Adele escrita por Camélia Bardon


Capítulo 16
XV. Cerimônias e respostas


Notas iniciais do capítulo

Olá! Tudo bem com vocês? Prometi pra alguns de vocês que voltaria no fim do mês, e cá estou. O capítulo de hoje é bem decisivo, então vou deixar ele falar por mim. Boa leitura ♡



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Languedoc-Roussilon, maio de 1890

 

A manhã do casamento para mim foi resumida a colher rosas brancas. Logo após ler Alice, era difícil resistir ao ímpeto de pedir que Ettore buscasse pincéis e tinta vermelha. 

Mal sei como reuni paciência o suficiente para aguentar os comentários ditos em tom quase gritado do italiano. Tinha três palpites: ou eu estava em profunda paz, ou em profunda indiferença… ou profunda melancolia. Ou talvez eles estivessem em prova de revezamento.

Andiamo, menina! Esses espinhos não vão ser cortados sozinhos. Andiamo, andiamo!

Rindo, ajeitei a barra de minha saia. Enxuguei a ponta de meus dedos sangrando devido aos espinhos no avental, o que fez Ettore bufar, frustrado.

— Roubarei um doce de Melina por ter me ajudado hoje, garota. A fiz acordar mais cedo apenas porque lorde Victor recusou-se a contratar um ajudante para mim. E olhe que pedi uma mixaria por isso!

— Não há a necessidade de roubar nada para mim, Ettore — garanti, voltando a cortar com cuidado os espinhos da última rosa. — Apenas um “obrigado” me deixaria contente.

— A madame tem certeza de que não quer nada em troca? Posso conseguir qualquer coisa.

— Ettore, rei das mãos leves — gargalhei, mas depois parei para refletir se não havia nada que desejasse. Demorei uma porção de segundos, quando uma luz se acendeu no fundo da minha mente supostamente adormecida. — Pensando bem… há algo que quero, sim. Sabe se Bertoli ainda retém a lista de convidados para o casamento?

Mesmo que pigarreando, Ettore coçou a barba grisalha e ergueu uma sobrancelha.

— Posso ver com ele. E se não a tiver?

— Então aceitarei o obrigado.

Satisfeito com a resposta, ele bateu a terra da roupa e me deixou terminando o buquê em paz. Quanto a mim, ocupei-me de juntar todas flores e envolvê-las numa fita de cetim azul-céu. Aproveitei para colher alguns ramos de lavanda, porque todo aquele branco parecia deprimente. Distribuí-as entre as rosas, tirando um minuto para me parabenizar pela combinação de cores e cheiros., sorrindo para as flores como se elas pudessem me entender ou responder.

Logo Ettore retornou com um rolo de papel velho, e atirou para mim, no chão. Troquei o buquê com ele, o que o fez grunhir em aprovação.

— Coloque-as num jarro com água, para que não murchem, sim?

— Sim, senhora, senhorita — disse ele, com seu jeitão parrudo. — Bom trabalho. Vai fofocar com a srta. Sienna sobre os convidados?

— É o que pretendo — menti, brincando com o rolo de papel. — Muito obrigada, Ettore. Nossa dívida está paga.

Fazendo uma reverência informal, ele voltou a me deixar com as flores. Suspirei, abrindo o rolo com os dedos trêmulos.

— Vamos ver o que você tem para mim — murmurei.

Vasculhei a lista, separada por ordem alfabética, para minha felicidade. Pulei direto para o final, para onde me interessava. Letra P. Já de susto, li o primeiro nome que bateu de encontro com a lista de Harvey.

Penelope Armstrong. Era ela a cantora americana? Por isso fora convidada? 

Engoli em seco, afastando a folha para ler o próximo nome.

Pierre-August Belhandouz, visconde de Ardèche. Eu o conhecia, de nome (como camareira, é claro), mas sempre conversava com as ladys, e não com os lordes. Pelo visto, teria de investigar de longe. Como sempre. Mas o que exatamente estava procurando?

