Florescer escrita por Bruninhazinha


Capítulo 12
O pergaminho


Notas iniciais do capítulo

GENTE DO CÉU, eu sei que demorei HORRORES, e peço perdão, mas é que estive tão ocupada com a faculdade que acabei deixando a escrita um pouco de lado. Confesso: tive um bloqueio criativo terrível também, mas a linda da Giullia me ajudou, mandou umas dicas e acabou que deu tudo certo ♥
A todos que comentaram capítulo passado, um muito obrigada! Vocês são incríveis, agradeço de coração pelo carinho!
Espero que gostem desse capítulo!



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O pergaminho

A temperatura amena rompeu o frio invernal sem expectativas de chegada naquela manhã de segunda-feira. Era a primeira vez que realmente fazia calor no Submundo, tanto que Perséfone deixou de lado os xailes, optando apenas por uma toga de alças que serviria para passar o dia.

Caminhando pelos corredores extensos, ela não pode deixar de estranhar aquela sensação de liberdade nova. Mesmo que estivesse há algum tempo no Mundo Inferior, tudo continuava novo e irreal. Ninguém a proibia de fazer as coisas e podia ir aonde desejasse. Para uma pessoa que passou a vida inteira sendo controlada com punhos de ferro, esse sentimento de autonomia, de manumissão, não poderia ser melhor. Certamente, ficaria mal-acostumada se as coisas continuassem assim.

Ainda era cedo, praticamente fim de madrugada. O sol nascia no mundo dos humanos, contudo, na terra dos mortos o céu continuava estrelado, com a lua brilhando em todo seu esplendor, cintilando grandeza e iluminando as montanhas que se erguiam atrás do suntuoso palácio de torres góticas. Os empregados dormiam e o corredor permanecia mergulhado em solidão.

Não era um hábito dela estar de pé tão cedo. Geralmente só acordava com o movimento dos empregados, que passavam cochichando em frente aos seus aposentos; contudo, de algum modo, Perséfone acabou abandonando o conforto dos lençóis antes do horário, sentindo-se particularmente agitada. A ideia de esperar por horas até que todos estivessem de pé não lhe era agradável, por isso imaginou que seria mais divertido passar seu precioso tempo na biblioteca, trabalhando com a pintura inacabada que pretendia entregar a Hades.

Exatos dois dias transcorreram desde a conversa sobre Menta e o peculiar encontro com Hécate. As duas não dialogaram muito nesse meio tempo, quase nem se encontraram e a feiticeira parecia estar sempre ocupada ou interessada demais em algum livro grosso, exibindo uma fisionomia de desgosto – estava começando a desconfiar que a cara de Hécate era naturalmente assim. Claramente, ainda havia um longo – muito longo – caminho a ser trilhado até que elas verdadeiramente se entendessem – se é que isso aconteceria algum dia –, porém, o fato de terem dado uma trégua não deixava de ser um bom avanço.

Foi com esses pensamentos que a moça adentrou a biblioteca, pronta para mais uma sessão de pintura. Recolheu os materiais escondidos atrás de uma das prateleiras, depois afundou no sofá localizado ao centro. Estava na metade do esboço quando seus olhos captaram a silhueta parar no corredor para espiar o interior do cômodo.

— Que surpresa agradável, querida! — a familiar voz preencheu o silêncio. — Como vai?

— Bom dia, Nyx! — a jovem deusa respondeu com um sorriso largo, depois fez um gesto para que Nyx se sentasse ao seu lado. A mais velha atravessou o cômodo alegremente, o barulho dos saltos contra o piso de mármore e a chama dos castiçais bruxuleando nos orbes púrpuros. Como sempre, carregava uma daquelas bandejas, dessa vez carregada com biscoitos achocolatados. — O que faz de pé tão cedo?  

— Acabei me deitando antes do horário, noite passada. — Ela afundou ao lado de Perséfone, oferecendo alguns biscoitinhos. A mais nova aceitou de bom grado, mordendo uma lasquinha do chocolate. — Estava morta de fome. Não resisti e fiz alguns.

— Você que fez? Ficaram ótimos!

— Fico feliz que tenha gostado.  — abanou a mão na frente do rosto, como se não fosse nada. — Teria feito um chá se soubesse que te encontraria aqui na biblioteca.

