O dia em que Kyle se apaixonou escrita por Theo Cavallone


Capítulo 1
O dia em que Kyle se apaixonou




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Kyle Broflovski era considerado um dos garotos mais corretos do oitavo ano da escola primária de South Park, não havia nenhuma discussão que tirasse o mérito dele em criar discursos motivacionais e resolver problemas. Por ser dessa forma que foi unânime a decisão de que ele seria o orador da formatura naquele ano.

Mesmo com a glória momentânea que ele sentia que carregaria por montar um texto motivacional para os colegas, bastou uma piadinha final do Cartman no meio da sala para que todo o seu orgulho fosse destroçado em pouquíssimos instantes e se tornasse um grande motivo de risos para todos ali. E foi enquanto via seus próprios amigos ridicularizando-o que ele percebeu que ser um garoto correto talvez não trouxesse o tipo de glória que vinha buscando.

Foi em passadas fortes pelo corredor que o jovem judeu decidiu tomar a sua primeira grande atitude, intercedendo seus dois melhores amigos, Stan e Kenny, deixando a fúria exposta em seus olhos castanhos e bochechas sardentas rosadas. Era o fim, estavam finalizando a escola primária e não poderia se permitir que suas últimas lembranças naquele lugar fossem construídas com bases em humilhações e depreciações vindas de Cartman.

— Amigos - começou ele, esperando Stan fechar seu armário para continuar. - Em breve estaremos na escola secundária, é a hora de definirmos quem somos e que construção social queremos fortificar. Será o momento de selecionarmos nossos cartões de visitas para o mundo.

A entonação da voz de Kyle em seu discurso logo fez com que Stan e Kenny se entreolhassem, sem saber se ele estava usando-os como plateia para treinar o papel de orador ou estava apenas sendo mais uma vez aquele Kyle motivacional de sempre. Deviam interrompê-lo? Não era como se tivessem vontade em gastar todo o intervalo ouvindo o que o amigo tinha a dizer - e sabiam que quando ele queria, era capaz de arrastar-se por um tempo considerável.

— Acredito que não possamos adiar mais, devemos encarar que Eric Cartman não é a melhor figura para mantermos junto de nós. Nosso futuro poderá ser comprometido se nos permitirmos caminhar lado à lado com alguém que demonstra um sádico prazer em desprestigiar seus próprios amigos.

A força das palavras de Kyle oscilaram, sentindo um grande pesar em ser o percursos naquela decisão. Queria dizer para os amigos que deviam excluir oficialmente o Cartman do grupo, que quando fossem para a escola secundária essa separação tomaria um caráter definitivo, mas sua consciência lhe dizia que ainda havia tempo de abandonar essas ideias desconstrutoras.

— Cara.. - Stan interrompeu-o, apoiando as costas no próprio armário. - Isso foi pela piada sobre o seu cabelo? - Perguntou-o, querendo entender a razão disso tudo.

Stan não negaria que riu junto dos demais, foi engraçada a comparação entre o vermelho de pare e a necessidade de que o orador fosse alguém que parasse os demais para ser ouvido, mesmo que o Kyle nunca parasse de falar, pois não via o próprio cabelo. Certo, o Cartman era bem cuzão, mas essa piada não foi nem de longe a mais preconceituosa que ele já havia feito.

— Não! - Falou alto, fechando os punhos em irritação. Ou melhor, talvez fosse, mas não era apenas por isso. - Ele é um babaca! Eu tenho certeza que vocês dois concordam comigo, ele sempre está zoando a todos nós. Eu por ser judeu, Kenny por ser pobre e o Stan por ter namorada. Por que mantemos ele no grupo? Ele nem nos vê como amigos! - Argumentou, cruzando os braços ao olhar os demais. Não podia ser o único incomodado com isso, não era?

— O Cartman é um merda - disse o Kenny, nunca tendo tido problema em admitir isso.

Não tinham dúvidas sobre o quão desagradável fosse o outro garoto, mesmo assim Kenny e Stan precisaram se entreolhar silenciosamente uma nova vez, debatendo através de olhares sobre como prosseguir. Era meio óbvio para os dois ali que o problema não era o Cartman, mas sim a piada sobre o cabelo de Kyle e como as palavras do Cartman sempre o afetavam demais.

— Achei que já tivessemos superado isso - Stan suspirou, esticando uma das mãos e pousando no ombro do ruivo, querendo tranquilizá-lo. - O que você fizer, pra gente tanto faz.