— Agora entendo por que ele falava tanto sozinho — murmurei, passando o dedo pela borda do papel. — É mais fácil para pensar.

Eu quase poderia escutá-lo replicar, com o francês arrastado: Viu só? E a senhorita aí, julgando. Eu nunca estaria sozinha, não é mesmo, Harvey…? Não mesmo. Pior que um carrapato. Depois de rir sozinha, levantei-me e, assim como Ettore, limpei a terra da roupa.

— Então, dos cinco “suspeitos”, sobram dois. É bem mais objetivo. 

Dei de ombros, vendo que a conversa unilateral não iria dar em nada, e subi as escadas apressadamente para ver se alguém precisava dos meus serviços. Bati à porta de Sienna com delicadeza, escutando de volta um entre esganiçado. Ao me ver, seu rosto iluminou-se e ela abriu um sorriso de orelha a orelha.

— Que bom que chegou, Adele — suspirou ela, jogando os cabelos castanho-claro para trás. — Estava pensando justamente em lhe chamar. Céus, o que aconteceu com suas roupas?

Encarei meu avental e, com um grunhido, desamarrei-o e joguei-o no chão. Em resposta, ela riu um tom acima do aceito socialmente.

— Perdoe-me. Ettore me recrutou para cortar espinhos de rosa.

— Ora essa. E não poderia ele fazer isso?

— Ele estava refazendo a poda dos arbustos, senhorita — ri fraco. — E, também, não foi um trabalho exigente. Fiquei contente em ser útil. Disse que pensava em me chamar?

Sienna assentiu com a cabeça, animada. Não era para menos. Romântica como era, amava casamentos, desde que não fosse o próprio. 

Desde que Lilian chegara à Casa Chevalier, Sienna não comentava nada sobre lorde Breton, cujo qual ela supostamente estaria apaixonada. Ao menos, foi o que me contou. Me manteria curiosa, afinal não era o dever da camareira indagar sobre a vida amorosa de sua ama.

— Ah, sim, eu disse. Poderia me ajudar com os cordões do espartilho e com meu cabelo?

— É claro, senhorita — fiz um sinal para que ela se levantasse, enquanto estalava os dedos. — Por sorte, aqueles bustles horrorosos saíram de moda… 

Sienna gargalhou, concordando efusivamente com a cabeça.

— Até parece que algum homem iria encantar-se com um bando de arames. Essa nova época é o que há: não há nada mais belo do que uma mulher vestida de si própria.

Sorri com o comentário, passando o cordão ao longo de toda a extensão das costas. Por sua vez, Sienna segurou os longos cabelos na frente, suspirando dramaticamente.

— Mas… — continuou ela. — Por mais que o casamento me empolgue, permaneço entristecida com a partida de Thierry. A casa vai ficar muito quieta sem ele tocando o piano ou lendo o jornal. Não concorda?

Se eu ainda estiver aqui para poder comentar algo a respeito… 

— Deveras, senhorita — concordei, ao passo que ela buscou no armário um vestido para colocar. Separou dois, um cor violeta e outro laranja. Nem precisou me perguntar, vendo que franzi o nariz para o laranja. Em dois tempos, ajudei-a a se vestir e sentei-a de volta na penteadeira, escovando os fios com cuidado. — Tem algo em mente?

— Se lembra daquela trança torcida de quando fiz quinze anos? Estava pensando nela, e só você sabe como fazê-la…

— É para já, senhorita — sorri, nostálgica.

E pensar que a conhecera tão pequena, e esse ano já completaria seus dezenove. E eu, meus vinte e seis, dali a uma semana. Mesmo assim, com tantas mudanças, ela permanecia amando que penteassem seu cabelo. Eu esperava que ela fosse continuar assim para sempre.