Perséfone deliciou-se com mais alguns biscoitos. O cômodo foi preenchido pelo cheiro do chocolate e o vapor subia até as narinas, causando uma deliciosa sensação de aconchego. Estavam quase terminando quando, pela primeira vez, a Noite percebeu os objetos em seu colo.

— Não sabia que se interessava por pintura, querida.  

— Não é bem minha praia — revelou, franzindo a testa, lambendo os dedos sujos. —, mas estou tentando.

Não diria a Nyx suas intenções de presentear Hades; tinha a impressão de que a deusa entenderia completamente errado se soubesse da verdade. Era um segredo que morreria com ela – e com Hécate, que não era lá a pessoa mais confiável do mundo, mas isso não vem ao caso.

— Para uma principiante, até que está se saindo bem. — a mais velha elogiou, verdadeiramente impressionada. — Eu não levo o menor jeito com isso. Hades até tentou me ensinar, certa época, mas logo desisti. Admiro quem tem paciência com essas coisas. Falando nisso, já viu as pinturas dele? — Perséfone acenou com a cabeça em um “sim”. — Incríveis, não?

Tinha que concordar. As pinturas de Hades pareciam quase vivas. A de Menta que o diga.

— Mas, diga-me, meu bem — inclinou o corpo na direção da mais nova. — como está sendo sua estadia?

— Ótima. Estou me acostumando melhor, e as pessoas são bem agradáveis. — revelou, entusiasmada. — Até a Hécate resolveu ser legal comigo, esses dias.  

— Ah, fico verdadeiramente aliviada. — levou a mão até o peito, suspirando, com um sorriso nos lábios e os olhos apertados, salientando as ruguinhas que sobressaltavam toda vez que ria. — É bom saber que vocês finalmente estão deixando as diferenças de lado. A Hécate parece ser fria, mas tem um bom coração. Tenha paciência e com o tempo vocês se darão bem.

Perséfone concordou com a cabeça, observando uma ligeira mudança no comportamento de Nyx. Os olhos púrpuros de repente adquiriram um brilho muito suspeito de quem sabe das coisas. A mais velha inclinou o corpo na direção dela, como se quisesse lhe revelar um segredo.

— Há algo que venho querendo saber, meu bem. — abaixou o tom de voz, encarando-a diretamente nos olhos, como se analisasse cada um de seus movimentos. Perséfone sentiu-se estranha, de repente. — Como Hades vem lhe tratando?

— Da melhor maneira possível. — respondeu simploriamente e pegou o último biscoitinho que restou na bandeja, mordendo, em seguida, a beiradinha.   

— E?

— E, o que? — indagou, arqueando as duas sobrancelhas, inquieta.

— Quero saber o que acha dele.

Perséfone quase se engasgou com uma lasquinha de chocolate. Recebeu palmadinhas da deusa da noite, que pareceu preocupada. Felizmente, a mais nova logo recuperou a compostura, ainda atônita.

— Acho ele... legal?

— Ah. — a outra tamborilou os dedos na perna, abrindo um sorriso amarelo, nitidamente insatisfeita com a resposta. — Legal. Certo, já é alguma coisa. — sussurrou a última parte bem baixo, só para si mesma, contudo, a deusa menor conseguiu escutar. — E o que mais, querida? Não é possível que essa seja sua única impressão dele depois de passar duas semanas aqui.

Perséfone abriu a boca, confusa com o rumo que a conversa estava tomando.

Percebendo que não seria deixada em paz enquanto não respondesse corretamente – havia uma resposta correta para algo assim? –, Perséfone olhou para cima, claramente pensativa, tentando organizar as ideias.

O que achava de Hades?

Não era uma pergunta lá muito fácil. Ele era legal, como já disse. Educado, polido, com bons modos. Um verdadeiro cavalheiro. Sentia um pouco de medo dele no início – o deus tinha um jeito meio obscuro –, contudo, o passar dos dias mostrou lados que ela jamais pensou um dia conhecer.

Também gostava do humor dele, sempre ácido, e da conversa fluida. Eles se davam bem, de um jeito estranho, o que só tornava tudo mais divertido.

E, claro, tinha a outra parte— a parte que ela tentava a todo custo ignorar. Ele era bonito. O rosto charmoso, cheio de ângulos, proporcional. O corpo esguio, alto e forte, com músculos bem definidos. O cabelo escuro contrastando a pele de marfim. Havia também os olhos, negros como um abismo, que parecia sugar a alma dela para fora do corpo toda vez que a encarava.

