Primeiras Vezes escrita por Bea Baudelaire


Capítulo 2
Quando saímos pela primeira vez




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Naomi

Eu ainda me lembro perfeitamente de como aquele convite foi feito.

Acho que já fazia dois meses que aquele empresário maluco aparecia na porta de minha sala de aula, toda quarta-feira, vinte minutos antes do horário de saída das crianças. Propositalmente. No começo, eu confesso que cheguei a apreciar aqueles minutos do meu dia com um outro ser humano adulto além dos outros professores monótonos daquela escola, mas a partir da terceira semana, eu já estava achando tudo aquilo no mínimo bizarro.

Ele aparecia com aquela expressão séria, fingia ter se confundido com o horário de uma forma totalmente descarada, e então assumia uma das cadeiras vazias enquanto aguardava que eu servisse seu chá. Ninguém em sã consciência acreditaria que um homem tão inteligente como ele pudesse confundir o horário de saída do filho toda semana. Mas o pior de tudo não era a mentira, e sim o silêncio. Ele raramente iniciava algum tipo de conversa, e como aquele silêncio parecia ser esmagador dentro da pequena sala, eu me via forçada a falar qualquer tipo de besteira que pudesse fazer o tempo passar mais rápido ou que tornasse aquela situação menos esquisita.

Mesmo depois de dois meses, eu não via lógica naquele estranho hábito que ele adquirira de aparecer na porta da minha sala apenas para tomar um chá, muito provavelmente evitando outros tipos de compromissos infinitas vezes mais importantes. Até que, em uma bela quarta-feira de sol, faltando duas semanas para as férias de verão, tudo fez sentido.

— O que você acha de sairmos para jantar? - foram suas palavras exatas, cuspidas em minha cara como uma metralhadora.

Confesso que, apesar de ter minhas suspeitas, aquilo me pegou desprevenida e eu me vi boquiaberta por longos segundos sem saber ao certo como reagir. Em condições normais de ambiente e temperatura, Law Trafalgaw, chefe-executivo de uma multinacional, milionário, não deveria prestar atenção em mim. Com seus um e noventa-e-alguma-coisa de altura, olhos cinzas penetrantes e cabelos negros selvagens, ele deveria namorar alguma atriz famosa, ou então outra modelo incrivelmente linda como sua ex mulher. Talvez alguma socialite, ou até uma empresária de seu calibre. Professoras de arte do primário não deveriam sequer existir em seu mundo. Eu não deveria existir em seu mundo. Mas, por algum motivo que desconheço até hoje, ele parecia querer que eu estivesse lá.

Diante de suas bochechas coradas e olhar tímido, o que era algo extremamente raro de se presenciar, eu não tive outra escolha a não ser aceitar o pequeno convite. Concordamos em nos encontrarmos no sábado seguinte as oito horas da noite.

Para a ocasião, lembro que usei a única coisa minimamente elegante que tinha, um tubinho preto simples com mangas ombro a ombro e sandálias de tiras prateadas. Infelizmente, meu guarda-roupa na época contava apenas com calças jeans confortáveis, camisetas estampadas e sapatos baixos, roupas típicas para uma professora de crianças de cinco a sete anos, e Law não me parecia ser o tipo de homem que levava uma mulher para uma hamburgueria em seu primeiro encontro para que eu pudesse usar tais roupas.

E realmente, eu estava certa. Depois de aparecer na porta de meu prédio com uma pontualidade que beirava a britânica, Law fora o mais cavalheiro possível e até abrira a porta de seu Porsche conversível desnecessariamente caro para que eu pudesse entrar. Naquele ponto, mesmo já estando acostumada a vê-lo em roupas formais como ternos e gravatas, eu me lembro perfeitamente de achá-lo especialmente encantador enquanto me esperava de braços cruzados em um de seus ternos pretos feitos sob medida e me oferecia um sorriso educado. Naquela noite ele me levou em um dos restaurantes mais caros de toda região de Tóquio, um lugar que eu jamais entraria por conta própria por sequer poder pagar um copo de água, enquanto ele parecia o frequentar de forma constante já que era seu restaurante favorito. O nome do lugar era alguma coisa que eu achara impossível de se pronunciar, mas me lembro de admirá-lo secretamente enquanto ele discutia com o sommalier sobre o vinho que beberíamos em um francês fluente.