Dentro de alguns bons minutos, fiz o que me foi requisitado e Sienna desceu para recepcionar alguns convidados. Recolhi meu avental sujo e encarei o corredor vazio (exceto por lady Lilian se arrumando mais à frente, como poderia ouvir pelos grunhidos provocados pelas agulhas), com um suspiro. Quando já estava preparada para tomar o caminho da escada de funcionários, fui interceptada por um corpo. A questão era: quando eu não era, naquela casa?

Ergui meu olhar para quem se esbarrava comigo, e quase soltei um arquejo. 

Nunca pensei que o veria tão bonito. Parecia o teste final para atestar se meu coração estaria mesmo tão indiferente à ele quanto da última vez que seu nome havia esbarrado em minha consciência.

Thierry ainda aguardava alguma reação de minha parte, então escolhi a primeira que me veio à cabeça: uma reverência curta.

— Perdoe-me, senhor.

— Eu é que peço desculpas, Adele. Havia tanta gente lá embaixo, quase impossível de se manter a sanidade — riu ele, com um quê de nervosismo. — Poderia ter usado a escada principal, mas optei pela dos funcionários.

Algo naquele tom me deixou com a pulga atrás da orelha. Thierry nunca usava a escada secundária. Faça perguntas!, instigou a voz de Harvey. Quase mandei-o pastar.

— Imagino bem. Deve ser deveras difícil ter de conversar com todos os convidados.

— Nem tem ideia! — ele soltou o ar, relaxando os ombros. — Queria poder me trancar no quarto. Ou ter um irmão gêmeo que se casasse por mim. Apareceria apenas para o buffet. E olhe lá!

Não consegui segurar a risada. Mas essa não pareceu ser mesmo a intenção dele. Satisfeito, penteou os cabelos loiros para trás com a ponta dos dedos. Então, voltou a olhar para mim.

— Hoje é meu casamento, Adele… sem mais um dia a adiar. Consegue crer nisso?

Troquei o peso dos pés, embolando o avental contra meu corpo.

— De fato, é uma cena inusitada, senhor.

— Por mim, me casaria com o piano. Diga-me, Adele: qual a sensação de ser invisível?

Meu coração apertou com tal fala. Claro que eu era invisível, mas ter isso atestado por ele era um choque de realidade diferente. Logo ele, que me ajudou a entender o mundo que me rodeava. Engoli em seco e procurei em minha biblioteca mental qualquer assunto que me tirasse daquela saia justa. O livro! Eu ainda não o tinha devolvido, por pensar em Alice.

Bem quando ia abrir a boca para responder, o pigarro impaciente de lady Moreau me colocou de pés bem firmes no chão novamente.

— E o que a senhorita pensa que está fazendo? — ela praticamente gritou, me segurando bruscamente pelo braço, coisa que nunca me acontecera na Casa Chevalier desde que havia chegado. — E sem um avental! Deveria estar arrumando minha filha. E o senhor…! — finalmente, ela voltou sua ira à Thierry, que mal tivera tempo de reagir à primeira ofensiva. — Saia já deste andar. Não me surpreende que esteja tentando arranjar um último rabo-de-saia, mas da criadagem? Ponha-se em seu lugar, rapaz.

Quase fiquei boquiaberta. Quase. Já Thierry corou até a raiz dos cabelos, porquanto que não podia defender nem a mim nem a si próprio. Ainda impassível, lady Moreau arrastou-me pelo braço até os aposentos de Lilian.

Claro. Adiaríamos o livro, também.

 

Ao menos, após isso, Lilian pareceu envergonhada pela atitude da mãe. Procurei relevar, mesmo quando ela tirou dos pertences um saquinho de moedas e depositou cinco em minha mão. Ergui uma sobrancelha, no entanto ela cortou-me com um “ajude-me com esse cabelo, por obséquio?”.

