Estrelas Perdidas escrita por S Q, Lara Moreno


Capítulo 8
Nebulosas


Notas iniciais do capítulo

" A coragem conduz às estrelas, e o medo à morte" - Sêneca.



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Fiquei bastante curiosa depois que o Benjamin saiu. Tinha alguma coisa séria acontecendo ou o médico não ia tê-lo chamado daquele jeito. Aproveitei que Suzana, a enfermeira de quintas- feiras veio ver como eu estava, logo após a saída nada furtiva dos dois. É lógico que eu ia tentar pegar informações.

Já tinham se passado algumas semanas desde que acordei, e entre esses dias fui aprendendo o nome dos funcionários e me tornando um pouco íntima de todos. Àquela altura já sabia o nome de todos que vinham cuidar dos poucos curativos que ainda me restavam pelo corpo. Eles tinham uma escala precisa, que na falta de coisas interessantes para se fazer dentro de um hospital, consegui decorar:

Elias, um rapaz careca, sempre de sorriso nos lábios grossos vinha aos Domingos. Ele gostava um tanto de pagode, sempre estava cantarolando um. Apreciava sua bela voz, e pensava que se não fosse pela mãe pobre e doente, gastaria o tempo que gastava comigo e os outros pacientes cantando em alguma gafieira. Algumas músicas ele sempre repetia, como aquela “deixa a vida me levar”. Quando estava sozinha me pegava cantarolando ela, para passar o tédio. Helena, a moça de pele clara e sardenta vinha normalmente às segundas. Ela amava o que fazia. Sempre comentava saudosa de alguma lição no curso de enfermagem conforme realizava os procedimentos. Terça era dia de Vicente. Um rapaz atrapalhado, de cabelos bagunçados e aparelho nos dentes. As terças eram inesquecíveis, afinal, sempre alguma coisa engraçada acontecia: ou ele derrubava remédio no suco do almoço, tropeçava entrando, tirava minha peruca do lugar. Mas era bastante profissional  e nunca cometeu algum erro comprometedor para seu emprego. Ao menos era o que se orgulhava em dizer. Quarta, Selina. Uma moça que devia ter mais ou menos minha idade pelo porte. Foi conversando com ela que concluímos juntas que eu devia ter entre 20 e 25 anos. Ela explicou algumas coisas lá sobre anatomia, que estudava na faculdade de medicina que cursava à noite, com o salário do ofício. No meio das palavras difíceis, captei que existe um ossinho no pulso, que pelo estado dele dá para se ter uma estimativa da idade da pessoa. Lembro de ter passado a esfregar meu pulso quando o desespero começava a querer apertar a partir do dia em que ela me disse isso. É um tique muito discreto. Só faço quando preciso me certificar de que tenho uma história, uma identidade, e de alguma forma ela ainda vai comigo mesmo que eu não me lembre.Suzana era uma figura. Negra, com seus lindos cabelos trançados e um corpo pequeno, porém forte, ela era a fofoqueira oficial do hospital. Não perdia a oportunidade de falar suas impressões de algum médico plantonista ou de algum paciente novo. Cada poeira do hospital aquela mulher conhecia, era impressionante.

Sexta e sábado era por revezamento, então não tinha um padrão nesses dias.

Sendo assim, a presença de Suzana veio a calhar. Tentei tirar o máximo possível de informações dela.

— Oii, minha enfermeira predileta!

— Oii, menina! — Ela estava mais atenciosa que o normal. Veio logo ajeitar meu cabelo falso, esticou a cama, começou até a girar de empolgação.

— Poxa, porque está tão empolgada?

— AAAaah! Já, já você vai fazer; já, já.

— E eu não posso tentar saber, não? Você sempre conta o que está acontecendo no hospital… — Como podem ver, eu realmente utilizava técnicas ninjas e avançadas de conseguir informação.

Ela fez uma cara bem estranha em reação ao que eu disse. Soube tempos depois que estava em um guerra interna. De um lado seus instintos de sair falando tudo por aí, do outro, a ordem que tinha recebido de manter a boca fechada. Ela permaneceu com aquela careta estranha um tempinho, enquanto espanava as coisas apressadamente pelo meu quarto e guardava as bandagens e aparelhos que restavam ali. Estava tão afobada que parecia até que iria esvaziá-lo para outra pessoa ocupar. Ela catava até fios de cabelo sob o móvel ao lado da minha maca. E ajustava a cama, nervosa. Eu estava em pé, no outro canto do quarto. Não precisava mais ficar de cama, nem eu aguentava mais.