A verdade é que ele era bonito e um pouco mais— mas preferia manter os outros adjetivos longe da cabeça.

— Acho ele inteligente. — disse, por fim, e não era mentira. Hades era uma das pessoas mais inteligentes que conhecia, embora essa fosse apenas uma das inúmeras qualidades dele.   

— Claro, claro.  

A julgar pelo semblante pouco animado da Noite, aquela tinha sido a resposta errada.

— Ele é interessante. — tentou mais uma vez.

— Sério? — Nyx pareceu descrente. — Interessante?

Perséfone abriu a boca para dizer algo, mas um pigarro a interrompeu. Hypnos estava encostado no batente, com os braços cruzados e um sorriso mínimo nos lábios, observando-as com seus olhos de águia. O cabelo prateado brilhava com a luz dos castiçais.

—  Há quanto tempo está parado aí? — Nyx esbravejou, semicerrando os olhos para o filho.

— Tempo o suficiente para saber que a senhora está aprontando. — respondeu, piscando para Perséfone, que ficou ainda mais perdida.

— Ora, isso é jeito de falar com a sua mãe? — a mulher continuou a retrucar. — Acho que você anda passando tempo demais com seu irmão. Ser abelhudo e mal-educado é função dele!

— A senhora não fica para trás. — ele retrucou, arqueando uma das sobrancelhas, como se a desafiasse e apertou os lábios, segurando uma gargalhada. Nyx parecia uma bomba-relógio, prestes a explodir para todos os lados, de raiva. Achava engraçado como a mãe ficava afetada por qualquer coisa que os filhos dissessem. — Onde já se viu uma donzela como a senhora, mãe, ficar rodeando os outros como um abutre? Isso acaba com a reputação.

Nyx murmurou algo como “intrometido” e “nem parece que fui eu quem criei”.

— Não seja rabugenta, mamãe.  Eu só estou brincando.

— E ainda me chama de rabugenta!

Ele quase rolou os olhos. Perséfone segurou uma gargalhada.

— Enfim, — o rapaz mudou de assunto, voltando o olhar para a deusa da primavera. — só estou aqui para cumprir ordens. Hades pediu para que eu viesse aqui perguntar se a lista está pronta.

Perséfone demorou quase dois minutos para entender do que ele estava falando. Quando a ficha caiu, era tarde demais. 

— Esqueceu, não é mesmo? — ele alargou o sorriso. — A lista com tudo o que você quer. — explicou.

— Sinto muito. — Coçou a nuca, desconcertada. — Me esqueci completamente disso. Já deve ser a terceira vez que Hermes vem atrás da lista e eu não a fiz. Sempre esqueço.

— Bom, eu até ficaria para ajudar, mas não posso. — lançou uma olhadela rápida para o corredor. — Tenho algumas coisas para resolver. Mas ainda há tempo, Perséfone. Hermes chega em uma hora. 

— Pode ficar despreocupado, querido. — a Noite disse, agora mais branda. — Eu a ajudo.

— Ah, não precisa, Nyx, é sério. — a mais nova recusou depressa, visivelmente preocupada. — Não quero te ocupar com as minhas besteiras.

— Não é incomodo algum, meu bem.

— Bom, vou deixar vocês a sós novamente. — Hypnos comunicou, saindo com um aceno de cabeça, fechando a porta em um baque surdo.

Elas ficaram sozinhas novamente, mergulhadas no silencio.

— Vamos ao trabalho, então. — Nyx bateu palminhas, levantando-se com leveza, para dar a volta no sofá até a escrivaninha. Perséfone a acompanhou, observando a mais velha arrastar a cadeira para sentar-se. — Onde será que enfiaram aquela pena...? Ah, achei! — puxou uma pena, tinta e um pergaminho de dentro da gaveta.

— Ah, Nyx, não precisa!

— Eu quero ajudar, querida. É sempre bom passar um tempo com uma amiga tão especial como você. Venha, sente-se. Vamos fazer essa lista.

Perséfone acomodou-se na cadeira ao lado, feliz saber que era uma amiga especial para a deusa da noite.

Nyx, por outro lado, só pensava em como Hades estava sendo devagar. Ele precisava de um empurrãozinho.

E ela pretendia ajudar.

+

Aquela manhã estava sendo atípica para Hades, a começar pelo fato de ele ter dormido a madrugada inteira, o que por si só era um acontecimento e tanto.