Estando ela pronta, desci para avisar sua mãe e corri para a lavanderia buscar um avental reserva. Logo Melina me requisitou para segurar as bandejas com os petiscos. E tudo o que eu queria era respirar por uns minutos.

— Arrume as bandejas e eu pedirei a Bertoli para ajudá-la na distribuição — a governanta instruiu, para depois sair correndo a tempo da cerimônia, que seria realizada nos jardins.

A cozinha tinha uma janela que me permitia, enquanto organizava os aperitivos, assistir ao casamento de longe. Igualmente vi Melina juntar-se aos convidados com pressa, ao mesmo tempo em que se iniciava a cerimônia.

Thierry e lady Anneliese já aguardavam no altar improvisado, bem como lady Moreau e mais alguém do lado da família de Lilian que desconhecia. Sienna entrou acompanhada do pai, sorrindo e logo a cantora contratada ⎼ aquela deveria ser Penelope! ⎼ cantava junto à Marcha Nupcial.

Me permiti uma pausa na organização, já que Bertoli viera ao meu auxílio. Não desgrudei os  olhos de Lilian e meu buquê de rosas e lavanda. Mesmo que estivesse de costas, seu andar altivo e cheio de cinismo não escondia a identidade da noiva. Podia até imaginar seu sorriso de escanteio, desafiando os convidados a suportarem seu olhar julgativo.

— Conhece a cantora, Bertoli? — indaguei.

— A srta. Armstrong? É claro. É uma cantora de ópera influente na América. 

— E como ela veio parar aqui, em Montpellier, no casamento de Thierry? — ergui uma sobrancelha.

— Pelo que sei, lady Hérault e ela são amigas de longa data, antes de casar-se com lorde Victor. É justo que ela queira uma amiga tão próxima no casamento do filho.

Assenti com a cabeça, mordendo o lábio. Com isso, ficava muito menos provável que ela fosse P.A. Por que uma velha amiga de lady Anneliese escreveria à Thierry tão intimamente, sendo que sequer o conhecia?

Cessada a música, ambos se ajoelharam no apoio de veludo. Pisquei algumas vezes para voltar a atenção para os aperitivos, fingindo não ter reparado no olhar curioso de Bertoli. No meio tempo entre o pequeno sermão do padre e o pronunciamento dos votos, terminamos o trabalho. Então, tomei meu lugar à janela, mas desta vez junto à Bertoli.

— Eu esperava mais drama, estou sinceramente decepcionado — comentou ele, me fazendo rir descontraidamente.

— Drama! De que tipo?

Bertoli cruzou os braços, apoiando-se no beiral da janela.

— Não sei ao certo. Alguma interrupção ou fuga da noiva. Ou do noivo.

Foi minha vez de rir, por mais que achasse qualquer uma das opções impossíveis àquela altura. Não, se Thierry quisesse fugir, já teria o feito. E Lilian, se não quisesse seguir em frente com aquilo, já teria debandado muito antes de partir de Paris.

Engoli em seco, vendo que o drama não viria de nenhum dos noivos. Por acidente, eu e Bertoli assistimos um homem levantar-se de sua cadeira e deixar o jardim, partindo em direção à casa. Registrei sua aparência ⎼ alto, cabelos e olhos castanho-escuro. Me lembrava de alguém semelhante a ele, mas quem? ⎼, quase ao mesmo tempo em que troquei um olhar significativo com o mordomo.

— Inusitado… — Bertoli murmurou, encabulado. — Acha coincidência?

— Não acredito em coincidências.

É, o universo não seria tão preguiçoso, completou o meu Harvey mental, solícito.

Desviei o olhar do tão esperado beijo que selaria o matrimônio, aproveitando a desculpa para colocar os pensamentos em ordem. Quais os motivos de alguém deixar uma cerimônia? Bem, o mais fútil seria emergências da natureza humana, contudo sua expressão foi de transtorno ou desconforto, e a expressão com que o homem deixou o casamento se aproximava de um misto de raiva e decepção. Sabendo-se disso, o que poderia ter dado o estopim?