— Mas não sou só eu - alegou, não adiantaria se fosse o único trabalhando nesse boicote. - Eu estou dizendo que nenhum de nós devia ser amigo do Cartman.

— Nós já não somos - Kenny encarou-o, vendo que talvez fossem precisar serem mais diretos. - Nunca fomos. Eu odeio o Cartman.

— Todos nós, Kenny. Todos nós. - Stan concordou, percebendo a confusão que estavam gerando no outro. Sério que teriam de voltar nisso? Eram assuntos da terceira série. - Kyle, era você. Sempre era você.

Um silêncio se fez entre os três, deixando que os sons dos demais alunos andando pelos corredores predominasse dentro da roda. Não parecia um momento adequado para esse tipo de conversa, mas talvez nunca houvesse realmente um momento certo para se constatar o óbvio.

— Do que estão falando..? - Questionou Kyle, não entendia onde eles queriam chegar. Era a sua culpa? Culpa do Cartman ser um lixo de ser humano?

— Todo esse tempo, foi você, cara - Stan continuou, olhando para o Kenny e vendo-o confirmar, dando-lhe apoio em continuar falando. - Nós odiamos o Cartman, era você que sempre ficava conversando com ele e convidando-o para vir conosco. Você fala com ele por telefone toda a noite, pra gente sempre foi claro que não era o Cartman que andava com a gente, ele andava com você e você que anda com a gente.

— Mas.. Pera aí! - Interrompeu-o, tentando argumentar. Como assim? Certo que Stan que tinha umas ideias loucas de aventuras e deixava em suas mãos ser responsável por chamar os demais, mas era comum acordo que os demais eram Kenny e Cartman, não? E sobre os telefones, era o Cartman que ficava lhe ligando para contar sobre como havia sido o seu dia, ele também ligava para o Clyde e o Token. - Isso não tem nada haver! Eu odeio o Cartman, ele sempre fica zoando comigo!

— Puta merda - Kenny bateu a mão na própria testa. Sério que o Kyle fingiria que era o idiota do grupo agora? - A gente nunca foi amigo dele! É você que sempre o chamou de amigo! Até quando nos dividimos em grupos de super heróis na quarta série, foi você que ficou no grupo dele. Caralho! - Chutou os armários, não contendo a própria irritação. Ele achava que gostava de ter aquela bola de sebo por perto? Já teria matado-o se pudesse.

— Calma, Kenny. Calma! - Pediu Stan, tentando acalmar o loiro um pouco. Surtar não resolveria nada, precisavam ficar frios para ajudar o Kyle. - Olha, Kyle.. Nós odiamos o Cartman, é você que o vê como amigo aqui. Se você quiser se afastar dele, pra gente tanto faz.

Ou até fosse melhor, claro. Já haviam discutido a possibilidade de se livrarem do Cartman, o único problema era o quão emotivo o Kyle ficava quando esse era excluído. Não era como se nenhum dos dois não tivesse visto que ele chorou no balanço quando o Cartman deletou o twitter ou que seguiu-o até Los Angeles de triciclo pra que ele não fosse sozinho impedir a exibição do episódio de Family Guy. Sem citar que ele carregou o Cartman todo o tempo quando ficaram presos naquelas cavernas turísticas, dizendo que não o deixaria sozinho. O que dava pra fazer? Kyle era legal, mas se importava demais com aquele gordão.

— Mas.. - tentou contra-argumentar os outros, mas quanto mais pensava, mais percebia que eles deviam estar certos. Sempre foi por sua causa?

Os olhos castanhos ficaram claramente atordoados, cambaleando por alguns momentos antes de apoiar uma das mãos nos armários, evitando perder o equilíbrio. O que estava acontecendo? Não entendia como se permitiu chegar nesse ponto, cultivando uma amizade sincera com o responsável por todo o bullying e caos que enfrentou durante todos os seus anos na escola primária.

Sentiu Kenny segurá-lo pela cintura, enquanto Stan ajudou a colocar seus braços nos ombros dele. Não demorou para ser arrastado pelos dois para fora dos corredores, só caindo a ficha do quão precária estava a sua situação quando sentiu o vento frio do lado de fora do prédio. Os dois, entretanto, só pararam de carregar o Kyle quando chegaram na lateral da escola, colocando o garoto aturdido em um dos bancos enquanto davam a ele tempo para que ele tentasse se recompôr.