Além disso, ninguém apareceu para o café da manhã, apenas Hypnos, que não ficou na sala mais do que um minuto. Ele só enfiou uma torrada na boca e saiu correndo, sem dar maiores explicações. O senhor dos mortos deu de ombros e continuou a esperar pelos outros, no fundo sabendo que ninguém apareceria.

Em algum momento, ele desistiu de esperar. Serviu-se com leite, biscoitos e beliscou um pedaço de pão, pouco animado. Odiava comer sozinho. Para ele, refeições em família eram quase sagradas, isso sem mencionar que era um dos poucos momentos em que conseguia passar algum tempo com Perséfone.

Antes de realmente ir embora, Hypnos comunicou que a jovem deusa estava na biblioteca com a companhia da Noite, organizando a lista, e acabou que Hades decidiu não as interromper. Seria bom para Perséfone socializar com alguém que não fosse ele ou o desmiolado do Tânatos.

Suspirando pesadamente, ele abriu um livro, pousando os olhos sobre a página amarelada. Havia pego um exemplar do escritório para ler mais tarde – e no fim das contas foi uma escolha feliz, afinal, serviria para não o deixar entediado pelas próximas horas. 

— Bom dia.

Talvez nem fosse necessário. 

Hades levantou os olhos negros para a figura feminina, parada na entrada com o rosto contorcido em uma careta estranha. Os orbes escuros passearam rapidamente pela sala, só para se certificar de que aquilo não era um delírio e que ela estava mesmo conversando com ele normalmente.

— Bom dia. — respondeu, por fim, ainda perplexo. Realmente, estava sendo um dia atípico. — Como vai, Hécate?

— Bem.

Houve um longo silêncio.

— Por que não se senta?

E ela o fez. Encaminhou-se para a outra ponta da mesa, visivelmente tentando manter-se o mais distante possível, como se ele fosse um trasgo.

Isso o incomodou. 

— Sabe, temos vários lugares vagos. — sorriu amarelo, tentando descontrair um pouco. — Por que não fica perto de mim? Eu não mordo.

A resposta foi um olhar gélido. 

— Estou mais confortável aqui. Obrigada.

— Certo.

Desagradável - sim, a palavra perfeita para descrever os minutos seguintes. Havia uma clara tensão no ar, um incômodo quase palpável. Hades não esperava que as coisas fossem chegar naquele ponto.

Quer dizer, tudo bem, até entendia o fato de Hécate não gostar de Perséfone. Não estava exatamente surpreso, porque ela não gostava de quase ninguém, mas precisava disso tudo? Ficar sem falar com ele por semanas?

— Vai mesmo continuar me ignorando?

Ela não respondeu.

— Precisamos conversar, Hécate. — insistiu, fechando o livro em um baque surdo, colocando-o sobre a mesa, em seguida. —  Estou falando sério.

— Não é o momento apropriado. — ela murmurou, cutucando a comida intocada com o garfo, abaixando os olhos. 

— Estamos sozinhos aqui. — respondeu, relaxando as costas no encosto da cadeira. —É o momento perfeito para termos essa conversa. Venha, sente-se perto de mim. — indicou a cadeira ao lado.

Hécate não moveu um dedo.

— Você não vem? Ok. Tudo bem. Então, eu vou.

E se levantou, andando com passos largos para que ela não tivesse tempo de fugir. Acomodou-se na cadeira ao lado dela, apoiando o braço sobre a madeira da mesa, reparando como ela estava pálida e assustada, com os olhos do tamanho de pratos, como se não acreditasse que ele estivesse aquilo.

— Por acaso você é surdo, ou o quê? — sibilou, tentando manter os olhos fixos no dele. — Eu não quero conversar.

— Você não pode me ignorar para sempre.

— Não só posso, — retrucou, empinando o queixo. — como vou

— Está agindo como uma criança.

— O problema é completamente meu. — cortou-o, com o rosto vermelho, não de vergonha, mas de raiva. — Não é assim que agimos agora? Cada um com os seus problemas, não é? Você mesmo disse isso. — acusou, cheia de mágoa.

— Eu só estou preocupado, Hécate, será que não percebe? — a segurou pelos ombros, com a aflição brilhando nos orbes. — Você não conversa com ninguém, só fica enfurnada no quarto ou na biblioteca, tudo por causa de uma discussão idiota! Se é que aquilo pode ser chamado de discussão. Mesmo assim, insiste em agir desse jeito infantil!