Que tal algo um pouco mais humano, máquina pensante?

Ri sozinha, fazendo Bertoli me encarar, curioso. Eu ficaria louca, falando com a voz na minha cabeça. Se ao menos ele soubesse… pigarreei e peguei uma bandeja, para disfarçar. Virei-me de costas em direção ao salão principal, murmurando:

— O que, sentimentos? 

Isso! Que outro sentimento está associado à raiva e decepção?

Matutei, seguindo a linha de raciocínio que algum canto tagarela em minha cabeça tentava sinalizar. Raiva e decepção. Bem, raiva pode ser um gatilho para a dor. Geralmente, quando há um sentimento de mágoa, as vertentes de resposta tendem a passar por uma ponte de tristeza e ressentimento. Mas um casamento…? Seria uma decepção amorosa?

Ah, céus. Se Lilian havia se associado com ele, teria sido em que momento de sua estadia? Tempo suficiente para provocar tudo aquilo? E, o mais importante de tudo: quem era ele?

Esgueirei-me por entre os cômodos da casa com a bandeja, para organizar a mesa do salão. Notei um movimento pelo canto do olho enquanto retornava para recolher a próxima bandeja. Engoli em seco e segui a sombra que se esforçava em não ser vista. Não havia ninguém assistindo, então por que não…?

Aproximei-me aos poucos, ao passo que Bertoli deslocava o bolo da cozinha para o salão. Segui o som dos grunhidos e me deparei com o homem misterioso sentado nas escadas para funcionários, talvez por ser um local mais afastado do restante.

— Senhor? — perguntei, hesitante. Por sua vez, ele ergueu o olhar, provavelmente se perguntando por que, em sã consciência, estaria me dirigindo a ele. Me arrependi na hora. Era tarde demais para sair correndo? — Perdoe-me. Sei que não é de minha conta, mas está se sentindo bem? Posso servir algo? Aceita? — estendi a bandeja.

Ele riu fraco, coçando a nuca. Timidamente, pegou um dos canapés e mastigou-o sem ânimo.

— Obrigado — sorriu ele. Sua voz era um tom acima das da Casa Chevalier, e diferente de todas as graves que tinha escutado ao longo dos anos. — Estou bem, não se preocupe. Foi só um mal-estar.

— É claro — por educação, sorri de volta, ainda que meu instinto continuasse me eletrizando. — Com licença, senhor…?

— August. Visconde de Ardèche. Me lembrarei da gentileza da senhorita.

Senti meu sangue gelar com a menção do nome. August de Ardèche? Isso significava que ele também era P.A. E significava que não poderia ter deixado a cerimônia por razões sentimentais. Ou poderia? 

Talvez… talvez ele tenha escrito à Thierry declarando seus sentimentos sobre Lilian, para deixá-lo ciente de seu relacionamento. Mas, afinal, o que eu tinha além de duas letras e uma carta cuja qual o conteúdo me era desconhecido? Céus, como eu não queria estar sozinha nesse raciocínio…

Percebi que Pierre-August ainda esperava que o respondesse, então sorri novamente e recolhi a bandeja com uma mesura.

— Estarei à disposição, senhor.

Dito isso, retirei-me para a cozinha, agradecendo mentalmente que Bertoli ainda não retornara para assistir em primeira mão enquanto meu corpo se ocupava de hiperventilar, em pânico.

 

Esforcei-me em passar o restante do dia com uma expressão amena, sendo útil no que fosse possível. E calada. Mesmo que minha vontade fosse gritar de agonia. Agora entendia o significado de “a curiosidade matou o gato”. Bem, pelo menos em minha versão. Algo como “a curiosidade contida matou Adele de ansiedade”.