Mas, para mim, o ponto alto daquela noite foi a cara de desconcerto de Law quando anunciei que não comeria nada ali. Diante de suas sobrancelhas arqueadas, testa franzida e olhar confuso, me vi sem opção a não ser anunciar algo que esquecera de mencionar quando combinávamos os detalhes de nosso pequeno encontro.

— Eu sou vegetariana estrita— sussurrei com as bochechas coradas de vergonha, mantendo meus olhos grudados no cardápio enquanto corria eles novamente pelo pedaço de papel envolto por couro, tentando achar um prato sequer que não tivesse nenhum traço de produtos de origem animal.

Talvez eu devesse tê-lo avisado sobre isso antes, mas nunca, nem em um milhão de anos, eu pensei que existisse um restaurante que não tivesse uma salada cem por cento verde sequer. Ainda mais um restaurante tão caro quanto aquele. A única salada que o havia no cardápio continha pedaços de bacon e toda a alface era temperada com um molho a base de ovos e queijo, e mesmo após Law insistir muito, eles se recusaram a tirar esses itens por alegarem que aquilo “mudaria os desejos do chef com relação ao prato”.

Lembro que ele ficou extremamente irritado com aquilo, cancelando seu pedido de vinho e me arrastando para fora do pequeno prédio como se eu fosse um saco de batatas, jurando jamais voltar naquele lugar enquanto soltava vespas pela boca. Ele parecia não se conformar que seu dinheiro não poderia pagar um jantar naquele restaurante requintado para mim. Admito que vê-lo daquele jeito por algo tão simples me surpreendeu imensamente, e eu acho que aquilo apenas aumentou a pequena queda que eu já sentia por ele.

— Sinto muito por isso – ele disse logo após sairmos do restaurante, mantendo ambas as mãos fundas nos bolsos da calça enquanto fitava o chão, sem saber o que fazer em seguida.

— Eu que peço desculpas. Eu devia ter avisado, mas eu nunca pensei que…

— A culpa não é sua – sua voz soou firme, decidido a acabar com o incomodo que eu sentia – eu estava precisando mesmo de um restaurante favorito novo. Eu já estava enjoado desse.

Aquilo era mentira e eu sabia disso, mas apenas sorri em resposta diante de seu gesto educado.

Educado. Acho que foi esse pequeno adjetivo que me atraíra para Law desde o início. Apesar de nunca ter saído com muitos homens, eu parecia ter um dedo podre para escolher meus possíveis pretendentes. De jogadores de rugby a críticos de jornal de terceira classe, todos os homens com quem eu havia saído até aquele dia mal podiam ser comparados à Neandertais, sempre rudes e toscos. Mas Law conseguia ser o completo oposto deles. Ele era cortês, atencioso e, acima de tudo, se mostrara ser um bom ouvinte, sempre se lembrando até dos pequenos comentários que eu havia feito vários dias atrás. Ele se preocupava com minhas opiniões e, de um jeito bem estranho, ainda fazia questão de passar alguns minutos da sua semana ao meu lado mesmo que não admitisse isso para mim. Seria muito fácil me apaixonar por Law Trafalgar, isso se eu já não estivesse apaixonada por ele.

Como se o nosso primeiro encontro não pudesse ficar menos romântico, a mulher que costumava cuidar de Hiroki quando Law tinha qualquer tipo de compromisso ligou para avisar que ela precisaria ir embora urgentemente por motivos familiares, obrigando-o a voltar para casa mais cedo. Depois do fiasco do restaurante, eu queria apenas me enterrar dentro de um buraco bem fundo por tanta vergonha que passara, mas Law insistira que eu o fizesse companhia pelo restante da noite e disse que não aceitaria um não como resposta.

Lembro que enquanto ele aguardava o manobrista retornar com seu carro, eu atravessei a rua o mais rápido que pude em cima de meus saltos para comprar três lanches em um pequeno food truck estacionado logo em frente ao restaurante de nome esquisito. Por incrível que pareça, eles tinham um lanche vegano. Quando voltei para seu carro, ele olhou para o saco de papel pardo em minhas mãos com um olhar interrogativo, mas não perguntou nada.