— Não vai dar, Kenny. Vamos precisar de ajuda de um especialista - declarou Stan, o olhar chocado de Kyle diante de tantas revelações mostrava o quão longe essa relação tóxica havia chegado.

— Um especialista..? - Perguntou Kenny, mas bastou olhar mais uma vez para o Kyle para entender sobre o que era dito. - Então teremos de chamá-lo..

— Do que estão falando? Tem mais alguma coisa que eu não sei? O que mais vocês estão escondendo? - A voz alta e descontrolada só serviam como indicador do desespero que estava sentindo. Havia algo pior do que ser o único amigo de Eric Cartman? Mais alguma coisa que não perceberá todo esse tempo?

— Eu não posso chamá-lo, você sabe melhor do que qualquer outro - disse Stan, negando de imediato. Sabia que o Kyle precisava disso, puta merda, ele era o seu melhor amigo, mas pedir socorro para aquele cara cruzaria todos os limites. - Kenny! Você é o único que pode fazer algo assim, eu acredito em você - motivou o louro na esperança dele aceitar fazê-lo.

— Tá bom - concordou sem hesitação, dando os ombros e retornando para a escola.

— Que porra é essa? Stan, você é o meu melhor amigo! Se tem alguma coisa rolando, você precisa me contar! - Pediu Kyle, sentindo as mãos trêmulas. Talvez fosse pela ausência de luvas no lado externo, mas existia também grande possibilidade que estivesse apenas surtando.

— Calma, cara.. - Pediu, sentando-se no banco junto do seu parceiro. - Eu achei que conseguiriamos evitar essa conversa até entrarmos na escola secundária, mas você fodeu com tudo, Kyle. Você fodeu com tudo - curvou o corpo para frente, colocando as mãos diante do rosto e respirando fundo.

Era uma situação difícil, mais difícil ainda por terem de fazer essa intervenção repentina para ajudar que o Kyle percebesse como a situação envolvendo o Cartman atingiu níveis tão elevados. Tudo foi contra o plano, o certo era essa conversa acontecer quando tivessem quinze anos e bebessem cerveja escondido na garagem do Butters, só que agora teriam de fazê-lo ali mesmo, sóbrios.

A ansiedade tomou o outro rapaz quando viu o quão tenso estava Stan, mordendo os próprios lábios ao tentar imaginar o que ele queria dizer com tudo isso. Seja lá o que fosse, era grave, não? Era pior do que ser amigo do Cartman? Tinha medo de perguntá-lo agora, acabando por apenas abaixar os olhos e notar que a ponta dos seus dedos estavam vermelhos. Mas que bosta, estava mesmo frio ali.

Não demorou muito para avistarem o Kenny retornando, acompanhado de outro garoto da sala, Craig. Assim que a atenção se voltou contra essa companhia, ele ergueu o dedo do meio para os demais, como um cumprimento silencioso para aqueles arrombados que vieram lhe encher o saco.

— Que porra vocês querem? - Perguntou Craig quando se uniu ao grupo, expondo facilmente a sua repulsa contra Stan ao ter de encará-lo. Não que estivesse ali contra a sua vontade, mas foi sacanagem mandarem o Kenny, tinha um fraco por louros.

— Olha, eu não estou feliz com isso também - começou Stan, não aguentava ficar olhando para a cara do Craig, eram inimigos afinal - só que o Kyle está precisando de sua ajuda. Ele se deu conta que é o único amigo do Cartman.

— E por que eu faria isso?

Os olhos verdes do Craig reviraram um tanto quando notou a estúpida razão de ter sido chamado até esse lugar. Precisou de uns dois segundos antes de olhar aquele ridículo chapéu verde e cabeleira crespa, percebendo a fragilidade no garoto a sua frente. Não odiava o Kyle ou tinha algum desgosto em particular por ele, devia ajudá-lo? Saber que ajudá-lo seria como ajudar o Stan ou o Cartman lhe tiravam qualquer desejo em ser legal com aquele ali.

— O que eu tenho? Me fala! O que eu tenho, Craig!? - Perguntou, levantando-se e agarrando o casaco azul do maior, sacudindo-o para que ele falasse de uma vez. Por que o chamaram ali? O que ele sabia que não estava sabendo ainda?

— Tá, tá.. - Craig segurou as mãos e afastou-as o quanto antes. Talvez fosse as mãos geladas ou a tremulação durante o ataque de pânico, mas o desespero dele o fez lembrar do seu amado, decidindo ceder de uma vez. - Você é gay.

