Requiem Aeternam escrita por AnaBonagamba


Capítulo 11
Tacet




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Acordei num sobressalto, debruçada no braço da poltrona enquanto Tom continuava sua leitura silenciosamente. Ajeitei meus cabelos atrás das orelhas, olhando o ambiente com atenção até que minha própria respiração não saísse entrecortada. Riddle desviou o olhar para mim:

— Algum problema?

— Não. Só um pesadelo.

Certos momentos eu tinha a sensação de ser assombrada pelo passado que carregava: as atrocidades que havia vivido. Reconhecer que, no fim, eu tinha me tornado exatamente a pessoa a qual minha família desprezaria poderia passar despercebido se não houvesse aqueles dedos longos e gelados pousados cordialmente no meu ombro esquerdo, fazendo evidente sua presença ali.

Quando crianças, eu e Victoria fomos criadas por nossos tios, Andrew e Lucille, ambos os únicos herdeiros de meus avós após a morte de meu pai. Solteiros eram, e assim ficaram até suas mortes, na década seguinte. Andrew, o mais velho, enfatizava que eu poderia ser quem eu quisesse, e fazer o que eu quisesse, mas não deixara de mencionar o grau de periculosidade de se envolver com assuntos legais, seja do ministério ou fora dali. Lucille já era mais categórica: vocês foram agraciadas com uma segunda chance preciosa, faça valer a pena sua vida.

Faça valer a pena sua vida.

Foi um choque para mim quando soube do falecimento sob "causas misteriosas", senão suicídio. Neguei-me a crer e, mais tarde enquanto adulta, obriguei-me a averiguar sozinha, descobrindo, por fim, a dura penalidade da razão sob a emoção e finalmente pude seguir meu caminho em paz.

— Ficaria mais simples se você me contasse. Pode ajudar a superar algum trauma, ou infortúnio. - completou ele com gentileza. Sorri.

— Quase sempre eu sonho com a minha família. - confessei sinceramente. - E noutras ocasiões, com a guerra.

— Somos filhos da guerra. - Tom ajeitou-se na poltrona ao meu lado, fechando o livro no colo. - Eu e você. Poucos aqui dentro vivenciaram alguma experiência relevante com o período histórico que estamos passando atualmente. O ceticismo vêm à tona para os bem-nascidos, envoltos em suas armaduras de dinheiro e referências e o poder de sumir a qualquer momento para qualquer lugar.

— É o que nos faz diferentes deles?

— Não. - ele cerrou os olhos, pensativo. - A diferença é que nós lutamos. Cada um no seu próprio mundo, mas tem batalhas que são comuns entre as pessoas. No mundo mágico, com Grindelwald, somos fadados a lidar com a segregação e a ignorância da mesma forma que os trouxas temem lidar com Hitler. Entendo que o poder da palavra está mais relacionado com a sabedoria de uma nação quando existe ódio e raiva, e daí surge o domínio.

Refleti um instante. Aquele era Tom Riddle, jovem, e provavelmente antenado nos últimos acontecimentos de sua geração. Um rapaz que, a considerar pelo futuro que o aguardava, não fazia ideia de que tal doutrina seria, um dia, a sua própria. Senti o suor brotar na minha testa, tamanha a ansiedade...Precisava continuar o assunto. Mas o que entendia eu, senão da própria história? Soaria estúpida, porém, não deveria desperdiçar tal chance.

— Como você acha que a guerra será resolvida? - arrisquei um diálogo intrusivo. Tom sorriu, segurando minha mão entre as suas.

— A batalha acaba, Valery. A guerra, dificilmente. Entrarão num acordo de paz, tão frágil que nem os próprios redatores compreenderão seu conteúdo. Dividirão fronteiras que no futuro serão novamente expostas. Haverá vergonha, e caos, e certas memórias serão tão apagadas que dificilmente a dor desses anos será percebida outra vez, senão por outro povo, outra geração, e ouso dizer, senão, outro mundo.

