Estrelas Perdidas escrita por S Q, Lara Moreno


Capítulo 3
Risos ao Invés de Lágrimas


Notas iniciais do capítulo

"Ainda que haja noite no coração, vale a pena sorrir para que haja estrelas na escuridão." - Arnaldo Alvaro Padovani



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Benjamin

— Queria ser famoso assim algum dia... —  Tinha sido a última coisa que disse antes de vê-la roncando.

Então comecei a imaginar: eu sentado num sofá grande e preto, daqueles que três pessoas podem esticar as pernas juntos e deitar a cabeça em qualquer uma das várias almofadas espalhadas; um balde de pipoca na mão, uma televisão de led que ocupa toda a parede, trocando de canal quando de repente escuto minha voz saindo da boca de um esquisito famoso. Deixo no programa e me impressiono pela minha atuação que deixa minha voz quase irreconhecível, como se pertencesse ao próprio ator, e não a mim. Que confortável. E também, por que não estrelando uma peça? Ajoelhado e sozinho num palco de madeira, a cortina vermelha enorme atrás de mim, eu digo "Ser ou não ser..."

Meu celular vibrou nessa parte do devaneio. Observei a menina dormindo, parecendo tão relaxada e saí devagar evitando fazer barulhos, com a intenção de voltar para lhe fazer companhia e ver se estaria melhor. Atendi do lado de fora da sala, era o Kaio, ele disse que o gerente já estava enchendo o saco dizendo que eu estava demorando para voltar do hospital. Pedi para ele responder que eu já estava chegando. Assim que desliguei, ri sozinho... ainda nem tinha saído do corredor do quarto da menina.

Enfim, o restante do dia foi tranquilo. Fiquei mais animado durante o trabalho, como em qualquer outro dia antes daquele estranho acidente. Era bom pensar direito novamente. Tão direito quanto dava para mim.

Não, na verdade por fora era apenas mais uma tarde e noite normais, mas por dentro, eu me sentia diferente e planejava visitá-la no dia seguinte. Não tinha conversado com ninguém ainda sobre o que aconteceu, nem com o Kaio que é meu melhor amigo; de qualquer forma, ninguém parecia desconfiar de nada diferente.

Por que não contava? Bem, a moça parecia mais perdida e desconfiada que cego em tiroteio, não achava uma boa ficar falando dela por aí assim. Eu precisava conquistar sua confiança, além de só ter tido uma conversa direita com ela. Da outra vez que fui lá, ela estava dormindo ferrada no sono, e só consegui entregar as flores que tinha comprado. Haviam passado três dias do acidente e eu ainda nem sabia o nome dela. Na hora que falou que não iria dizer nem seu nome, pensei logo se não estava conversando com uma fugitiva ou procurada do FBI, tipo filme de ação, mas afastei a ideia rápido; inclusive ainda me sinto mal por ter pensado isso.

Às dez da manhã de um sábado, as ruas estavam mais vazias, com poucos carros e poucas pessoas. Talvez o centro da cidade estivesse mais cheio.... pois é, uma manhã de fim de semana em que eu poderia estar dormindo na minha cama quentinha e fofa ou assistindo algum filme ou série na TV, lá estava eu estava andando na rua e em baixo de uma chuva forte. Só não estava encharcado, porque um guarda-chuva apareceu magicamente na minha mochila, já que não lembrava de ter colocado lá e nem sabia que iria chover naquele dia.

Mas nada disso importava naquele momento; estava procurando uma lojinha de comida de qualidade e barata para deixar a menina feliz. Um médico falou que ela já podia comer coisas diferentes, tinha perguntado depois da visita frustrada porque vi um prato de arroz e feijão e umas misturas doidas na mesinha perto da cama dela, aí estranhei.