Ah, se Hades soubesse que aquilo não se tratava apenas sobre a discussão. Eles nem chegaram perto de brigar de verdade. Hécate só estava com raiva, com ciúmes e odiando o fato dele escolher outra, enquanto ela sempre estava lá, disponível, quase implorando pela atenção dele.

— Você, preocupado? — uma risada sem humor escapou pelos lábios avermelhados; ela sentiu as mãos dele afrouxarem o aperto em seus ombros. — Você não está nem aí para mim, Hades. Nem adianta negar. — acrescentou, percebendo que ele abriu a boca para responder, indignado. — Tudo bem, eu me isolei e estive te evitando. Admito. E o que você fez em relação a isso? — eles se encararam. A sombra da compreensão se passou pelo rosto dele. — Exatamente. Nada.

A atmosfera de repente ficou mais densa. Eles se encararam por um longo tempo, Hades sem palavras, como ela previra.

Os conselhos de Perséfone ainda ecoavam por sua mente — “... tente se resolver com ele”. Sabia que esse era o certo a se fazer, no entanto, seu maldito orgulho conseguia ser maior que o bom senso.

Observou-o esfregar as mãos, incomodado, sem uma resposta. Mas a verdade é que ele só estava pensando que ela tinha razão. Em todo esse tempo, não havia parado um segundo para pensar em como ela estava se sentindo sozinha e ignorada. Isso fez com que seu coração apertasse.

— O que está acontecendo, Hécate? — resolveu questionar, entendendo que aquilo não era só sobre a discussão ridícula que tiveram.

Ela abaixou o olhar para as próprias mãos.

— Só estou cansada. —  As palavras saíram sem que nem percebesse. — Nunca pensou em como é difícil para mim te ver desfilando por aí com a Perséfone todo feliz? Eu também tenho sentimentos, Hades. Sei que eu devia ter superado o que aconteceu entre nós, e pensei que tinha, mas percebi que não. — riu, mal-humorada, mirando um ponto qualquer da sala. — Ainda estou tentando me acostumar com o fato de você estar seguindo em frente com outra pessoa. 

— Entendo. — ele a soltou, finalmente, escorando a coluna no encosto da cadeira. Era isso, então.

Ela ainda estava apaixonada por ele.

Hades sentiu uma dor de cabeça insuportável, em choque com as informações jogadas em seu colo. Apertou a glabela, depois massageou a têmpora esquerda com os pensamentos longe.

— Sinto muito, Hécate. — disse em um sussurro, tentando cortar o silêncio incômodo entre eles.

— Não precisa dizer nada. — exprimiu, simploriamente, juntando as mãos sobre os joelhos. — Nós já tivemos essa conversa antes, há muitos anos, e você foi bem claro sobre o que sentia por mim.

Ele murchou os ombros levemente, deprimido. Suspirando, Hécate resolveu abrir um sorriso pequeno.

—  Não é culpa sua, Hades. — deu dois tapinhas no ombro masculino. — Não é como se pudéssemos controlar o que sentimos. Você não pode me retribuir, e está tudo bem.

Observou a expressão no rosto másculo. Ele estava atônito, para dizer o mínimo. Nada que ela não esperasse. 

As batidas na porta ecoaram pelo cômodo, chamando atenção dos dois. O deus permitiu a entrada. Era uma alma serva, que deu um passo para dentro, fazendo uma reverencia respeitosa, sem se dar conta do clima tenso que pairava no ar.

— Meu senhor, — a mulher baixa, de cabelos encaracolados, começou. Mantinha as mãos na frente do corpo e usava um avental branco por cima das vestes maltrapilhas. — Hermes o espera no escritório.

— Ah, certo. — respondeu, um tanto desconcertado. O clima estava tão sobrecarregado que esqueceu-se completamente de Hermes. — Obrigado pelo aviso.

A alma curvou antes de sair e Hades, passando a mão pelos fios escuros, não viu uma alternativa além de fazer o mesmo. Ele se levantou e saiu com passos largos, mas algo o deteve na porta. Olhando por cima do ombro, encarou a deprimida Hécate, que não movera um músculo do lugar, ainda com o olhar perdido.