— Calma, não precisa ficar tão agitada! Eu não pergunto mais nada. — Falei abrandando a voz. — Nesse ritmo parece até que vai me expulsar do quarto daqui a pouco. — Comentei rindo.

— Você recebeu alta. — Ela comentou de uma vez só, com uma cara de pavor.

Acho que senti a Terra girando em torno de si mesma e do Sol ao mesmo tempo no momento em que ela me disse isso. Ri de nervoso.

— Espera, você tá falando…

— Ai, desculpa, não era para você saber assim, nem agora! Eu tinha que esperar a psicóloga mas… desculpa.

É claro que eu estava feliz por poder voltar ao mundo normal. Mas… também tinha medo. E se eu não soubesse nem como viver normalmente? Para onde eu iria? Já não tinha mais esperanças de alguém viesse atrás de mim depois de tantos dias e isso era exatamente o que mais me preocupava. O que a vida reservava para mim, uma ninguém começando do zero?

Sim, eu tive um leve surto naquele momento. Bendita psicóloga que já estava vindo. Ela conversou confortavelmente comigo e consegui me acalmar um pouco. Mas o problemas ainda existiam ainda e eram bem reais. Suzana acabou ficando junto da outra profissional no quarto e assim que a sessão terminou, ela pegou na minha mão, solidária. Disse que os médicos já estavam pensando nisso há alguns dias mas como sabiam da minha situação, foram postergando minha alta, aguardando que minha memória retornasse mais um pouco entre esses dias. Contudo, aquilo era um hospital público haviam muitas pessoas em estados piores que o meu implorando por uma vaga ali, em situações de vida ou morte. E meu cérebro trolou todo mundo, entrando em greve de recuperação da memória.

Por mais que eu estivesse precisando de uma companhia, Suzana precisava atender os demais pacientes. Eu assenti com a cabeça quando ela disse que precisava ir, com um olhar triste. Mas antes de sair, me entregou um cartãozinho. Era o seu telefone.

— Qualquer coisa que precisar, pode chamar.

Sorri grata em resposta. Vi ela saindo e fiquei ali, sentada sozinha no quarto que não era mais meu. Minha vontade era ficar lá, sentada aguardando até que alguém me dissesse alguma coisa para fazer ante a situação. Não sei dizer exatamente quanto tempo tinha passado assim, até que com o tédio, comecei a cantarolar uma música que o Benjamin colocava às vezes: Brilhante, daquela Riley que ele babava tanto.

 

Hey, ya!

Você é Brilhante

Segue o baile

Vai Segue

 

Hey, ya!

Você é Brilhante

Segue o baile

Vai Segue

 

Oh, oh, oh, Brilhante

Só o seu brilho

Tá no caminho”

 

A letra era excessivamente chiclete, as rimas pobres, esses sucessos bem mainstream, sabe?  Maaas me acalmou um pouco. Por mais que eu não tivesse a voz afinada de uma princesa da Disney, e ainda estivesse um pouco rouca dos tubos que me puseram nos primeiros dias eu gostava de escutar minha própria voz. Ela era outro vestígio de quem fui.

Quando abriu-se a porta novamente, no meu nervoso, me calei e quase chorei agradecida. Ok, talvez estivesse de TPM também.

Era Benjamin e ele tinha um olhar decidido no rosto, para meu alívio. Não sei explicar pois deve ter sido uma das únicas vezes em que vi ele assim, mas quando ele tomava uma postura de segurança… ficava admirável. Enfim, retomando.

— Oi, Rita. Tudo bem?

— Olá! — Respondi sem muita empolgação.

— Tenho uma novidade pra te contar…

Interrompi:

— Já me contaram.

Ele arqueou as sobrancelhas surpreso. Depois puxou um sorriso para o canto. Como ele podia sorrir numa situação dessas?

— E o que você pensa em fazer quando sair daqui?

— Sinceramente? Não faço a menor ideia

Aí, eis que a criatura falou como se fosse a coisa mais natural do mundo:

— Pois então, acho que você vai gostar de conhecer minha casa e passar, sei lá, vários dias lá até cansar de mim ou outra coisa.

