As Joias do Carrasco escrita por Jupiter vas Normandy


Capítulo 5
Queda Inesperada


Notas iniciais do capítulo

Que cor a gente veste no Ano Novo pra atualizar a fic mais rápido? Queria ter descoberto antes...
Sério, gente, desculpa pela demora, mas realmente não deu. Em compensação, aí vai um capítulo explorando um pouquinho mais alguns personagens e apresentando outros.



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Apesar de seu baixo nascimento, Astra tinha algumas regalias. Dera a sorte de ter sido escolhida pela Joia do Fogo, o que inicialmente lhe trouxe apenas um emprego na geração de energia de Aurora e um pouco de respeito por parte da policia da cidade baixa. E agora, que usavam as joias para algo mais conflituoso, todos os Portadores receberam acesso à mesma academia onde treinavam os soldados do exército de Aurora.

Com as mãos envoltas em bandagens, Astra desferia socos repetidamente contra o saco de pancadas. Não sabia há quanto tempo estava treinando, mas sentia seus músculos queimarem sob a pele. Na noite anterior, dois policiais foram a sua casa, disseram eles que um ladrão causara confusão no mercado e fugira para aquele lado da cidade. Entraram sem permissão e estavam intimidando Cecília, a mãe da Astra, com comentários e gestos inadequados e mexendo nas poucas coisas que tinham. A sorte era que Astra estava em casa, e bastou aparecer, com a joia vermelha pendurada no pescoço, para que se desculpassem e fossem embora. 

Astra realizou uma série de golpes com tanta intensidade e concentração que deixou escapar um grito quando finalizou. Segurou o saco com as duas mãos, interrompendo o movimento pendular, e apoiou a testa contra ele, física e mentalmente exausta. Os policiais partiram sem nenhum sinal de vergonha ou arrependimento. Para eles, não estavam fazendo nada de errado, apenas escolheram mal a casa da vítima da vez. Lançaram um olhar cordial para Astra, pediram desculpas pelo incômodo e foram embora. E isso era pior ainda. Eles a olhavam como se Astra compactuasse com os abusos e explorações que cometiam contra a população, desde que não fossem dirigidos à ela.

— Já terminou? — Até onde sabia, a academia estava vazia naquele horário. Astra olhou em direção à entrada e viu Alessa Rower de braços cruzados, encostada contra a parede, e sorrindo com satisfação. Ela não estava de uniforme, vestia uma camisa preta justa de alças finas e uma calça cinza larga. O cabelo dourado estava preso em um rabo de cavalo, mas isso era seu comum. Astra se afastou do saco, cedendo-lhe o espaço. — Não precisa sair. Eu quero apenas treinar.

— Você nunca quis "apenas" treinar. — Astra se referia à época antes da joia, em que ela tentara entrar para o exército para conseguir algum sustento. Alessa, que não era tão mais velha, ajudara-a com uma lição ou outra. 

— Vamos... — implorou. — Não tem ninguém aqui, e o equipamento não costuma revidar. Você foi muito bem lá fora, não imaginei que ainda... 

— O que você quer? — interrompeu. O sorriso de Alessa desapareceu devagar, e ela franziu as sobrancelhas em uma expressão hesitante.

— Fiz algo errado?

— Não — respondeu depressa. Alessa não iria entender, sabia que não. Mas logo mudou de ideia, ainda sob o olhar dela. — Você costumava fazer expedições em busca da Joia do Espírito, não é? 

— Fiz algumas. Queria ter sido eu a recuperá-la para a Cidade Aurora. Agora as expedições já não são mais necessárias, a joia veio até nós de bom grado... — Alessa comentou com um toque de escárnio por trás das palavras. 

— Os andarilhos que me atacaram... 

— São totalmente selvagens. Demos sorte com a joia, ela poderia ter escolhido alguém bem menos... disposto. — Astra pensou se Alessa considerava que Calisto tinha alguma consciência ou se apenas enxergava a joia em seu peito. Começava a se tornar irritante o modo como a general falava.

— Elas estavam assustadas — defendeu Astra, flexionando os punhos doloridos. Era justo acusar Alessa apenas por seguir seu trabalho? Mesmo assim, continuou. — Estavam com medo de mim, porque eu estava vestida como você. — Alessa não respondeu, e sua expressão permaneceu imutável. Esperava para ver aonde Astra ia chegar. — Suponho que as expedições não eram muito pacíficas.

— Não pode estar falando sério... — Ela suspirou, impaciente. — Duas ciganas lhe atacaram e é de mim que você está com raiva?

— Não estou com raiva! — defendeu, mas estava começando a ficar. Astra levou as mãos à cabeça, e continuou, murmurando: — Estou... pensando.