— Eu amo você, Hécate. — disse, depois de alguns segundos em silêncio, observando-a levantar o rosto com os olhos arregalados, do tamanho de pratos. — Não do jeito que você quer, mas amo. Você é a minha família. Sei que para você é difícil escutar isso, dada a nossa situação. — disse a última parte com cuidado. — E entendo que precise de mais de espaço. Só não pense que eu não me preocupo ou que sou indiferente a você.

Com essas palavras ele saiu, deixando a pensativa deusa para trás.

+

O deus dos mortos não soube por quanto tempo caminhou, ou se chegou a adentrar algum corredor errado. Estava tão perdido, tão confuso, que não sabia nem o que pensar. Ele só seguiu reto, batendo a sola do sapato contra o piso de pedra e a visão borrada.

A conversa tinha sido intensa até para ele, que estava acostumado a tratar de assuntos diplomáticos com deuses poderosos. Acontece que, quando se tratava de sentimentos, ele era particularmente péssimo.

Ao menos, fora sincero. Odiava ser o motivo dos sofrimentos de Hécate, mas não podia alimentar os sentimentos dela, não dessa vez. Ela precisava superar, seguir em frente e, se para isso fosse necessário afastar – como ela bem fez nos últimos dias – que assim fosse.

Estava tão perdido em pensamentos que quase se assustou ao escutar o baque de uma das portas do corredor. Perséfone acabara de sair da biblioteca, carregando nas mãos um pergaminho e mantendo um sorriso que revelava todos os seus dentes perfeitamente brancos e alinhados.

O coração dele falhou uma batida. Estava tão bonita.

— Ah, Hades! — ela acenou, acelerando os passos em sua direção. — Bem a tempo! Ia te procurar para entregar isso. — esticou a mão e ele apanhou o pergaminho.

— O que é isso?

— A lista. — respondeu, arqueando uma sobrancelha. Uma sombra de compreensão se passou pelo rosto dele.

— Colocou tudo o que quer? — perguntou, abrindo o pergaminho, recebendo como resposta um balanço confirmativo de cabeça. Ela o observou atentamente enquanto ele lia, notando a expressão neutra dele transformar-se na mais pura indignação. — Mas... o quê? Pá metálica?

— Essencial. — pontuou, encarando-o como se o desafiasse a dizer o contrário. Ele nem retribuiu, ainda perplexo com a lista em suas mãos.

Forquilha?

— Para mim é indispensável.

— Tesoura de podar? — enfim, a fitou. Ela estava com uma expressão de poucos amigos, mantendo os braços cruzados embaixo dos seios, levantando-os de um jeito que ressaltava o decote. Hades teve que fazer muita força para focar apenas no rosto dela. — Essas coisas são perigosas! 

— Claro que não! — fez um gesto com a mão, como se descartasse. — Eu preciso disso para cuidar do jardim. Aqui quase não tem nada que ajude e eu quero te ensinar a usar todo esse material. Ou acha mesmo que esqueci do nosso acordo

Sinceramente, ele estava torcendo para que ela tivesse esquecido – era péssimo com plantas, tanto quanto ela era péssima com jogos –, mas não disse em voz alta.

— Tudo bem. — enfiou o pergaminho no bolso da capa, pensando que não tinha como negar qualquer coisa a ela. Como poderia? — Tem certeza de que não quer nada além de utensílios de jardinagem? Roupas, joias?

— No meu armário tem roupas o suficiente para a eternidade. — ela respondeu, abrindo um sorriso largo. — Já estou satisfeita com o que tenho.

Ele sorriu, contente. Perséfone era mesmo uma pessoa simples – o que só fazia com que ele gostasse ainda mais dela, se é que isso era possível.

Houve um minuto de silêncio, e ela o fitava de um jeito estranho.

— Hades.

— Hm?

— Você está bem? — questionou, arqueando uma das sobrancelhas, analisando-o com seus orbes felinos e incrivelmente verdes.

— Estou. — mentiu, não querendo transparecer as cismas com tudo o que ocorreu entre ele e Hécate mais cedo. Preocupar Perséfone com tolices não era nem uma opção.  

— Tem certeza? — insistiu, desconfiada. — Você parece pálido.

— Eu sou pálido. — ela rolou os olhos. — E não dormi direito. — acrescentou, mentindo sem qualquer remorso.  

— Você é mesmo um cabeça-dura. — ela bufou, com um brilho de indignação nas esmeraldas. — Quantas vezes já te disse que precisa descansar?