Demorei um pouquinho até responder alguma coisa:

— Você... tá falando sério?

Ao contrário de mim, a resposta dele veio como um torpedo:

— Cem por cento sério.

E aqui vai uma dica para os rapazes: não falem algo como se fosse banal quando uma mulher nas iminências dos hormônios, emoções e medo do futuro estiver por perto e não achar que seja.

Ok, essa dica é meio confusa, mas é real. Acho que eu tive meu segundo surto do dia. Entre outras palavras sem sentido, lembro de ter dito:

— Aaah! Eu não sei se te agradeço ou mando criar juízo.

Aos poucos fui começando a falar coisas mais sensatas:

— Você ao menos mora sozinho, né? Suponho?

— N-não, eu moro com meu irmão... mas relaxa, eu já conversei com ele!

Travei de novo. Aquele momento foi o mais surpreendente. Ele não me falava muito da família, mais dos amigos, mas dois parentes se disponibilizando totalmente às minhas desgraças? Aquilo foi como um sacode que me fez analisar a situação um pouco de fora. Devo ter levado um meio minuto entre pensar e falar:

— Poxa, eu... nossa! Sua família deve ser mesmo muito boa para cuidar tanto assim de uma desconhecida!Não...sei como agradecer!

Ele riu de nervoso.

— Nem precisa agradecer. — Esse garoto devia estar de brincadeira.

— Que isso! Eu devia procurar algo melhor para dizer. Você acabou de salvar minha vida pela segunda vez. E… Não é possível! Eu realmente preciso conhecer o ambiente onde te criaram!

Percebi de imediato que ele ficou meio desconfortável: mordeu a boca.

— Não sonha tanto, não, tá?

Claro que já devia estar abusando, apesar do esforço para parecer simpática... Meu Deus, era uma situação tão delicada e complexa! Era bom demais para ser verdade.

— Ué, mas... desculpa. Eu tinha entendido que ia para a sua casa.

Benjamin me interrompeu rápido com aquele ar sério:

— E você vai. — Depois relaxou.  —Mas eu quis dizer quanto a... esquece, vai dar tudo certo! — Forçou um sorriso.

— Bom... Espero que sim. Eu só não quero incomodar. Estou tentando te perturbar o mínimo possível. Mas eu sei que

— Tá tranquilo, Rita. — Cortou, me olhando nos olhos.

Corri e dei um abraço apertado nele.

Só depois fui perceber o que tava fazendo. Me afastei sem-graça. Carência era algo terrível. E o coitado ainda ficou com a cara toda vermelha.

— Ahn... obrigado.  — Disse com um sorriso afetado. De novo eu saí falando descompensada:

— É, então... eu que deveria estar agradecendo. Mas, prometo que minha estadia não vai demorar. Eu vou conseguir me lembrar das coisas. Ou ao menos... eu espero. — Concluí sem graça.

— Eu acredito em você. — Disse ainda sério e depois acrescentou mais animado, reconfortando — Eu ainda tô impressionado, você foi muito rápida para começar a lembrar e se recuperar! Quero dizer, eu não sei de medicina mas os próprios médicos disseram isso.

— Eu não sei se isso é exatamente um elogio que se responda com agradecimento, mas vou levar como um. Então… meu obrigada!  — Falei fazendo graça para descontrair, me curvando como uma dama das novelas de época que as enfermeiras assistiam pelo celular.

Ele finalmente riu.

— Então, já começou a arrumar suas malas?

— Epa! Saí como uma barata tonta até meu querido cérebro resolver funcionar. — Mas.. que malas?

Ele deu uma risada curta.

— Desculpa, foi só uma expressão. — Suspirou. — Você está pronta pra sair desse hospital e conhecer o mundo?

— Não. — Fui franca, dando uma risada nervosa. Benjamin balançou a cabeça.

—Só espera um semana fora e você não vai mais nem sentir saudades desse lugar... Sério, isso aqui tá uma desgraça, eles deviam fazer uma reforma. — Dizia enquanto observava ao redor, prestando atenção nas infiltrações na parede e na tinta descascada.

— Assim espero.


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Notas finais do capítulo

Boa madrugada, pessoal! SQ aki, postando esse capítulo com as estrelas de verdade há muito tempo no céu. Também, pudera, é agora que tudo muda. O que acham que vai acontecer? Nós, as autoras, estamos curiosas sobre o que os leitores vão achar.



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