Pronto. Está feito.

— Então, as coisas não se resolvem.

— Não. - respondeu-me rapidamente.

— Ao pensarmos assim, devemos considerar que, mesmo se as batalhas cessarem e os responsáveis pelas atrocidades ideológicas forem punidos, há grandes chances de a guerra continuar?

— Exatamente.

— Não faz muito sentido. - comentei displicente. Na minha profissão aprendi que, para resolver o problema da criminalidade havia de ser descoberto, julgado e condenado, o criminoso.

— Se Hitler for detido, ou morto, a ideia central perdura através daqueles que transformaram sua concepção em uma atitude. O exército alemão, seus seguidores, historiadores, jornalistas. Uma legião de milhares de pessoas que vão continuar pensando e pensando até que morram, e suas experiências sejam agora histórias para seus netos.

— O mesmo vale para Grindelwald. - completei.

Tom riu com escárnio, um som gélido e agudo.

— Aqui é pior. - sussurrou para mim. - As famílias cujas tradições mágicas sobreviveram à miscigenação trouxa alimentam-se dessa ira fumegante. Estão preparados para voltar aos tempos áureos do controle absoluto...

— E só estavam à espreita de alguém para comandá-los.

— Aí está o erro, minha cara Valery, o comando não é uma diretriz. E falhará, não há de tardar, em prestar seus acertos de contas.

Dei de ombros, finalmente. Tom estava certo, e ironicamente, suas conjecturas eram furtivas de uma análise que seria feita de si mesmo muito tempo depois.

— Você e Tom pareciam muito envolvidos na conversa hoje mais cedo. - comentou Aurora ao entrar no dormitório, reunindo o pouco material que carregava nos braços no criado ao lado da cama. - Seria muito perguntar sobre o que conversavam?

— Política, questões sociais, essas coisas. - afofei meu travesseiro preguiçosamente, jogando-me sobre ele em seguida. - Tom é muito maduro nesses assuntos. Gosto de partilhar do seu ponto de vista.

— Eu e Malfoy falamos sobre o clima. - Margot saía do banheiro, a toalha ensopada nos ombros finos. - Quando falamos. É um quê de entediante.

— Concordo. - riu Aurora. - Mas Tom e Malfoy são bem diferentes.

— Até me surpreende que sejam amigos. - comentou Margot.

— Amizade essa que se fez logo no início, por acaso... - refletiu Aurora. - Quando chegamos aqui, foi estranho ter um Riddle admitido na Sonserina com tamanha facilidade. Achamos que seria apenas um meio-sangue a mais pra cota dos reclusos e excluídos.

Sentei-me em sua cama, mantendo a atenção no que dizia.

— Acontece que Abraxas sentiu alguma coisa. Ele levantou da mesa e cedeu seu próprio lugar a Tom, e de repente todos abriram espaço. Ambos deram as mãos cordialmente, e esse contato ficou marcado até agora. - ela parou um pouco, olhando para Margot que concordava assentindo. - Creio que parte dos créditos de respeito e admiração até Tom provar-se digno pela inteligência sublime veio, de fato, dos esforços de Malfoy a integrá-lo em seu seleto grupo de amizades puro-sangue.

— Penso algumas vezes que seja apenas um reflexo da intimidação. - Margot respondeu, voltando a mexer nas próprias roupas. - Mas de uma coisa eu sei: Tom é poderoso e tem grande influência por aqui. Abraxas vive na sombra dele desde então, comportando-se muito bem, agindo como mediador.

— Quase almas gêmeas. - eu ri. - Seriam melhores amigos o termo correto?

Margot fechou a cara.

— Amigos? Não, querida. Cúmplices, com certeza.