— Não sei. — fingiu pensar. — Umas três?

— Pois sinto que foram duzentas.

— Não exagere. — riu, sentindo uma pontinha de felicidade no peito e o estomago gelar. — Mas obrigado por se preocupar. — e esticou a mão, acariciando o braço dela, subindo pela pele quente. Havia um emaranhado de cachos escapando do penteado lateral, caindo até os ombros. Ele enroscou o dedo ali e afagou uma madeixa, sem se dar conta do que fazia.

Não foi intencional. Ele estava com a cabeça cheia de coisas e acabou agindo por reflexo, porque toda hora se imaginava fazendo isso com ela. Tocando-a carinhosamente, como se tivesse permissão para fazê-lo.

Hades só se deu conta que estava ultrapassando os limites da intimidade quando o tom escarlate tomou conta de todo o rosto da moça. Nem as orelhas escaparam.

Então ele afastou a mão, com a expressão neutra, como se nada tivesse acontecido. E ela encarou os próprios pés. 

— Eu vou indo. — o deus disse, de repente, cortando o silêncio. — Hermes está me esperando. — ela só confirmou com um aceno. — Tem certeza de que não quer mais nada?

— Absoluta. — retornou a olhá-lo, e cravou as unhas nas palmas das mãos, sentindo-se estranha. — Nos vemos mais tarde?

— Claro. — respondeu, repuxando o canto dos lábios em um sorriso. — Até mais tarde.

Cada um foi para um lado, Hades repreendendo-se mentalmente por ter feito o que fez. Onde já se viu, sair encostando nela assim, sem mais nem menos?

Ao adentrar o escritório, deparou-se com Hermes parado ao lado da escrivaninha, um tanto impaciente. Cumprimentou o sobrinho e sentou-se em seu devido lugar, indicando a poltrona ao lado para que o mensageiro fizesse o mesmo.

— Peço desculpas pela demora, Hermes. — sorriu amarelo, pegando uma pilha de papéis de cima da escrivaninha para guardar em uma das gavetas. Em seguida, retirou o pergaminho do bolso e entregou ao rapaz.

— Não há problemas, Hades. Imagino que esteja muito ocupado, dada as circunstâncias. — a troca de olhares foi enigmática. — Eu a vi.

— É claro que viu. — respondeu, nada surpreso, com o timbre seco e o semblante frio. — E sei que não está aqui apenas para pegar a lista. O que quer, Hermes?

— Tenho algo para você.

Dito isso, outro pergaminho materializou-se na frente do deus, flutuando no ar, as bordas de ouro cintilando. Hades o apanhou e desenrolou. Não estava assinado, e nem precisava. Reconheceria aquela caligrafia grosseira em qualquer lugar.

Caro Hades,

Gostaria muito que essa carta fosse mandada em outro contexto. Que se tratasse de um baile ou das reuniões centenárias que você sempre reclama, dizendo serem desnecessárias e de mau gosto.

Infelizmente, por mais que tenha tentado, não posso ignorar os recentes acontecimentos.  E você não pode manter Perséfone presa para sempre.

Me encontre pela manhã no local de sempre.

Não é um pedido.

Ao contrário do que Hermes imaginou, Hades não esboçou qualquer reação negativa – nem mesmo uma expressão de desgosto. Apenas repuxou o lábio em um sorriso de canto e empurrou o canudo em cima da mesa como se aquilo não fosse nada.

Como se já esperasse.

Então virou o rosto na direção do sobrinho, com um estranho olhar de divertimento.

— Até que demorou, não?

Hermes arqueou uma sobrancelha castanha, perplexo.

— Só vai dizer isso? — questionou. — Acabou de ser encurralado e essa é a sua reação?

Hades deu de ombros.

— Por que todo esse alarde? Não há nada a ser dito. Uma hora vocês descobririam, já era de se esperar. — tamborilou os dedos na mesa, pensativo. — Quantas pessoas sabem que Perséfone está aqui?

— Eu e ele, apenas.

— Ótimo. Assim é melhor.  — fez uma pausa, analisando o semblante do sobrinho, que se mantinha tão sério quanto ele. — Tenho um favor a pedir.

— Sim, meu senhor. Qualquer coisa.  

— Mande uma resposta. — disse, apoiando o cotovelo sobre a mesa e o rosto na mão. — Diga a Zeus que estarei no Olimpo conforme as indicações, quando o sol nascer. 


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