— Por que você se importa? O que estava esperando, andar pela floresta como se fosse uma deles?

— Não! Eu... 

— Nós nem deveríamos ter nos aproximado deles, pra começar! — Alessa interrompeu. — Então não faz diferença como você se veste ou se eles pensam que você segue as minhas ordens, não importa. Essas missões não têm nada a ver com os andarilhos, não é o início de um trabalho em equipe, Astra, nós apenas queremos reduzir os riscos para os nossos cidadãos. Então, por que você se importa?

— Porque eu não quero que pensem que fiz parte do que quer que você tenha causado a eles! — Astra admitiu, finalmente, sustentando o olhar de Alessa. — Todos nós somos coniventes com o que acontece aqui dentro, eu não preciso apoiar suas merdas lá fora também.

Alessa comprimiu os lábios em uma linha fina e desviou os olhos, não envergonhada, mas impaciente. 

— Você devia ir.

Astra não respondeu, mas seguiu o conselho. Se afastou da general pensando que talvez tivesse sido uma má ideia, sim, mas a conversa lhe deixara um tanto satisfeita consigo mesma.

~*~

Sybeal estava com a cabeça cheia de coisas importantes para pensar. Chegara a um beco sem saída na sua pesquisa envolvendo uma versão alternativa da insulina artificial a partir de compostos vegetais que reduzisse os custos de produção. O seu departamento havia sofrido grandes cortes de investimento, o que deixou a sua chefe bem irritada. Marie já não havia ficado contente quando descobriu que Sybeal estava entre os pesquisadores das missões, mas disse que desde que o desempenho dela no laboratório não fosse prejudicado, não iria se opor. 

De fato Sybeal tinha poucos argumentos para sustentar sua participação nas missões. Era de se esperar que a vegetação ainda fosse a mesma fora dos muros de Aurora, não? Ouvira isso de várias pessoas e ela estava inclinada a concordar, mas também acreditava que as rupturas entre as dimensões pudessem ter causado alterações no meio terrestre. Ela também não tinha evidências da sua hipótese, mas não era tão absurda. Marie até fizera uma cara menos emburrada quando ouviu Sybeal se explicar, não chegara a sorrir, ela não fazia esse tipo de coisa, mas também não parecia com raiva.

Com exceção das grandes famílias, todos no Palácio da Fênix comiam no refeitório. Era um grande salão três níveis abaixo do solo, pertencia ao bunker e existia desde antes de erguerem Aurora sobre suas cabeças. Desde o retorno à superfície, ele nunca estivera cheio. O refeitório fora construído para receber toda a população, mas agora, as grandes família viviam no Palácio acima deles, outros viviam na cidade baixa, mas os andares subterrâneos ainda eram utilizados, principalmente os níveis de pesquisa e energia. Sete níveis abaixo do refeitório ficavam os laboratórios de microbiologia onde Sybeal ganhava seu sustento, assim como laboratórios de química que ela conhecia por já ter participado de pesquisas em conjunto, mas os outros ela não fazia questão de conhecer. Acima dos laboratórios ficavam as usinas. Desde que recebera a joia, Astra trabalhava ali, e Catarina às vezes contribuía, ambas tinha habilidades muito úteis para o abastecimento de energia da cidade. Era ordem que os laboratórios fossem no nível mais baixo, pois se algo desse errado, eles poderiam interditar o andar sem prejudicar os moradores nos níveis superiores. Agora isso já não fazia tanta diferença, pois muitas das alas subterrâneas de Aurora estavam desativadas, sem uso. As pessoas estavam ansiosas por voltar à superfície.

Sybeal pegou uma bandeja e prato e entrou em uma das várias filas para se servir. Nunca precisava esperar mais de cinco minutos na fila. Analisando o refeitório buscando o melhor lugar para se sentar, viu um rosto familiar, sentada sozinha em uma mesa. "Por que não?" pensou. Na verdade, alguém na mesma situação que Sybeal teria uma lista de motivos para não ir até a mesa da nômade, pois o histórico da sua família com os povos estrangeiros tende a ser muito "compreensivo", o que não atrai bons olhares dentro da cidade. Mesmo assim, Sybeal se sentou na mesa sem nem mesmo pedir licença.

— Estou um pouco surpresa em ver você aqui — comentou, fazendo Calisto levantar o rosto, a testa franzida sem entender. — Desculpa, qual seu nome mesmo? — Ainda que entre amigos, Sybeal era péssima com nomes. Não lembraria o daquela mulher, que só vira uma vez, mesmo que atualmente o nome tivesse se espalhado pela cidade.