Depois de mais ou menos uma hora andando, achei uma fábrica de bolos. Admirei pela vitrine giratória. Eram tão bonitos, brilhosos e chamativos e bonitos e atraentes... meu estômago roncou e eu já sentia seu sabor delicioso na minha boca. Chocolate com recheio de morango e coco com dois morangos pequenos em cima. Eu tinha certeza que ela ia gostar, quem não gosta de bolo? Entrei e pedi quatro pedaços para a viagem, ficaram num saquinho todos embrulhados. Porém, no meio do caminho, tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho e ela se chamava "pouco dinheiro para ir para casa se eu for para o hospital". Teria que pedir carona para o meu irmão e aí ouviria a viagem inteira como tenho que ser atento e responsável com meu dinheiro. Sempre sentia como se voltássemos  para a minha adolescência quando andava de carro com ele. Pior que dessa vez ainda ia ter que contornar perguntas sobre o fato de estar indo a um hospital. Odeio ser pobre. Respirei fundo tentando aceitar essa triste realidade. Ou andava muito até em casa como fiz no dia do acidente, contudo por causa do choque, eu nem tinha sentido. Mano, como consegui andar quase um bairro inteiro e não caí no chão e nem fui assaltado? Acho isso tudo tão bizarro até hoje, como se eu tivesse ganhado poderes. Porém, dessa vez, sem condições de andar esse tanto. Era carona mesmo.

Cheguei no hospital às 13 e pouca. Meu irmão nem me importunou tanto, acreditava que eu iria fazer algum exame de rotina. Aqui na família todo mundo era atendido pelo SUS, pela primeira vez isso foi motivo de alívio.

A menina estava acordada, mas ocupada, então só pude entrar às 14 horas. Nem vi o tempo passar, fiquei conversando com duas grávidas e um garoto com mais ou menos a minha idade que tinha uma mancha nojenta no braço. Foram tantos assuntos. 

Entrei no quarto e vi que ela estava deitada com um olhar caído, talvez estivesse com sono ou triste, a cabeça virada para o lado. Sorri fraco e sentei do outro lado da cama. Coloquei o saco na mesinha e tentei chamar sua atenção.

— Oi — Fiz uma pausa. — Gosta de bolo?

Ela fez uma cara de surpresa ao me ouvir, estava perdida em algum pensamento quando entrei. Tanto que exclamou um pouco assustada:

— Você voltou!

— Claro, queria saber se você tá bem. — Sorri e sentei ao seu lado. — E aí?

Ela deu uma risada e apontou com as duas mãos para a maca:

— Tão bem quando dá para estar.

Dei um riso alto, apesar de tudo ela tinha bom humor, já tava gostando. Depois de pararmos de rir, lembrei do saco que trouxe e repeti a pergunta:

—  Hm… e aí, aceita o bolo?

—  Ah, m-me desculpe eu esqueci que você trouxe. Minha cabeça tá meio zoada, foi mal. - Ela admitiu, murchando um pouco. —  Na verdade, acho que não posso comer isso ainda.

— Eu perguntei para seu médico ontem e ele disse que pode. - Dei de ombros, mas tentando não perder a pose de gentil.

— Aahh, se é assim... deixa aí então, depois eu como. —  De repente lembrou, um pouco sem graça — Obrigada também pelas flores.

O ego aqui já começou a inflar:

— Não há de quê.

 

***

 

Riley

Eu juro que tentava dar atenção para o Benjamin, porém estava difícil. A imagem que vi no espelho não saía da minha cabeça por nada. Aliás, o fato dele estar lá só me deixava ainda mais apreensiva. Como ele ainda conseguia encarar uma mulher careca, cheia de bandagens no rosto tão pacificamente? Mais cedo, antes de chegar a visita, outra enfermeira veio fazer os testes neurológicos básicos, que se resumiam à repetição daquelas mesmas perguntas fáceis, mas impossíveis de responder. Quando iam aceitar que minha memória tinha se perdido completamente? Aquele visitante excêntrico realmente podia ser uma boa ajuda para me distrair.  Só que, não me entendam mal, eu não queria ele ali desperdiçando sua energia com uma acamada. Cada sorriso dado me desconcertava ainda mais. Nem um pouco À vontade, desandei a falar:

— Olha, se você estiver fazendo isso por pena ou eu estiver atrapalhando sua vida eu juro que não precisa, quer dizer eu sei que tô meio enrolada mas posso tentar me virar, tanta gente consegue não é mesmo e…

— Não, não, não é pena e não está atrapalhando minha vida. — Falou apreensivo. Sua expressão agora era mais preocupada. — Estou aqui porque eu gosto de você e quero te ajudar. É sério, se fosse um maluco psicopata no seu lugar, acho que não voltaria mais. E também, eu quero ser a pessoa que vai empurrar sua cadeira até a porta. — Como alguém pode soltar uma piada horrível dessas e rir depois do que eu falei? Dei um tapinha em seu braço.