Abraxas Malfoy fora intitulado o primeiro comensal da morte, cujo registro obtido por Moody constava tortura e controle pelas maldições imperdoáveis. Curiosamente não havia indícios de mortes relacionadas à seu nome, portanto, enfatizei ao outro auror que necessitaria de uma pesquisa mais avançada, o que não me negou prontamente. Em 10 dias, um dossiê mais elaborado repousou sem assinatura sobre minha mesa, com um lembrete: abra em segurança. Abraxas teria desertado o exército de Voldemort quando este planejava o primeiro domínio de Hogwarts, meses antes de descobrir o paradeiro do nascimento dos meninos Potter e Longbottom. Aparentemente, Lucius, o filho, seguiu seus passos.

A natureza do comportamento de Abraxas parecia sempre ser amedrontada, e concordei com Margot quando disse que o mesmo vivia sob a sombra de Tom. Devia, sobretudo, ser seu parceiro mais inspirador de confiança. Estava sempre dois passos atrás de Tom, sentavam-se juntos. Tom por vezes usava suas roupas emprestadas ou doadas por caridade, o que me fez cogitar que Abraxas soubesse da condição pueril do mestre e sentisse o dever de ajudá-lo.

Ou a obrigação.

Tentei instigar Tom no assunto em pauta, o que me rendeu um olhar sombrio e repleto de desdém. Ciúmes do Malfoy? Foi o que me disse. Na verdade eu só estava interessada nas roupas.

Outra coisa que também me foi descoberta à pouco e que acometia um antigo medo de Riddle em relação a mim: o orfanato. Seus colegas estavam cientes de sua condição pobre, e da ausência de uma família paternal. Mas jamais foi mencionado para eles que Tom vivia sob tutela de uma trouxa, encarregada de sua criação em um orfanato tão desprezível e simplório quanto aquele. Entendi que isso lhe fez dar o primeiro voto de segurança sobre minha postura favorável a si.

Quando me dei conta de como o tempo passou, já era tarde para reconsiderar as coisas que poderiam ter sido feitas. No dia 22 de dezembro escrevi uma pequena lista de tudo o que considerara relevante até então, excluindo o fato de como eu havia obtido tantas informações, senão pela própria fonte. Algumas, porém, convenientemente continuavam no escuro.

— Edward Gatwick. - disse-me Snape, retirando um frasco de memória de Dumbledore da penseira enquanto o outro buscava entre diversos pergaminhos algo que gostaria de me mostrar. - Um trouxa, óbvio, contratado para investigações. Deu-nos um tanto de trabalho quanto às informações de uma pequena vila afastada da capital, cujo paradeiro do filho do proprietário de terras misteriosamente nos envolve numa história fascinante.

— Aqui. - Dumbledore virou um grande livro de gravuras sobre a mesa, indicando o rosto do indivíduo com o dedo. - Ofereça quantas libras puder, e terá as informações que precisa. Isso é certo. Mas deve ser antes mesmo que o jovem Tom Riddle considere buscar a família paterna, já que com a materna não terá qualquer referência em Hogwarts.

Posei minha pena delicadamente, selando a carta. À Sir Edward Gatwick, Mayfair, Londres. Um local inapropriado para tal tipo de serviço, porém, pensei, quem desconfiaria? Um rico senhorio que provavelmente esgotara seus fundos no  jogo e usava de sua influência para conseguir desvendar segredos profundos dos mais diversos tipos.

Junto à imprensa, Edward já havia participado das investigações que ligavam o nome dos Riddle à uma azaração realizada por Marvolo muito antes de Tom nascer. A memória da maioria dos trouxas envolvidos fora delicadamente apagada, contando que as evidências deste pequeno incidente bruxo estiveram ao encargo das autoridades mágicas. Nunca chegaram no senhorio, é claro, pois ele teoricamente jamais estivera lá.