— Calisto. — "Como o mito grego, ou a lua de Júpiter" lembrou Sybeal manteve os pensamentos para si mesma. Calisto provavelmente não conhecia nem um, nem outro. Ela segurava desajeitadamente os talheres, tentando manter a mão firme e equilibrar a comida, e estava conseguindo, mas parecia uma criança que estava aprendendo agora a comer sozinha. Sybeal começou a comer, e notou que Calisto a observava, tentando imitar seu movimento com o garfo. — Mas por que a surpresa? 

— Não achei que você fosse ficar. — "Não achei que Rower te deixaria passeando por aí." Por mais severo que Rower fosse, definitivamente ele não era como o Pretor Vauxhall. Não, sob as ordens de Vauxhall os soldados não teriam permitido que Calisto desse um passo dentro da Cidadela, e a Joia do Espírito teria sido arrancada de seu corpo sem vida e devolvida à coleção. "E a cidade inteira comemoraria isso." Ou talvez ele a torturasse para descobrir como seu povo invadira a Cidadela duas vezes, uma há 25 anos, quando a joia fora roubada, e a segunda vez agora. As roupas que Calisto usava, fechadas até o pescoço, não permitiam ver a joia, o que era uma pena. Sybeal achava os rumores meio inacreditáveis. De qualquer maneira, o velho Pretor havia morrido há alguns anos, e Sybeal não derramara uma lágrima pela tragédia. Pelo menos Rower não era louco.

— Não posso ir embora. Disse ao seu Pretor que a Joia estaria aqui se ele precisasse. — Ela soava vagamente contrariada. Obviamente, Calisto não queria estar ali. Ela devia ter uma vida antes, não devia? Talvez outras pessoas com nomes cheios de significados que eles nem faziam ideia.

— Como era sua tribo? — Calisto franziu a testa novamente.

— Como é a minha tribo — corrigiu. Sybeal não pensou que a pergunta pudesse ser ofensiva. — Minha família tinha 27 pessoas no dia que eu os deixei. Algumas mães, alguns filhos, homens e mulheres. — Ela deu de ombros. Não era bem o que Sybeal queria saber. — De onde vem essa comida? Vocês saem da cidade pra conseguir ela?

— Nós fazemos no laboratório, incluindo a carne. — Calisto assentiu, de sobrancelhas franzidas de maneira pensativa. 

— Mas parece de verdade.

— É de verdade! — Sybeal riu. — A comida apenas... Bem, deixa pra lá! Eu perguntei sobre como vocês viviam. Desculpe! — Sybeal apressou, ao ver Calisto retrair o lábio. — Como vivem — corrigiu. — Vocês são mesmo nômades ou têm um lugar fixo? Imagino que vivam perto do rio... Ou conseguem água de outro lugar? E como era a sua família? Oh, pena que eu não trouxe meu caderno... — Sybeal completou, com um meio sorriso e um olhar curioso. Calisto retribuiu com um olhar desconfiado.

— Por que quer saber tanto? — Sybeal riu.

— É a primeira vez que temos um de vocês aqui dentro, isso é emocionante. E quando eu vou ter outra oportunidade? — Calisto evitou o olhar de Sybeal, por algum motivo, e passou a observar o refeitório, sem pressa alguma para responder.

— Todos comem aqui?

— Hã, não. Não, só os funcionários da Cidadela e as poucas pessoas que ainda vivem no bunker. 

— "Bunker"?

— É a construção subterrânea em que estamos. — Calisto assentiu, do mesmo modo como fizera quando Sybeal falara dos laboratórios. Ela suspirou, antes de finalmente responder.

— A gente vive em acampamentos. Mudamos muito de lugar sim, mas alguns grupos permanecem mais ou menos na mesma área. E eu não vou dizer onde vive a minha família. — Sybeal supôs que isso era justo. — A última pergunta eu não entendi. Como é minha família? — Calisto deu de ombros. — Sei lá. A gente só fica junto e tentamos decidir as coisas entre todo mundo. Que pergunta mais estranha... A gente não tem um líder como o seu Pretor, se foi o que perguntou.

— Espera... Você diz família se referindo a toda a tribo? — Calisto afirmou. — E as famílias menores? As de laços sanguíneos, era dessa que eu estava perguntando.

— Como assim?

— Ora, a sua família! Pai, mãe, irmãos... 

— Não está fazendo perguntas demais, Sybeal? — A Dra. Walker havia parado atrás da colega, segurando a própria bandeja ainda intocada, e com um olhar divertidamente acusador. — Assim você vai assustá-la.

— Você não tem curiosidade, Erin? — Sybeal respondeu, dando espaço para a médica se sentar ao seu lado.

