Adele escrita por Camélia Bardon


Capítulo 17
XVI. Se a guerra devasta, a paz corrompe


Notas iniciais do capítulo

Estou atrasada na postagem do capítulo, mas cá estamos xD

O título do capítulo de hoje vem de um trecho de "Paraíso Perdido", do John Milton. Vocês talvez entendam a escolha no decorrer da leitura. O tamanho está um pouco menor por motivos de: ainda vem o próximo *risada malvada*



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Obedientemente, prossegui em sentido aos fundos do jardim aguardar minha sentença. Com meus poucos pertences em mãos, ao descer as escadas cruzei o olhar com lady Lilian, que deixou de ser Lilian Moreau para tornar-se Lilian Chevalier. Seu olhar variou entre meu rosto e minhas mãos, e com um aceno de mão ela indicou um canto mais reservado. Procurei arregalar os olhos para indicar que meu tempo era limitado, no entanto ela não mudou sua expressão.

De algum lugar que não pude registrar – seria detrás de um quadro? Ou no meio de um livro? Quem sabe dentro de um bibelô? – Lilian tirou um pequeno envelope, e o entregou em minhas mãos. Quando ergui uma sobrancelha para questionar o conteúdo, ela apenas apertou meu polegar.

— Eu sabia que iria precisar disso mais cedo ou mais tarde, abelhuda como é… vosmecê já descobriu, estou certa?

Assenti com a cabeça, sentindo as bochechas esquentarem.

— Então, deve estar se perguntando qual é minha parte nessa história toda, não? — continuou ela, andando ao meu redor. — É a última peça desse quebra-cabeça, afinal. Me pergunto se conseguirá sobreviver com esse segredo guardado… 

— Lilian, por favor… 

Ela abriu um sorriso maldoso, deleitando-se com a minha confusão.

— Pois bem, Adele. Mas saiba que a curiosidade matou a gata.

— Caso não tenha percebido, senhorita, já estou a caminho da rua!

— É claro. Serei direta. O segredo desta mulher bem casada é o mesmo que de meu querido esposo. Não há complicações.

Franzi a testa. O mesmo? Espere, ela teria um caso com Pierre, igualmente, ou…?

E, subitamente, me veio o entendimento.

— Ah… — suspirei, passando o dedo indicador por uma sobrancelha. — Então, é uma via de mão de dupla.

— Exatamente. Mamãe queria que eu me casasse com um garoto, quando sempre gostei de garotas. E lady Anneliese queria que Thierry se casasse com uma garota, quando sempre gostou de garotos. Ela e a megera da minha mãe eram amigas, então concordaram na hora. É claro, sem a parte de que acobertar-nos-íamos mais cedo ou mais tarde. Paris é mais liberal do que Montpellier neste quesito, com tantos bordéis e… 

Ela parou para gargalhar. Pareceu lembrar-se de outra coisa, pois mudou radicalmente de assunto:

 — Por que acha que mamãe nunca me ensinou nada sobre meus períodos? Ela tinha pavor de sequer chegar perto de mim. Dizia que era errado, e impedia até as camareiras de me vestir. Dizia que eu não merecia e que iria seduzi-las. Mas… vosmecê ajudou a mim sem sequer hesitar, na noite do baile. Se recorda?

É claro que eu me recordava. E agora sua falta de pudor enquanto eu manejava os panos quentes era óbvia. Se algum dia me considerei inteligente ou ao menos com uma capacidade mínima de raciocínio, no casamento tudo que julguei saber se provou errado. Pegando minha mala de volta, enfiei lá o envelope que Lilian me dera e encarei-a por um segundo.

— Eu nunca hesitaria em ajudar alguém que precisasse de ajuda. Uma camareira não tem preferências.

E, milagrosamente, pela primeira e última vez, ela me diria algo gentil voluntariamente:

— Eu diria que faz parte de sua natureza. Bem poderia ser uma freira, se quisesse.

De volta às ironias. Agora sim, era Lilian falando. Como presente, sorri para ela e nos despedimos assim, de maneira peculiar como apenas era ela.

Não olhei para trás, e não procurei nenhuma das outras figuras da Casa Chevalier. Sienna, Bertoli e Ettore, Melina, lady Anneliese… não, seria pior. Já era péssimo o modo como Thierry me olhava, do jardim dos fundos. Com um olhar cauteloso. Eu quase podia ver sua mente maquinando. Se apresse. Se apresse, menina curiosa.

