Adele escrita por Camélia Bardon


Capítulo 18
XVII. Énouement


Notas iniciais do capítulo

Hoje o capítulo é mais curtinho (então vou deixar que ele fale por mim), mas tenho surpresas reservadas para vocês ♡ Talvez isso também tenha a ver com a mudança de capa, mas não se afoitem, o último é só o próximo mesmo.

Ademais, a música que me inspirou HORRORES para a composição desse capítulo foi "Always There", do Greta van Fleet: https://www.youtube.com/watch?v=_p7Jyyp_nDM

Boa leitura!



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Os verões em Avignon sempre foram quentes a ponto de beirar o insuportável. Me recordo de, quando mais nova, sempre erguer minhas saias um pouco acima dos tornozelos e de ir até o tanque de roupas, na intenção de respingar um pouco da água do tino em minha nuca. As Irmãs, em contrapartida, sempre me orientaram a usar um leque para me abanar graciosamente. "Mas", pensava eu com meus botões e saias erguidas, "por que tenho de usar um leque agora, sendo que nunca usá-lo-ei em sociedade?". Então, eu retornava para o tanque.

Com o verão de 1890, não foi diferente – talvez na exceção de que eu estivesse ligeiramente maior em estatura e idade. Quando nenhuma das irmãs me observava, eu corria para meu quarto e alçava o vestido até os joelhos, deixando a pouca brisa disponível me refrescar.

A rotina na Basílica, eu detestava admitir, era enfadonha. Na primeira oportunidade que tiveram, as freiras me puseram para confessar com o padre local. Tive de rezar não sei quantas vezes – e eu sequer recordava de como se rezava, então boa parte foi fingida ou enrolada –, mas, durante esse tempo de "remissão", ao menos eu possuía algo para passar o tempo. Isso e a leitura de Frankenstein. No entanto, foram apenas duas semanas. De uma provável vida.

Talvez devesse virar uma freira, para me livrar do tédio.

As outras duas semanas, que totalizaram o mês, foram compostas das tentativas da Irmã Josephine de me fazer ler a Bíblia com tanto afinco quanto a um livro. Certo, eu apreciava a leitura os Salmos e dos Provérbios. Quando inspirada, até lia as cartas aos Coríntios, pois os textos me eram pacíficos, contudo, não passava disso. Por outro lado, a Irmã Guyot, como que notando minha luta, me trouxe alguns títulos no mês seguinte, tais como As Viagens de Gulliver, A Abadia de Northanger (escrito por uma mulher!), Nicholas Nickleby e a antologia de contos de Os Três Mosqueteiros.

Consegui ocupar minha cabeça, portanto, até o final do verão. E, com a queda das folhas do outono, minhas esperanças de uma resposta da parte da sra. Lambert igualmente esmaeceram. E se o pior tivesse acontecido e ela estivesse morta? Céus! Quanta morbidez! Não... era mais provável que não tivessem conseguido localizá-la.

Missa atrás de missa. Reza atrás de reza. Eu adoraria fugir, mesmo que as irmãs fizessem tudo com tanto bom-grado. Melhor dizendo: eu adoraria que não me tratassem tanto como uma boneca de porcelana.

 

Certo dia, a Irmã Lefèvre veio aconchegar-se ao meu lado nas orações matutinas – cujas quais eu só aproveitava pelo silêncio que reinava pela Basílica para pensar. Fez que nem estava ali. Era engraçado; ultimamente, as quatro andavam um tanto ausentes. Repentinamente, comentou:

— Já está aqui desde maio, Adele. E já estamos quase em outubro. Foram quase cinco meses...

Como não sabia se se tratava de uma conversa casual ou um teste, apenas assenti com a cabeça.

— É um tempo considerável, de fato.

— Me pergunto como ainda não correu para longe daqui, minha menina.

Um teste. Isca pronta, esperando para que eu a fisgasse. Agora, para que?

— Bem... creio que não tenha para onde ir além daqui, Irmã. Por que eu fugiria?

— E o que me diz daquele jovem inventor? — ela ergueu uma sobrancelha ruiva, solícita. — Ano passado, vosmecê parecia tão feliz em sua companhia...

Novamente, meu coração se comprimiu no peito. Ah, Irmã, de todos os assuntos, o mais pertinente que encontrou foi esse...?

— Perdoe-me, querida. Não comentei na intenção de magoá-la. Foi apenas uma constatação.

— Sei disso. E não me magoou. Porém... sim. Estive feliz em minhas viagens. Mas acabou, como tinha de ser. Acrescido ao fato de que não tenho ideia de onde possa estar, ele... igualmente não é uma opção de fuga.

— E se soubesse onde ele está?

Voltei meu olhar para ela. Tinha chegado a minha vez de arquejar as sobrancelhas.

— Perdão?

— Sim, Adele. Se soubesse onde ele está, seria uma opção de fuga?

Me sentei um pouco mais distante no banco, concentrada nos ecos que a Basílica emitia, quando fora do horário de missas. Uma mulher ou duas agarravam-se a seus terços de madeira, buscando perdão pelos próprios pecados – ou quem sabe, de outrem?

Deus, por que eu tinha de ser tão curiosa e dispersa?

Pisquei para retomar o raciocínio, e remexi em minha saia, numa vã tentativa de domar minha inquietude.

— Talvez — sussurrei.

— Está com razão. É um cavalheiro deveras amável, não concorda?

— Irmã! — em meio ao meu protesto, senti minhas bochechas esquentarem, de genuíno constrangimento. Quantos anos eu tinha, afinal? Quinze? — D-decerto que sim, mas não creio que seja um assunto apropriado para...