— O problema não é ter curiosidade, mas tente não fazer disso um interrogatório policial. — Erin piscou gentilmente e Sybeal assentiu. — Como vai, Calisto?

— Estou bem. Mas como está o Antony Carter? Assim que a gente voltou para a cidade ele foi levado... 

— Ah, ele não estava ferido. Havia risco de contaminação devido a água do rio, então ele precisou passar pela descontaminação. A mesma pela qual você passou. Mas ele foi liberado no mesmo dia, se não me engano.

— Eu não vi ninguém depois que chegamos.

— Isso é previsível. — Sybeal comentou, brincando com os restos da sua comida. — Carter e Astra vivem na cidade baixa, e os Magni não teriam porque sair dos andares superiores.

— Mas Astra vem à Cidadela com frequência, não para os níveis residenciais, mas para os geradores. — Dito isso, Erin se voltou para Sybeal, mudando completamente de assunto. — Analisei o tecido do traje do Carter antes que fosse destruído. É tão difícil determinar algo sobre o exterior, porque os dados nunca batem. A água do rio se mostrou minimamente contaminada, mas outras amostras têm níveis absurdamente variados.

— Hm... Você considerou as diferenças entre os materiais? Isso pode alterar a capacidade de absorção, bem, eu imagino... — perguntou, mesmo sabendo que não seria de muita ajuda nessa área. Erin tinha duas posições na Cidadela, uma como médica responsável pela enfermaria, e outra como parte dos pesquisadores dos laboratórios químicos. Era mais pelo segundo motivo que Erin Walker estava acompanhando os Portadores fora dos muros do que pelo primeiro, embora fosse bastante tranquilizador ter uma médica com eles quando saíam da cidade.

Erin estreitou os olhos, fingindo estar ofendida.

— É claro que considerei. — Sybeal deu de ombros, admitindo rendição e terminando o seu suco. — Ainda não sei porque os níveis de radiação variam tanto em uma área tão restrita, mas sem dúvida isso permitiu que tantas pessoas sobrevivessem lá fora até hoje.

— Veremos mais sobre isso nos próximos "passeios". Quando vão sair de novo, Calisto? — Sybeal perguntou, para a nômade que já havia parado de prestar atenção à conversa.

— Não é planejado. Quando eu sinto que um portal está aberto, preciso avisar a general imediatamente. Mas nem sempre é necessário. Alguns portais que eu percebo estão tão distantes que já teriam se fechado naturalmente quando a gente chegasse lá. 

— Então preciso avisar à Dra. Vermont. Se eu sair de repente sem explicação ela vai acabar comigo... — Sybeal comentou para Erin, rindo.

— Huh... — Erin estremeceu. — Faz uma semana que não a vejo. Ela me dá medo. É tão autoritária comigo que até acho que estou fazendo meu trabalho errado.

— "Dra. Vermont"? — Eram raras as tribos nômades que preservavam o uso de sobrenomes, e a de Calisto não era uma dessas, então ela não entendeu porque a chefe de Sybeal tinha o mesmo nome que o portador da Joia da Água. — Como o Luc Vermont?

— Sim, é a mãe dele. Sabia que ela ainda não falou com o filho desde que ele foi solto? Eles estão separados por um andar! Menos de três minutos pelo elevador.

— Ela é bem rígida mesmo. — Erin respondeu, abstendo-se de mais comentários. Sybeal não costumava julgar ou se meter na vida de ninguém, mas ela não conseguia entender. Desejava tanto poder ter mais uma conversa com seus irmãos ou seus pais, enquanto outros tinham a família a literalmente alguns passos de distância, e agiam como se ela não existisse. — Falando no diabo... 

Sybeal olhou para a entrada, mas não era Marie Vermont, que costumava receber as refeições em seu quarto, mas sim Luc. Tinha certeza que ele as vira, mas preferiu se sentar sozinho do outro lado do refeitório. Na verdade não havia motivo para ele se sentir convidado à mesa de Sybeal e Erin, nunca haviam conversado mais do que o cordial.

— Bem... — Sybeal voltou-se para Calisto. — Não esqueça de nos avisar quando seu "sensor" apontar algum portal aqui perto.

Luc Vermont evitava sair do quarto que lhe tinha sido gentilmente oferecido. Apesar do "semi-perdão" do Pretor, Vermont sentia sobre si os olhares dos outros cidadãos em duplo julgamento. Além de assassino, era trapaceiro. Deveria estar morto, executado. Em vez disso, andaria pela Cidadela esbanjando sua santa vida, enquanto toda uma família sofria a ausência de um ente. Não batia com os conceitos de justiça da Cidade Aurora. Pior, sua presença fazia todos se sentirem menos seguros, não por que ele era um assassino, mas porque não havia sido punido devidamente. Nesse caso, as pessoas eram bastante empáticas. "Se eu fosse a vítima ou parente dela, como poderia me sentir bem convivendo com o criminoso, frequentando os mesmos ambientes que ele?"