Creio que o fazia por hobbie, e agradeci o fato de Tom estar numa reunião final de monitoria. Àquela altura nenhum aluno me incomodaria na biblioteca, já que todos meus conhecidos haviam sido dispensados para o feriado de Natal e Ano Novo. Ri sozinha, devido à quantidade de convites recebidos para celebrar as festividades ao lado dos Malfoy, dos Droope ou Finley's. Até mesmo Dolohov, o qual eu pouco conhecia, viu-se obrigado a me chamar para convencer Tom a finalmente unir-se à família de seus seguidores. Não deu certo. Recolhi as minhas coisas e parti para o corujal. Reli mentalmente minhas palavras, me concentrando nos detalhes:

Requisito ao caríssimo senhor informações sobre o paradeiro de um homem de sobrenome Riddle, com pouco menos de quarenta anos, residente na Vila de Little Hangleton. Assunto de cunho particular. Seguem 200 libras em anexo.

O dinheiro era uma pequena fortuna, e iria me servir bem. Tomei o cuidado de não informar o endereço precisamente, apenas retornar através da coruja. Foi-se a carta, desci as escadas quase displicente, enquanto a noite caía num frio cortante. Toda Hogwarts parecia iluminar-se com os pequenos flocos de neve que se amontoavam pelas torres e corrimões, enquanto o Grande Salão reluzia as cores das quatro casas com temáticas natalinas bastante decorativas. Eu não me recordava de ter visto tamanha dedicação por parte dos estudantes em reinventar tanto as datas célebres como faziam na década de 40. Aparentemente, eu e meus colegas éramos um tanto mais sóbrios.

Percorri os corredores sem pressa, vendo Pirraça amedrontar os poucos alunos que restaram, já que a guerra continuava a assolar ambos nossos mundos. Os que tinham família faziam questão de visitá-los, afinal, não se sabia quando seria a última vez. Os mais desafortunados, como eu, se mantinham ali, em segurança.

— Perdeu-se no caminho? - Tom aproximou-se de mim, um sorriso delicado lhe saboreando os lábios extremamente rubros pela pouca temperatura. Não reparei para onde caminhava mas, sem intenção, parei entre as mesas da Grifinória e Sonserina, sondando e retribuindo o olhar quase curioso de Grisha MacLaggem sobre mim, até que se desviou assim que Tom percebera quem havia cativado minha atenção. Ela parecia triste.

— Tem algo de errado com aquela garota. - comentei, virando-me para si. Ele usava um lindo cachecol verde e prata, e as vestes de inverno aparentemente novas. - Veja só, quanta elegância!

Tom passou a mão no cabelo convencido.

— Presente de Slughorn. - disse ele, enquanto eu grunhi. - Ser bajulador e também o melhor aluno até que me traz alguns benefícios. - ele passou o braço por cima de meus ombros, caminhando até nossos lugares. - Estava comentando de Grisha.

— Ah, não é nada.

— Você é muito perceptiva. - ele se sentou. - Diga. O que passa pela sua cabeça?

Voltei a olhar para ela, que tentava disfarçar a conversa com outro rapaz, um lufano muito bonito. Volta e meia ambos passaram a desviar o rosto para olhar para nós. Tom notou o movimento e se aproximou de meu ouvido para sussurrar:

— Aquele é Lazarus Smith, está no terceiro ano, assim como ela. São colegas de turma, e conhecidos um da família do outro por gerações. Não se preocupe com eles, estão apenas curiosos.

— Curiosos por quê? - questionei genuinamente curiosa.

— Ora, minha cara, como poderiam não estar? Se é você que me cativa a afeição de uma forma tão oblíqua? É uma surpresa e tanto para estes e outros de nossa escola. Antes de você chegar eu era assexuado, frio, e provavelmente sem coração.

— Aposto que não há nenhuma motivação para tal... - insinuei sorridente, enquanto Tom se ocultava sobre as páginas de Os Contos de Beedle, o Bardo.


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Notas finais do capítulo

Tive que fazer algumas modificações ao longo da linha do tempo, mas vou tentar postar com mais frequência.
Não é uma promessa.
É só a tentativa de uma.



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