Remy não abriu a boca para questionar. Apenas observou taciturno enquanto o patrão deixava as malas na carruagem secular. É claro que não iria no carro da família. Era engraçado, nestes momentos, o Harvey mental não tinha nada a acrescentar…

Thierry me deu uma última olhada pela janelinha da carruagem, os olhos azuis que tanto brilhavam agora não me diziam nada. Coloquei uma mão sob o vidro, e ele me acompanhou. Mãos de tamanhos e formatos tão diferentes… as dele, grande e com dedos finos. A minha, pequena, roliça e com cortes de sabão ainda abertos. 

Bobagem a minha ter pensado algum dia que poderíamos ser mais do que isso. Mas nunca fomos parecidos. Sempre seria grata por tudo que ele fez por mim, no entanto aquilo se encerrava ali. Remy esporeou o cavalo, e nem eu nem ele olhamos para trás para ver o que seria.

Desta vez, não me arrependi.

 

Ao chegarmos na estação de trem, eu e Remy compramos os bilhetes para o trem da tarde para Avignon. Como este demoraria ainda um pouco a sair, pedi para que ele me acompanhasse até a Rue de l’Ancient Courrier. O senhor Cluzet, sempre com sua boina puída, demonstrou espanto ao me ver tão fora de época. Mas, se o dia estava sendo permeado por silêncios, o senhor Cluzet imitou o exemplo dos demais. Ou talvez a presença de Remy o estivesse intimidando.

— Poderia me aguardar redigir uma carta, senhor? — pedi, abrindo um meio sorriso. — E… emprestar-me-ia algo para escrever? Um lápis é de serventia.

Ele assentiu com a cabeça, enquanto eu e Remy nos sentávamos numa das mesinhas do fundo dos correios. Com cuidado, retirei meus papéis de carta (sem que o envelope de Lilian saltasse de minha mala; eu poderia abri-lo mais tarde) e coloquei-me a pensar o que e para quem escreveria, afinal de contas. Depois de o senhor Cluzet retornar com o lápis, Remy comentou:

— Para alguém que só tinha um ponto de vivência, vosmecê tem muito mais amigos do que eu… 

— Mas não tenho. Tenho… tinha vocês. E as freiras. E Harvey. Digo, o sr. Banks — corrigi, com um pigarro. — Seja lá onde ele esteja agora.

— Então para quem está escrevendo?

Brinquei de passar o lápis por entre os dedos. Ergui o olhar para ele por um segundo, então dei de ombros e a ideia me veio como uma luz se acendendo num cômodo.

— Para… para a governanta da casa onde fiquei hospedada, em Bordeaux. Informá-la-ei de que estarei em Avignon, caso queira nos visitar por algum tempo ou… não sei, caso queira alguma companhia em seu chalé. Ela odeia perseguir aquelas galinhas — ri fraco.

Comecei endereçando a carta à Ève Lambert, em Bordeaux. Tive de fazer um esforço para recordar-me o endereço exato, por mais que Remy me tranquilizou dizendo que encontravam o destinatário apenas com o nome. 

Depois de algum tempo sem nenhuma inspiração, ela me veio com uma das frases que a sra. Lambert proferira a mim, em Bordeaux.

 

“Querida Ève,

Escrevo para informá-la de que hoje deixo a Casa Chevalier. Meus serviços já não são mais necessários por lá. Creio ter recebido minha chance de enxergar o mundo com novos olhos, como a senhora bem comentou em minha estadia em seu adorável chalé. 

Se por um lado pássaros livres morrem de tristeza ao serem capturados, pássaros criados em cativeiros não sobrevivem sozinhos, uma vez soltos na natureza.

Ah, Ève… se soubesse o quanto meu coração está aflito…

Minha intenção não é deixá-la angustiada com minha situação. Contudo, deixarei meu endereço em Avignon, para se caso queira retornar a carta. Por favor, diga se posso ser útil em seu chalé. Adoraria voltar a correr atrás das galinhas novamente. E, se não for abuso… mande notícias, sim?

Com amor, de sua amiga, Adele.”