Vermont se sentia exausto só de imaginar. Todos deviam pensar que ele desdenhava de qualquer moral ou respeito, ou mesmo da norma positivada. Seria mais fácil se Rower permitisse que soubessem sobre a Joia da Água, mas ele se mostrou inegociável. Seu chamado pela Joia continuaria como sempre fora, um segredo entre as grandes famílias, e agora também entre Astra, Antony e Calisto. Por isso, havia se isolado em seu próprio quarto, inclusive pulando refeições. Mas não podia se esconder para sempre. Pelo menos a maioria das pessoas no andar do refeitório pareciam imersas demais em uma rotina de trabalho para prestar atenção em alguém por mais de dois segundos. Não era como os níveis residenciais. Vermont não era o mais corajoso dos homens, mas cada minuto que passava em Aurora o fazia desejar imensamente uma nova missão além dos muros.

Vinte minutos depois, já havia terminado a refeição, ansioso para voltar à segurança do seu quarto. Os corredores tinham uma movimentação mínima, já que o fluxo das pessoas que deixavam o refeitório não era para o nível residencial, e sim para onde quer que elas trabalhassem. Era reconfortante estar quase sozinho, à exceção de uma ou duas pessoas no lugar. O som de passos atrás de si era quase ignorável, se não fosse tão persistente e próximo... Estranhando, Vermont se virou para ver quem se aproximava, sendo surpreendido por uma mão direto no seu pescoço. A pessoa o pegou pela gola e o empurrou contra a parede. Vermont instintivamente agarrou defensivamente o braço da agressora, quando um lampejo de reconhecimento o impediu de reagir.

— Eu ainda não acredito que Rower deixou você viver.  — Ela falou com firmeza, mas era possível notar um resíduo de tortura em sua voz. Seus olhos castanhos transbordavam mágoa e raiva.

— Rowena...  — Vermont lentamente soltou a mulher, mesmo que seus dedos ainda estivessem rígidos contra seu pescoço, e pôs as mãos nos bolsos. Era melhor manter suas mãos bem longe de Rowena Lafayette. Qualquer sinal de agressão contra ela poderia acabar com tudo. As quatro famílias, ou melhor, as outras três, já que Rowena era a última dos seus, não observariam docilmente o segundo herdeiro Lafayette cair pelas mãos de Vermont. Rowena esperou, como se quisesse uma justificativa, mas Vermont não conseguiu dizer nada. Não havia nada para dizer. Mas, olhando para o estado de Rowena, que parecia tão frágil agora, em contraste à figura vigorosa que era um ano antes, Vermont não conseguiu se impedir de dizer uma idiotice que sabia que parecia desdém. — Sinto muito...

Rowena bateu na parede com a mão livre em punho, mas se o impacto foi tão forte quanto parecia, ela não demonstrou dor. Não mais do que já demonstrava.

— Acha que sou uma piada? — perguntou, murmurando quase inaudivelmente. Vermont quis dizer que seus sentimentos eram genuínos, mas isso pioraria tudo. Nenhuma palavra sua teria valor para ela. Rowena finalmente se afastou, suas mãos tremiam, talvez de raiva ou nervosismo, ou talvez por algo mais. Vermont estava impressionado com o quanto ela parecia exausta e debilitada, como se fosse desmaiar a qualquer momento. Lamentava por ela estar sofrendo, mas também hesitava fazer ou falar algo. Crescera com Rowena, ela costumava ser gentil, a menos que a provocassem. Nesse caso, Vermont nunca vira pessoa mais rancorosa.

— Senhora Lafayette. — O soldado se aproximou, visivelmente aliviado. Vermont teve a impressão de que Rowena deveria estar em outro lugar nesse momento, talvez acompanhada de um médico. Ao perceber com quem a senhora estava, o soldado estreitou os olhos, desconfiado. — Algum problema? — Rowena pareceu não escutar. Nem mesmo desviou o olhar cortante de Vermont. — Senhora. — O soldado insistiu, pondo a mão no ombro de Rowena com hesitação. Ela se afastou, como se só tivesse percebido sua presença naquele momento. Diante da interrupção, Rowena desistiu de falar seja lá o que se passava na sua cabeça. Sem dizer uma palavra, ela se afastou, seguida de perto pelo soldado, deixando Vermont novamente sozinho.