— Deus me livre! Já basta estar desfigurada e desmemori… —  Meu Deus, por que eu falei isso? Que ódio de ainda estar meio grogue! Benjamin podia não se importar com meu estado mas ele não sabia ⅓ do pior. Emendei nervosa —  Esquece o que eu falei!

Percebi que ele ficou intrigado, mas acabou acatando.

— Tá... — Disse somente. “Desmemori”? Só alguém muito lerdo não teria entendido. Para completar ele ainda me perguntou:

—  Ah, mais alguém veio te visitar?

Era possível piorar o nível das perguntas? "Ele só pode estar de zoeira", pensei. Acabei disfarçando com uma piadinha:

—  A enfermeira conta?

Olhou teatralmente para cima, fingindo pensar...

— Hm... não, mas eu deixo.

Ok, agora eu ri. Eu esperava qualquer coisa menos essa saída jocosa. Não me julguem, minha intuição dizia que eu podia confiar nele, mas caramba, era tudo insano demais!  De qualquer forma, tudo bem, eu não tinha muito em quê confiar. Respirei fundo, fechei os olhos com vergonha e decidi soltar uma pequena parcela da minha insólita realidade. — Tudo bem. A verdade é que... não apareceu ninguém até agora. Então eu simplesmente não entendo... porque quem me conhecia me deixou aqui e logo você, um ilustre desconhecido foi se preocupar comigo.

Finalmente eu vi o fenômeno: o rosto de Benjamin murchar. Sabia que tinha acabado de jogar um enorme peso em suas costas. Ainda assim, ele tentou se manter gentil.

— Eu também não sei. —  Disse com um sorriso amarelo. Entramos num silêncio constrangedor até que ele mandou mais uma pergunta. — Eles têm alguma ideia de que isso aconteceu com você?

"Mas só piora a cada pergunta", pensei.

— Podemos mudar de assunto? — Perguntei desesperada.

— Desculpe. — Corou. — Podemos sim.

— Ahnn… — Tá, tinha pensado em nada para falar. Acabei optando por virar o jogo: conhecer ELE melhor. Eu tinha direito a essa espécie de vingancinha, não tinha? — O que você faz da vida?

— De trabalho? Eu fico falando as ofertas do mercado, sabe? Sou o cara do microfone.

Aquilo me empolgou. Podia não me recordar de muita coisa, mas ao menos tinha noção de que era uma profissão bem inusitada — Que interessante! E você gosta?

— Gosto. — Balançou a cabeça de forma positiva. — Acho divertido, aproveito para zoar com a voz e com as pessoas, os clientes gostam.

— Ah, então você gosta de trabalhar com a voz... Sabe cantar?

Desviou o olhar e franziu a sobrancelha, nesse momento — Olha, eu gosto, mas canto pouco…

Há! Era minha vez de deixar ele na berlinda:

— Hm, então mostra aí esse pouco!

— Tem certeza que você quer ouvir isso? Não prefere uma voz boa de verdade? — Com certeza ele era o inseguro agora.

— Manda aí! O máximo que vai acontecer é minha dor de cabeça piorar.

Começamos a rir.

— Ah, é? Deixa para ofender depois de ouvir.

Sempre brincalhão, ele endireitou a postura, se empertigando igual um pavão e mandou:

— Tá, vou começar... — Ele abriu a boca para cantar mas começou a rir de si mesmo e eu não aguentei, caindo junto na gargalhada. Estávamos nesse ponto quando a porta do quarto abriu. Era o plantonista do dia, a enfermeira falou alguma coisa de que viria fazer um check-up. Sério, pediu para que Benjamin se retirasse e aguardasse ele sair. Disse que me examinaria e depois queria conversar com ele.  Me empertiguei na maca. O que ele poderia querer falar justamente com esse garoto?


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Notas finais do capítulo

Agradecemos aos comentários e favoritos ^^