O choque da resposta fez com que o desespero do garoto judeu aos poucos se convertesse em confusão. O que? Toda essa porra era para dizer que era gay? Qual era o próximo passo? Dizer que o Cartman também era e os dois eram algum tipo de casal homoafetivo? Estavam zoando consigo? Pois se era, não via graça nenhuma. Olhou para os amigos, vendo a seriedade deles, como se acreditassem mesmo no que o Craig disse.

— Que caralhos vocês estão falando? - Deixou sua confusão ser tingida em tons de raiva. - Eu não sou gay, tá legal? Craig é gay! Não eu! Não fode, eu não sinto atração por homens!

— Kyle, escute o Craig.. É por ele ser gay que ele sabe quem é ou não gay - Stan pedia a compreensão do amigo, negação não ajudaria-o agora.

— É, Kyle! E não há problema em ser gay, eu sou panssexual. - Kenny tentou tranquilizá-lo, levando uma das mãos as nádegas de Craig, apertando-as com gosto. Não era cego, aquele moreno ali era o cara mais gostoso de toda escola primária.

— Vai se foder, eu sou fiel, Kenny - disse o Craig, mostrando mais uma vez o dedo do meio e afastando-se do grupo. Estava perdendo tempo demais ali com tantos otários.

Sério que o chamaram só pra constatar o óbvio? O que estavam pensando? Que era algum tipo de guru gay só porque foi o primeiro garoto a assumir homossexualidade em South Park durante a infância? Não era à-toa que evitava as merdas do Stan e seu grupo.

— Então.. Vocês estão dizendo que eu sou gay..? Pelo Cartman? - Perguntou Kyle, sentindo suas forças desaparecerem.

Era o que vinham tentando dizer, não era? Capaz de toda a escola pensar assim. Suas pernas fraquejaram, sentando-se mais uma vez no banco. O frio já sequer incomodava-o mais, o choque de todas as revelações causaram um impacto muito grande. Lágrimas quentes passaram a descer por suas bochechas sardentas, usando as mãos para cobrir seu rosto.

— Mas que merda! Como eu direi isso aos meus pais? - Perguntou sofrido, esse era o pior dia da sua vida. Por que perguntou-os? Era cedo demais para encarar essa realidade, teria sido mais fácil se pudesse ter se assumido gay durante o colegial, enquanto estivesse bêbado.

— Está tudo bem, cara.. Nós vamos te ajudar, continuaremos sendo seus amigos - disse Stan, passando as mãos nas costas do outro. Tudo bem ele chorar se isso fizesse-o se sentir melhor, ficaria ali fazendo-o companhia.

Kenny apenas sentou do outro lado do banco, tentando confortar o Kyle também. Poderia dizer a ele que esse não era o fim do mundo, que talvez fosse pior se ele tivesse virado gay pelo Tweek - pois o Craig daria uma surra nele se esse tentasse algo com o lourinho paranóico -, mas na real, ser gay pelo Cartman devia ser bem pior que qualquer surra. Então tudo o que pode fazer foi ficar em silêncio e tentar não piorar a situação.

Enquanto isso, Kyle sentia a dor se aponderar de todo o seu peito e destruir por completo qualquer sinal de amor próprio e respeito que guardava dentro de si. Por que, entre todos os homens, teve de ser justamente o Eric Cartman? Era por ele ter um sorriso tão adorável que amansava até o Cthulhu? Ou por ele ficar extremamente sexy de vestido e peruca loira, enquanto cantava os hits pops do momento?

— Vo-vocês.. - Soluçou, erguendo a cabeça para fitar os amigos, com o olhar turvo pela dor. - Nunca poderão contar! Nunca..! O Cartman não po-pode saber! Se ele souber, será o meu fim!

— Cara.. - Stan falou, paciente. - Eu já disse, nós não falamos com o Cartman. - Então sim, era uma promessa, nunca contariam a ninguém.


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Notas finais do capítulo

Que o Eric está apaixonado pelo Kyle, todos sabemos, não? Estava assistindo alguns episódios agora cedo e percebi o quão cuidadoso o Kyle sempre é com o Cartman, poderia ser por ele ser um "garoto legal", mas ele não mostra a mesma preocupação com o Kenny, Butters ou Tweek. Por essa razão quis criar essa cena~
Como esse shipp é polêmico, não sei se valeria transformar isso em uma long-fic, então quis ao menos criar uma ideia inicial~



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