~*~

 — Vamos evitar cometer os erros da última vez.  — Erin comentou brincando, já sobre o cavalo.

— Não cometemos erros da última vez. Os problemas foram totalmente situacionais. — Alessa, surpreendentemente, defendeu o desempenho do grupo. A general parecia concordar que as missões eram atividades importantes, embora Erin não soubesse o porquê. A ameaça dos portais ainda pareciam muito distante para os cidadãos de Aurora, e Alessa não parecia do tipo que valorizava a ciência além dos resultados imediatos. — Estaremos mais alertas agora à ameaças maiores que outras pessoas, mas não há muito mais que possamos fazer. Vocês sabem disso, não? — A pergunta fora direcionada a Erin e Sybeal. Dos três cientistas interessados, elas eram as únicas livres no momento. — Infelizmente estamos com um a menos, ninguém se voluntariou para substituir Redfield, que ainda está com a perna machucada. Vamos torcer para que ele não seja o sortudo da história.

O grupo ficou completo quando Astra chegou, sem o traje de proteção. Ela guiava o cavalo pela rédea, enquanto seguia a sua frente, e parecia estar pronta para sair da cidade. Alessa apenas comprimiu os lábios em desagrado, mas optou por não comentar. Se Astra julgava tão importante não ser reconhecida como os soldados de Rower a ponto de abrir mão de uma proteção física extra, que assim fosse. E depois, se cruzassem com outros selvagens agressivos, talvez ela percebesse o quanto estava sendo teimosa e imatura, e mudasse de ideia novamente.

— Todos prontos, então vamos seguir.

— Mas general...  —  começou um de seus subordinados, provavelmente para questionar sobre Astra. 

— Eu disse que vamos seguir  — cortou. Sem mais uma palavra, deixaram a cidade para trás.

~*~

 — Tenho certeza que isso não está em nenhum mapa que temos em Aurora... — Tiberius falou, quebrando o silêncio entre o grupo. Os Portadores estavam na beira de um abismo alto, um cânion irregular se abria à frente deles. A caminhada levara horas, e quando a floresta se abriu para o mortal precipício, todos estavam tão surpresos que apenas passaram longos minutos tentando compreender aquela paisagem. — Tenho certeza, eu estudei todos, e se Alessa estivesse aqui, ela confirmaria.

— Minha família esteve aqui antes da primavera. Como isso pode ter surgido? Tremor de terra? — Calisto sugeriu, sem desviar os olhos do relevo acidentado, mas de certa maneira imponente. 

— Isso leva milhares de anos para se formar, devido a erosão causada por rios e o próprio movimento do relevo. — Catarina explicou.

— Rios? — Ela perguntou, incrédula. — Como a água pode fazer isso na rocha?

— Com muita paciência. Mas obviamente não é o caso... Quando formadas naturalmente, essas rochas mostram "faixas" na encosta, que dizem a passagem do tempo. Essas não têm. É como se a terra apenas tivesse se aberto... 

— Obviamente, algo causou isso. Algo vivo. — Astra parecia um pouco séria. Ela era impulsiva, mas sabia o quão importante era o que faziam ali, e tomava parte da responsabilidade para si. Diante do silêncio de seus companheiros, ela continuou: — Ok, então vamos encontrá-lo.

Astra retomou a caminhada, seguida pelos outros. Ninguém sugeriu separar o grupo dessa vez. O fato de uma criatura ou um grupo delas poder abrir a terra daquela maneira deixara os Portadores um pouco apreensivos. Era melhor continuarem juntos, pelo menos até saber o que deveriam enfrentar.

— Acho que não é o melhor momento para notícias ruins — anunciou Calisto, quase meia hora depois. Ela, Antony e Vermont estavam em uma elevação nada natural do terreno, ajudando Catarina a subir, enquanto Astra e Tiberius esperavam sua vez —, mas eu não sinto mais o portal.

— Então estamos perto? — Tiberius perguntou, lembrando que o "sentido" de Calisto ficava meio estranho quando se aproximavam dos portais.

— Pelo contrário, ele fechou por si mesmo.

— Como isso é uma notícia ruim? — Catarina perguntou. Astra e Tiberius já haviam se reunido aos outros. — Agora podemos apenas voltar?

— Mas algo abriu essas rochas, e com certeza ainda deve estar por aí. Qual a chance de isso ter voltado sozinho para o Desconhecido? Não existe essa sorte... — Astra se opôs. — Acho que não podemos voltar ainda.

— E vamos andar por aí perseguindo algo que nem sabemos se ainda está aqui? Calisto não consegue sentir as criaturas, pelo menos não que eu saiba — respondeu. Catarina ainda se ressentia por Calisto não ter sido totalmente sincera sobre suas habilidades.

