas seguintes no rio e, quando a noite caiu, por mais que tivesse tentado, Nayra não conseguiu impedir Perséfone de adentrar a mata, onde desaparecera. 

O relato da moça foi entediante, regado a choro e seria pouco proveitoso se não fosse por um único detalhe.

— Foi bem simples. — mentiu, só para se sentir um pouquinho melhor. Nenhuma pessoa conseguiu encontrar Perséfone porque ninguém realmente pensou na possibilidade de a garota estar no Submundo. E, mesmo que tivessem pensado, ninguém seria louco o suficiente para adentrar as terras dos mortos. — Conversei com uma das ninfas que estavam na noite do desaparecimento. Ela me contou algo interessante sobre Perséfone querer adentrar a floresta para pegar um narciso dourado.   

Hades não mudou a expressão. Permaneceu indiferente, embora apertasse os lábios com um pouco mais de força, deixando-os em um tom quase cadavérico.  

— Bastou ligar os pontos. Os narcisos dourados são flores naturais do Submundo. — continuou. — Só nascem aqui, na superfície, se forem trazidas dos seus domínios. Foi quando concluí que tinha dedo seu no meio dessa história.  

O deus dos mortos endireitou-se na cadeira, ainda incomodado com o brilho das paredes.  

— Muito observador.   

— Para sua sorte, Demetra não faz ideia de onde essas flores vem. Ela nunca esteve no Submundo antes, então não possui qualquer suspeita sobre você. — comentou com certa impaciência. — Quero saber o que realmente aconteceu, Hades. Tenho certeza de que Perséfone não encontrou a entrada do Submundo sozinha. Além de mim e Hermes, poucos sabem a localização. Ou ela é uma mocinha muito sagaz e se esbarrou na entrada sem querer, o que, convenhamos, é impossível... ou você violou o nosso tratado, subiu aos meus domínios sem autorização e a levou.

Um sorriso de canto brotou no rosto do outro.

— De fato, o fiz.    

— Não é do seu feitio agir dessa maneira.  

— Mas aconteceu. E não me arrependo, se quer saber.  

O silêncio reinou mais uma vez enquanto os dois trocavam olhares significativos, os rostos iluminados pelas pouquíssimas velas esparramadas no cômodo. Havia uma janela enorme atrás de Zeus e dela era possível enxergar o horizonte encoberto por pesadas nuvens acinzentadas. O laranja começava a sobressair em relação aos demais tons que coloriam o céu. Estava quase amanhecendo.

— Não sei o que se passa em sua cabeça, Hades, mas não pode simplesmente fazer o que dá na telha. — suspirou pesadamente, cansado. — Já disse e torno a repetir: não pode ficar com Perséfone para sempre. A questão não é nem o fato de você ficar com ela, mas todos os problemas que isso vem me causando. Pouco me importo com quem ela anda, o que faz ou o que deixa de fazer, se está ou não com você. Claro, desde que minha paz não seja perturbada. Acontece que a última coisa que tive nos últimos dias é sossego.

A resposta não surpreendeu Hades. Zeus poderia ser qualquer coisa - um bom governante, um bom amigo, mas nunca um bom pai. Ele possuía um claro favoritismo pelos filhos mais fortes. Levando em consideração que Perséfone não passava de uma deusa menor, era de se esperar o pouco caso do senhor dos raios.

Ainda assim, ele não pôde evitar de se sentir profundamente irritado com isso.

— Demetra não vai sossegar enquanto nossa filha não retornar. — Continuou ao perceber que o mais velho não pretendia responder. — Ela está abatida. Não está trabalhando, se recusa a sair de casa. As plantações estão morrendo, o clima está insuportável. Logo os humanos serão afetados, as mortes aumentarão, e aí todo o trabalho pesado ficará para você. — o encarou profundamente — Ou acha que não sei que anda trabalhando mais do que deveria? Hermes me contou. Viu a quantidade de pergaminhos em sua mesa. Claro, seu trabalho sempre foi muito... digamos, difícil, mas ficará pior se continuar com a garota.

— Acha que não pensei nisso? — questionou, ainda irritado com o fato de o irmão sequer fazer questão de perguntar sobre o bem-estar de Perséfone, como se ela não fizesse a menor diferença em sua vida. — Sei das consequências. Ainda assim, não pretendo trazê-la de volta agora. Ela retornará, é claro, mas não nesse exato momento. Preciso de mais tempo.