Durante todo o percurso até sua casa, eu só conseguia temer pela reação de Hiroki quando eu entrasse pela porta da frente de sua casa em pleno sábado. Meu maior medo era chegar e ser rejeitada por ele, gerando um possível estresse entre os dois, e muito provavelmente arruinando de forma definitiva qualquer tipo de relação que eu pudesse ter com Law. Afinal, em sua casa, eu nada mais era do que uma estranha que estava saindo com pai. Mas, para meu alívio, quando seus olhos cinza caíram em mim, ele abriu um dos maiores sorrisos que eu já vira em seu rosto infantil. Ele pareceu adorar minha presença naquela noite, insistindo em me guiar logo em seguida por todos os cantos de sua segunda casa, e até me mostrando toda sua coleção de carrinhos e bonecos de ação.

O apartamento em si era digno de capa de revista, e eu tinha a ligeira impressão de que eu já havia visto aquela ampla sala com vista panorâmica para a cidade em algum lugar. Law parecia ter uma certa fixação por couro e por tons neutros, já que tudo variava entre o branco, o preto e o cinza, com leves toques de madeira em lugares específicos. Todo apartamento tinha piso de mármore bege, e tudo era exageradamente organizado e limpo, cada coisa colocada planejadamente em seu lugar exato dentro de cada ambiente. Com exceção do quarto de seu filho, é claro, que mais parecia fazer parte do filme Twister.

Enquanto brincava com Hiroki, já sem meus sapatos, com o cabelo amarrado e sentada no chão, lembro de flagrar Law me olhando diversas vezes com um olhar engraçado entre um gole de seu vinho e outro enquanto seu filho me contava uma de suas aventuras no parque do bairro, tratando-me como uma querida amiga. Como aquela se tratava de uma noite um tanto quanto especial, Law permitiu que nós comêssemos nossos lanches no sofá da sala enquanto assistíamos televisão antes de colocar Hiroki na cama, e eu me lembro de me sentir extremamente feliz quando eles escolheram um dos meus filmes de desenho favoritos sem querer.

Eu não lembro em que momento do filme exato eu adormeci, mas ainda tenho a memória daquele dia salva em um portar-retrato sobre a minha mesa da escola, uma foto que Law fez a gentileza de tirar furtivamente para registrar aquele momento único. Hiroki e eu estávamos dormindo sentados, ele encostando a cabeça em meus seios, e eu apoiando meu queixo sobre seus cabelos negros espetados enquanto o abraçava sutilmente. Ambos estávamos com os olhos fechados e os lábios ligeiramente abertos, com feições tranquilas de quem já estava em um sono profundo. Law havia colocado um pequeno cobertor sobre nós dois e a televisão ainda parecia estar acesa pela cor azulada de nossas peles no pequeno retrato, e ele jura até hoje que eu estava roncando no momento da foto, apesar de eu suspeitar que essa parte é apenas uma de suas mentiras com o único intuito de me provocar. Essa é de longe a foto mais preciosa que eu já tirei em toda a minha vida.

Naquele dia, Law e eu não tivemos privacidade, nem romance, nem partilhamos um beijo sequer. Tivemos apenas um momento de intimidade que não se compartilha com qualquer um. Ele e Hiroki estavam abrindo as portas de sua família para mim, e não havia jeito melhor de terminar a noite.


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Notas finais do capítulo

Como a Rose-san teve dúvidas com relação ao regime alimentar da Naomi, vou esclarecer aqui para quem mais tiver interesse:
Naomi é vegetariana estrita, ou seja, além de não comer carne, ela também não come nada que seja de origem animal, como ovos, leite, etc (diferentemente do vegano, que não usa nenhum tipo de produto que tenha relação com animais como roupas, produtos de limpeza, etc). Quando eu disse "lanche vegano", quis dizer que era um lanche sem qualquer produto de origem animal. Geralmente os restaurantes tem uma opção vegetariana (sem carne, mas com queijo, etc), e uma opção vegana (onde até o queijo é especial).



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