— Vamos atraí-lo bancando as vítimas. Nós realmente parecemos bastante "vitimáveis" — comentou Vermont, recebendo olhares de desaprovação de todos os outros. — Não me olhem assim, fazer piada me ajuda a não levar tão a sério a grande possibilidade de todos nós morrermos.

— Se vamos ficar, precisamos de um plano melhor do que só esperar sermos atacados.  — Antony se pronunciou, ignorando Vermont. — Fizemos isso da última vez e foi bastante imprudente. Você está com o walkie-talkie, Magni? — Tiberius confirmou. — Avise a general que o portal está fechado, mas que queremos algumas horas para ver se achamos algo. Duas ou três horas deve ser suficiente para encontrarmos pelo menos um sinal. — Tiberius assim o fez. Alessa disse que alertaria os outros. — Agora sobre isso, eu diria para irmos a um lugar alto, talvez a gente conseguisse ver alguma coisa útil. — Mal terminara de falar, o chão começou a tremer sob seus pés. O forte tremor balançou as árvores e desprendeu rochas na beira do precipício, fazendo o grupo se afastar da área instável. E tão subitamente quanto surgiu, o terremoto parou. — Ou talvez a gente não precise... 

— Acho que já temos nosso sinal...

— Vocês viram o que foi? — Calisto perguntou, alerta. — Viram a criatura?

— Eu não vi nada — respondeu Antony.

— Se for invisível, é azar demais para uma missão só...  — Vermont lamentou.

— Não é invisível — Calisto murmurou, o olhar fixo tentando enxergar através da floresta. Apontou hesitante para a direção em que olhava —, é aquilo.

— Atrás das pedras? — Vermont perguntou, quando repentinamente as rochas se moveram e organizaram em uma forma única. As rochas eram a criatura.

Por um momento, ninguém além da criatura se moveu. Medo e fascínio paralisaram a todos. E também a cautela, pois aquilo parecia não ter notado as outras presenças ainda. Sua altura passava um pouco das árvores, mas, por andar com o apoio dos membros dianteiros, não dava a impressão de ser tão alto. As rochas não tinha unidade, eram pedaços soltos que se mantinham em forma por alguma força desconhecida. De costas, era possível ver uma pedra diferente das outras em sua nunca, pequena e brilhante.

— Acho que é com você, Carter... 

Temendo perder a vantagem do primeiro ataque, Antony tomou a frente. Era melhor atacar a criatura desprevenida, e seus poderes pareciam realmente os mais adequados.

— Não, não ataque! — pediu Catarina, com um mal pressentimento, mas tarde demais. Antony arremessara uma rocha gigantesca na direção do monstro, acertando-o no ombro com um estrondoso impacto, que as pedras se desprenderam. Uma nuvem de poeira interferiu na visão, mas quando ela abaixou, puderam ver a criatura sem um dos braços, e uma pilha de escombros no chão. Os escombros vibraram e se moveram, voltando a formar um braço, como em sua posição inicial. Então o monstro de pedras se voltou para eles. Não atacou de imediato, apenas analisou o que eram, e se eram perigosos. Olhou para a rocha que Carter arremessara, e pareceu associar uma coisa a outra. Irritado, ele socou o chão com os braços gigantes e soltou um urro de raiva, antes de disparar na direção dos Portadores.

Apesar de seu tamanho e peso, ele era bastante rápido, mas não mudava de direção facilmente. Os Portadores se espalharam a tempo de vê-lo se chocar contra uma árvore e a derrubar em sua ira. Como se o impacto não fosse nada, ele procurou em volta pelo pequeno grupo humano. Catarina e Tiberius usaram uma rajada de ar para subirem em uma árvore robusta, que resistiu ao ataque do golem, mas ambos precisaram se segurar para não desequilibrarem com o impacto. A criatura continuou se jogando de cabeça contra a árvore repetidas vezes, e o tronco começava a ceder, quando chamas e energia o atingiram, fruto de um ataque conjunto de Astra e Calisto. Não houve efeito algum, além de mudar o foco de sua atenção. As duas mulheres, mais Carter e Vermont, formavam um semicírculo de hesitação em volta dele, sem saber se deveriam atacar ou fugir. Estavam muito próximos do abismo, tentar algo parecia arriscado, principalmente se a criatura podia moldar a rocha como o cânion sugeria. Porém, era absurdo pensar que poderiam correr dele. 