— Uma freira? — ela sorriu, de maneira mordaz.

— Na verdade, eu iria dizer para... para a casa de Deus, Irmã.

Então, ela pôs-se a gargalhar, sobressaltando as mulheres que rezavam. Não consegui resistir a um sorriso, a observando abafar o riso com a palma da mão.

— Algum dia desses matar-me-á com tais comentários, garota levada...

— Diz isso desde que eu era uma criança, Irmã. Acaso seus pensamentos permanecem inalteráveis?

— É possível que sim. Mas pare de fugir do assunto!

— Qual? — perguntei inocentemente. — Estava me questionando acerca de meu posicionamento sentimental no que diz respeito ao sr. Banks?

— Sim, estava!

— Bem... eu escolho manter minhas opiniões para mim mesma. A menos que esteja aberta a um acordo — cruzei os braços em frente do peito, já que seria assim.

— Acordo? — seus olhos azuis faiscavam, revelando uma alma juvenil, apesar da idade. — De que tipo?

— Do tipo... eu respondo sua pergunta, contanto que responda uma minha.

A irmã Lefèvre hesitou, e colocou-se a cutucar uma cutícula.

— Temo que não seja possível, Adele.

— Então... nunca saberá. Sinto muito.

Soltando mais uma de suas risadas características, a Irmã se recostou mais no banco.

— Garota esperta. O que gostaria de saber?

— Quero saber por que apenas está tocando no assunto "Harvey" agora. Como a senhorita mesmo disse, já passaram quase cinco meses desde que estou aqui, e ainda mais tempo que não o vejo. Ao menos, em minha cabeça, não há motivos ou sequer um sentido.

Ela umedeceu os lábios, escolhendo as palavras mais agradáveis. Afinal, para ela, mentir não era uma opção.

— Porque queríamos dar-lhe algum tempo. Saber se seus sentimentos por ele foram positivos ou negativos ajuda a ter a ciência de até onde podemos prosseguir em termos de conversa, compreende? Se forem negativos após quase um ano, esse nome nunca mais será dito por mim, nem pelas outras Irmãs. Agora, se positivo...

Assenti com a cabeça. Agora fazia sentido.

— Bem... então isso lhe dá o direito de uma resposta — respirei fundo, brincando de entrelaçar as pontas dos dedos umas nas outras. — Às vezes, é como se estivesse presa num sonho ruim. Penso que vou acordar numa outra época. Com outra vida, outra história. E, nessa vida, eu não precisaria dar ouvidos à dor que insiste em martelar em meu peito todas as vezes que penso nele. Pois, nessa vida, sempre o teria ao meu lado. Então, essa dor não existiria. Não teria oportunidades de senti-la.

Fiz uma breve pausa para respirar, enquanto a Irmã Lefèvre se virava para me escutar melhor.

— Contudo, não posso viver sonhando com uma vida que não é minha. Minha vida consiste em ter de viver com essa dor no coração, e de relembrar os bons momentos que passei, ao invés de sofrer pensando em como teria sido — ri fraco. — E... agora que conheço como é o futuro, um ano depois, eu adoraria poder dizer à jovem Adele para aproveitar o tempo que teria, pois ficaria para sempre em seu coração.

Em silêncio, a Irmã se recostou em meu ombro. Escutei seu suspiro, por mais que estivesse decidida a não ceder à minha melancolia.

— Em suma, seria... sim, se soubesse onde ele está e, se ele aceitasse, eu o seguiria. Por onde quer que fosse — finalizei.

Parecia ser a resposta que a Irmã Lefèvre aguardava de minha parte. Ela ergueu a cabeça para mim, e sorriu de soslaio.

— Ora, nesse caso, é uma notícia excelente! — ela exclamou, exultante. — Se tivéssemos uma resposta negativa, a situação ficaria tão mais delicada...

Franzi a testa. Como?

Tivéssemos?

— Ah, sim! Nós...

Antes que ela pudesse me dar uma explicação decente, a narrativa da Irmã Lefèvre foi interrompida por um forte pigarro. Quanta grosseria! Então, algo curioso prendeu minha atenção. A mulher que rezava próxima a nós levantou-se e saiu da Basílica. Isso me fez instantaneamente acompanhá-la com o olhar. Direto para a entrada.

Bem a tempo de ver uma silhueta formando-se, adornada pelo sol das onze da manhã. Apenas tive pleno reconhecimento de quem era pela maleta que carregava e...

Ah, céus. A cartola. Harvey!

Observei o lar do meu coração deixar os pertences no chão e estender os braços. Hipnotizada e incrédula diante de tal cena, abandonei qualquer noção de decoro que sequer algum dia eu tivera.

Levantei-me de supetão e disparei até a entrada, trôpega e apostando corrida – entre meus pés e coração, qual seria o que estaria mais afoito?


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Notas finais do capítulo

*Énouement: segundo o dicionário das Tristezas Obscuras (https://noosfera.com.br/o-dicionario-das-tristezas-obscuras/), de John Koenig, trata-se da sensação agridoce de ter chegado no futuro, visto como tudo aconteceu, mas não ser capaz de contar para o seu "eu" do passado.

O obrigada especial de hoje vai pra Angelina Dourado, que me presenteou com a terceira recomendação da história ♡ ♡ ♡ gente, assim vocês me matam do coração! (A autora em questão teve um surto de fofura, e foi substituída por uma IA nesse momento)

Sinceramente, só postei esse e saí correndo. Podem surtar de amor à vontade HEHEHEH ♡ Até o próximo!