Serviu-se bolo, Thierry tocou seu piano como de praxe, só para ser substituído depois por Sienna para que dançasse a primeira dança com a esposa. E Lilian esforçava-se para sorrir em todos os momentos, por mais que a flagrasse massageando as bochechas de tempos em tempos.

Os recém-casados partiriam para Paris na carruagem de lady Moreau, onde lá morariam e não retornariam até segunda ordem. Eu estava feliz por ele, apesar disso. Estaria perto da feira tecnológica que tanto amava, afinal. Quem sabe algum dia esbarrasse com Harvey?

Não evitei o suspiro dessa vez. Estava tão perto. E ele nem imaginava. Será que, estivesse onde estivesse, estaria com parte do pensamento presa aqui, também?

Perto das cinco da tarde, Thierry ausentou-se para conversar com a mãe em particular. O rosto de lady Anneliese empalideceu, no entanto a vi assentir com a cabeça. Logo depois, ele deixou-a sozinha para partir para outro cômodo. Quanto a mim, fui dispensada por Melina, que não aguentava mais de duas horas sem sentir-se útil em matéria de trabalho. Portanto, parti de volta para meu quarto.

Encarei o livro no criado-mudo, lembrando dos eventos de mais cedo. O local onde lady Moreau me segurara ainda estava dolorido, o que me fez levar a mão até o braço e apertá-lo, frustrada. Thierry iria embora hoje, e seu livro ainda estava comigo. Livro esse que continha um significado maior, por ter sido ele a me ensinar a ler e escrever. Suspirando, peguei o livro e me esgueirei para fora do quarto em direção ao dele.

Andei na ponta dos pés, agradecendo por não usar os sapatos de salto naquele dia. Meu coração batia mais forte à medida com que me aproximava. Teria continuado, se o som de uma conversa vinda do cômodo não me tivesse feito hesitar. Parei, me encostando à parede mais próxima.

— … sempre esteve ciente, Pierre — a voz calma de Thierry praticamente era um murmúrio. — Desde que nos conhecemos. Estava fadado a dar errado. E, ainda mais agora que sou um homem casado, isso seria prejudicial para minha reputação. E a de Lilian, igualmente. Por favor, tente entender. 

— Que tipo de homem pensa que sou? — mais aguda, a voz de Pierre-August fez-se contrastar na discussão. — Não sou um estúpido. Eu só… pensei em dizer adeus. Seria exigir demais, depois de tudo que passamos?

— Seria. Já tem seu adeus. Em palavras, como é o correto. 

Uma pausa, com o suspirar de Thierry. E um outro som que não consegui distinguir, por estar ouvindo mais o sangue correndo do que outra coisa. Eu deveria ter entendido aquela deixa para ir embora.

— Eu sinto muito, Pierre. Sempre terá meu coração, mas terá de contentar-se apenas com suas lembranças.

Cobri minha boca para não arquejar em voz alta. Ah, céus. Ah, céus…

Pierre-August não estava com raiva de Lilian estar se casando. Era de Thierry!

Como eu era burra! Todo esse tempo e tudo estava tão óbvio! Isso explicava por que ele nunca comentava sobre mulheres: porque elas não o agradavam. Ah, meu Deus, eu não deveria saber disso. Eu não deveria ter ouvido isso.

Bem quando estava prestes a dar meia-volta, Thierry deixou o quarto, de supetão. E seu olhar cruzou com o meu, exalando horror. Tinha quase certeza de que meu olhar se assemelhou ao dele, principalmente ao ouvi-lo pronunciar as palavras que eu nunca viria e esquecer:

— Ah, Adele…  você vai esquecer o que ouviu e irá embora daqui antes que descubram que sabe. Ou então não posso garantir que saia com vida nessa história. Faça suas malas e eu irei acobertá-la. Encontre-me dentro de dez minutos no jardim dos fundos.


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Notas finais do capítulo

Por favor, não me matem! ~desviando dos tomates podres e sapatadas~
Até mais, amo você ❀