— Certo. — ele passou os dedos calejados pelo cabelo grisalho e encarou o moreno com certa frieza. — Diga-me o preço.

— O que?

— Você escutou bem, Hades. — confirmou pausadamente. — O preço. O que quer em troca. Farei qualquer coisa que estiver ao meu alcance. Tudo o que desejar.

Um silencio interpôs entre os dois. Hades de repente, notou Zeus, fechou o semblante. Enrugou a testa, contorcendo a expressão em uma imagem sombria. A áurea negra que o rondava ficou um tanto mais escura e o cômodo, por algum motivo, pareceu mais gelado. Um vento forte atravessou as janelas, batendo nas costas do senhor dos raios, e apagou algumas velas próximas.  

— Acho bom tomar cuidado com o que fala, irmão. Perséfone não é uma moeda de troca ou uma marionete que você pode manipular quando bem entender. Ela não é um dos seus negócios — a voz de Hades saiu rouca, em um tom quase ameaçador. — e merece ser tratada com respeito. — sibilou, sentindo o sangue queimar. Zeus era mesmo maldito. — Além disso, não preciso do seu dinheiro ou de qualquer coisa que venha do Olimpo. Isso pouco me interessa.

O que se seguiu foi, no mínimo, incômodo. Os dois se fitaram por longos segundos, afundados em pensamentos, Zeus atônito e Hades com raiva. Nenhum dos dois soube o que dizer.

— Tudo bem. — o grisalhou respirou profundamente, tentando colocar os pensamentos em ordem. Estava sendo pior do que imaginou que seria. — Você levou Perséfone para o Submundo sem um motivo aparente, — pontuou. — não pretende ganhar nada com isso e, como se não bastasse, mesmo sabendo dos riscos, se recusa a trazê-la de volta. Sinceramente, — soltou a respiração, com os olhos erguidos para o rosto jovial do irmão. — a conclusão que tiro disso é que você está completamente maluco!  Não posso permitir suas loucuras!

Hades massageou as têmporas, sentindo o pouco que restara de sua paciência esvair. Ele não contaria suas verdadeiras razões, que estavam mais que evidentes. Era incrível como o senhor dos raios conseguia ser inteligente para certas coisas, mas completamente burro para outras.

— A minha sanidade não é a questão aqui, Zeus. — tentou manter a respiração compassada. — Tive meus motivos para fazer o que fiz. Você sabe que não ajo por impulso, que penso muito bem nos meus atos. Mas não é isso que quero discutir. Vim a essa reunião não para escutar o que tem a me dizer, mas para cobrar o favor que me deve.

O deus do olimpo abriu e fechou a boca, contudo, não houve qualquer som. A afirmação foi chocante o suficiente para o deixar sem palavra por alguns segundos.

— Eu não te devo nada! — esbravejou, uma veia saltando de irritação.

— Sabe muito bem que deve. Basta eu abrir a boca, e as coisas vão realmente ficar feias para o seu lado.

— Você é mesmo ardiloso, Hades. — o grisalho disse, sem se deixar abater. — Mas está brincando com fogo. Independentemente do que faça ou o que diga, ninguém acreditará em você. É a minha palavra contra a sua. E, bom, você não é muito popular.

Os olhos de Hades faiscaram na penumbra.

— Você tem razão, admito. — sorriu pequeno, coçando o queixo, fingindo pensar. — Não sou popular, é claro que não, mas há alguém que compartilha dos meus pensamentos. Conhece a Nyx, não conhece? — alargou ainda mais o sorriso ao ver a expressão chocada no rosto do irmão. — Ela é uma lenda, todos sabem disso. Respeitada em cada canto do universo. E, bom, ela acredita em mim. Seria realmente um problema se ela resolvesse contar a alguém, não é mesmo?

— Eles não acreditariam. — respondeu rapidamente, tentando parecer firme, contudo, a voz falhou levemente nas últimas palavras.

— Podem até não acreditar... Ainda assim, algo dessa magnitude geraria um grande tumulto, não? — respondeu simploriamente. — Está mesmo disposto a arriscar?

A julgar pela expressão, Zeus não estava nada feliz com o fato de a situação ter saído do seu controle. Hades, por outro lado, parecia satisfeito consigo mesmo. Aquela era uma carta que vinha guardando há muito tempo. Não esperava usar essa artimanha tão cedo, buscava uma solução mais amigável para o problema, contudo, como o caçula não estava disposto a cooperar, a situação merecia uma atitude um pouco mais drástica.