 

Não era o meu melhor, mas era melhor do que nada. Com um suspiro, selei o envelope e entreguei-o ao senhor Cluzet, pagando as devidas taxas de envio. Finalmente, Remy andou comigo de braços dados até a estação de trem. Sorriu triste para mim. Pois, do outro lado da cidade, um casamento acabava. Logo ele seria requisitado para levar os recém-casados a Paris. E, de lá, só o universo sabia. Ou talvez nem isso. Nos despedimos com um abraço, longo e silencioso.

Observei-o partir, e o bater dos cascos de Cheyenne e Champagne pela última vez. Então, sentei-me sobre minha mala. E chorei até a chegada daquele trem, como jamais havia chorado em vinte e seis anos de vida.

 

❀❁❀

 

Na intenção de me distrair na viagem até Avignon, finalmente abri minha cópia especial de Frankenstein, intocada desde janeiro, quando havia a ganhado. A caligrafia desleixada de Harvey dividiu meu coração entre a dor boa e má da saudade. Fechei os olhos para sentir a textura das páginas.

Já estávamos na metade de maio. Aquele sentimento já deveria ter minguado, não deveria? Quer dizer, Harvey tinha mais do que tratar em Londres do que aqui. Era mais inteligente do que isso… Eu poderia guardar meus sentimentos, pois era tudo que eu tinha. Mas Harvey tinha uma vida lá fora.

Com um suspiro, li as primeiras linhas, que na realidade eram um trecho de Paraíso Perdido, de um autor de nome John Milton.

 

“Acaso, ó Criador, pedi que do barro

Me moldasse homem? Porventura pedi

Que das trevas me erguesses?”

 

Pobre Criador, com suas criações mal-agradecidas. Eu poderia pedir a opinião de Josephine a respeito disso, mais tarde. Josephine! Céus, com toda aquela correria, eu tinha me esquecido completamente de dar notícias a ela, e agora aparecia para ficar! Como eu era irresponsável. Infartaria as freiras desse jeito… 

Matutei nisso o caminho inteiro. Minha leitura era embalada pelos sons característicos da locomotiva, mas ao chegar guardei o livro e encarei a caminhada até a Basílica de Saint-Pierre. Não iria pagar uma carruagem até lá, visto que não sabia quanto meu dinheiro iria durar, nem se eu ficaria ali para sempre.

Senti minhas pernas bambearem, ao bater na porta com o auxílio da aldrava. Aquela aldrava com o entalhe da pomba de Noé e o ramo sagrado sempre me deixou intrigada; quem teria tido a ideia de colocar uma pomba como aldrava, com tantos leões e touros afora?

Dessa vez, quem veio me atender não foi a irmã Lefèvre. Reconheci os passos pequenos e calmos da irmã Guyot, e já fui me preparando para o choque. Foi como eu esperava: ela me puxou direto para um abraço, apertado.

— Adele?! Que faz aqui, minha menina?

Contive meu suspiro. Nos fundos, as três freiras restantes agitavam-se com o intruso na Basílica.

— E-eu vim para ficar. Será que posso voltar para casa?

Não precisei aguardar uma resposta. A irmã Guyot abriu mais a porta, e tomou a mala de minhas mãos, sem que eu pedisse.

Depois de me situar em meu quarto de infância, peguei meus papéis de carta restantes e pus-me a escrever cartas que talvez nunca fosse enviar – uma para Sienna, outra para lady Anneliese, outra para Lilian e uma última para Harvey. Eu tinha muito a dizer a todos eles e, mesmo que fosse difícil encontrar as palavras em meio a tanto nervosismo, elas ainda precisavam ser ditas.

Como meu caro amigo literário sr. Holmes diria, o jogo tinha acabado de começar. Só que eu não fazia de ideia de onde ele me levaria agora.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenha conseguido esclarecer para vocês o mistério final dessa história toda de Lilian e Thierry... mas que complicação, né? E menina Adele tinha mesmo que ir botar o nariz onde não devia.
Quanto à essas cartas: vocês poderão ler elas todas no epílogo, que sai em breve com o final da fic :') ainda não tenho certeza se o próximo será o último por ainda ter a impressão de ter muito a escrever ainda, então fiquem atentas ♡
Até o próximo!

E o obrigada especial de hoje vai pra EsterNW, que deixou a segunda recomendação da história ♡ Esterzita, vou te colocar num potinho de amor e carinho! Mas, por ora, te deixo uma frô só ❀ muito obrigada!!