— Isso é uma ameaça?

— Prestação de contas, ameaça... Encare como quiser.

Os dois se encararam e o passado veio à tona como uma verdadeira avalanche. É verdade que vinham tentando viver em paz há muitos éons, contudo, as pendencias ainda pesavam, de forma que não existia uma clara harmonia entre os dois – o que, querendo ou não, era compreensível. Zeus sentia-se ameaçado e Hades, injustiçado. 

Os problemas entre eles começaram ainda no início dos primórdios, quando era Cronos quem governava o universo. O deus do tempo era a principal divindade da primeira geração de titãs e não passava de um homem amargurado e negativo, embora ambicioso – tão ambicioso que chegou ao ponto de tentar matar os próprios filhos, Hades, Zeus e Poseidon, temendo que pudessem tirá-lo do poder. O três lutaram lado a lado por dez anos contra o próprio pai e, ao derrubá-lo, trancafiaram-no no Tártaro.

O mundo, então, foi dividido entre os três. Dizem que a sorte destinou os irmãos a cada domínio. Contudo, essa está longe de ser a verdade.

Hades, sendo o mais velho, de acordo com um antigo tratado, é quem deveria ter assumido o lugar de Cronos. Em outras palavras, ele é quem deveria governar o Olimpo.

Ainda assim, por tudo o que passaram na guerra e por ter sido salvo pelo caçula, o rapaz cedeu sua posição a Zeus. Não se arrependia disso. Fizera tudo por gratidão.

Ele só não esperava ser apunhalado pelas costas ao ser proibido de subir a superfície por um tratado idiota, contendo cláusulas e mais cláusulas, cada uma mais absurda que a outra. Como se não bastasse, vieram os boatos terríveis e mentirosos ao seu respeito, que foram espalhados mundo a fora a mando do senhor dos raios, com o intuito único e exclusivo de detonar sua imagem.

O que ele não sabia é que Zeus tinha medo de que voltasse atrás com sua palavra e tentasse ganhar de volta seu lugar no Olimpo. Tinha medo de que as pessoas se afeiçoassem ao senhor dos mortos, porque embora tivesse força, Hades possuía qualidades que nenhum dos Três Grandes possuía: inteligência e um grande coração.

Ele tinha o perfil de um líder.

Na cabeça de Zeus, seria muito mais simples manter-se no poder sem sofrer ameaças caso isolasse o irmão de tudo e todos. Afinal, se teve algo que herdou de Cronos, foi a sede pelo poder.

Ao menos, Hades tinha o apoio de Nyx – que valia pelo apoio do Olimpo inteiro, afinal, a Noite era uma Deusa Primordial, um dos seres mais poderosos, sendo parte da criação.

Nem mesmo Zeus ousaria dizer um ‘a’ contra ela.

— O que você quer, Hades? — perguntou, por fim, vendo que não havia opções melhores que resolver ceder as vontades do irmão mais velho. Os orbes escuros o fitaram por um momento, contemplativos, as chamas das velas bruxuleando na íris negra.  

— Preciso de mais tempo. — tornou a repetir. — Dê um jeito de controlar Demetra e continue mantendo o paradeiro de Perséfone em segredo.

— As coisas não funcionam assim. — rebateu. — Posso controlar o mundo humano e o Olimpo, mas não o que os outros sentem.

— Sei disso. — afirmou. — Não estou dizendo para controlar os sentimentos dela. Apenas apazigue a raiva. Dê um motivo a ela para acreditar que reencontrará a filha – e não será mentira, de qualquer forma. Não pretendo mantê-la comigo para sempre. 

— Não é tão simples assim. Aquela mulher é absurdamente maníaca e controladora, você sabe muito bem disso.

Hades semicerrou os olhos quando os primeiros raios surgiram entre as nuvens e atravessaram a janela. Ele se levantou, ajeitou a capa nos ombros e caminhou até a porta, ignorando os protestos do irmão caçula.

— Só faça alguma coisa, Zeus. — fez uma breve pausa, contemplativo, observando o grisalho por cima do ombro, a mão sobre a maçaneta. — e acrescentou: — Entre em contato comigo só para me dizer que arranjou uma solução para esse problema. Você é inteligente, com toda certeza pensará em algo. Me ajude, e ficaremos quites.

E saiu da sala sem dar a chance de Zeus responder, batendo a porta com força, pronto para retornar ao Submundo.


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Notas finais do capítulo

E aí? O que acharam?



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