Calisto formou um escudo de energia para proteger a si mesma e a Astra quando a criatura as atacou, golpeando a proteção em forma de cúpula. Carter tentou mais uma vez, mudando a abordagem. Em vez de controlar algo do ambiente, resolveu testar seu poder sobre o próprio corpo da criatura, que não reagiu enquanto Carter se concentrava e rachaduras irrompiam pelo seu torso, demonstrando não sentir qualquer dor. A medida que os fragmentos caíam, eles se reorganizavam e voltavam ao lugar inicial, revelando-se um trabalho inútil toda tentativa de destruir seu corpo. Ainda tentando golpear Calisto e Astra, sua irritação crescia, e a terra começou a tremer acompanhando sua fúria. Grandes rachaduras se abriram no chão e espalharam-se em todas as direções.

— Acho que encontramos o motivo do cânion... — Astra murmurou, sua voz abafada pelos urros enraivecidos da criatura.

Carter e Vermont notaram a fragilidade do solo onde estavam, na borda do penhasco.

— Saiam daí agora! — Catarina não precisou dizer duas vezes. Ambos correram, enquanto o chão se desfazia sob seus pés, mas não foram rápidos o suficiente. O grupo pôde apenas observar enquanto perdiam Vermont e Carter de vista.

— Essa não... — Calisto murmurou. O escudo se desfez e ela puxou Astra pelo braço, correndo até outra árvore, diferente da que estavam Catarina e Tiberius. — Vamos subir também! — Calisto começou a escalar. Era mais rápida do que Astra, e sem a ajuda da Joia do Ar, Astra ainda estava na metade quando a criatura se chocou contra a árvore. Astra se agarrou no galho, mas suas pernas balançavam no ar. Calisto a ajudou a subir.

Calisto e Astra em uma árvore, Tiberius e Catarina em outra, se entreolharam, sem ideias.

— O que vamos fazer? — Catarina perguntou.

— Calisto não pode tentar contê-lo em um desses "campos de força" ou sei lá? — Tiberius sugeriu.

— Preciso das quatro Joias, lembra? Sem Carter e Vermont, estou sem poderes.

— Será que estão vivos? — Astra perguntou, preocupada.

— Estão — respondeu Tiberius, sem hesitar. Ele mesmo se surpreendeu por não estar tentando ser esperançoso. De alguma forma, ele sabia que era verdade. Ele olhou para o chão, onde a criatura havia parado de golpear as árvores como um aríete, mas permanecia paciente, esperando por eles. — Precisamos nos preocupar com nós mesmos agora... 

~*~

A queda definitivamente não fora das melhores, mas Antony Carter chegou ao chão ainda inteiro. Com o poder da Joia da Terra, conseguiu evitar a maioria dos obstáculos. Luc Vermont provavelmente não teve a mesma sorte. Tony não o encontrou de imediato, mas ouviu um gemido de dor e arquejar.

— Vermont? — chamou, torcendo para que ele não estivesse sob os escombros.

— Carter! Aqui! — Ele sinalizou. À distância, Tony pensou que não estivesse tão machucado, mas ao se aproximar notou que as pedras esmagavam a perna direita. Também viu sangue, mas não viu o ferimento que o originava. Tony o ajudou a se livrar das rochas.

— Consegue andar?

— A-acho que sim — respondeu, mesmo que a cada movimento, por menor que fosse, uma onda lancinante de dor percorresse seu corpo, originado na coxa direita. Entre as placas de plástico do traje, onde era apenas tecido, o toco de um galho se pronunciava, provavelmente de uns bons centímetros dentro da carne. — O lado bom é que a radiação não é um problema... 

— O lado ruim é que precisamos sair daqui o mais rápido possível. — Carter o ajudou a levantar e deram início a uma lenta caminhada. Talvez Vermont fosse mais rápido se eles tirassem o pedaço do galho, mas não parecia uma boa ideia que eles fizessem isso sozinhos. Se ao menos estivessem com a Dra. Walker, mas a médica estava ainda mais distante deles que os outros Portadores. 

Por que eles não podiam ter uma missão fácil?


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado ♥
A criatura da vez agora é inspirado no golem, que eu fiquei chocada ao descobrir que é uma criatura da mitologia judaica (eu pensei que vinha do folclore nórdico ou sei lá), com algumas mudanças, é claro. Não está tão parecido com a descrição na Wiki, mas é inspirado nele.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Golem

Esse capítulo só tem escolha para um personagem:

Antony Carter (Eu Voltei)
Após cair no cânion junto de Vermont, precisa encontrar os outros o mais depressa possível, afinal não sabe se a criatura ficou lá em cima ou se vem atrás deles. Porém Vermont está bastante machucado, precisando de cuidados médicos e lento. Tony conseguiu pensar em 3 opções:
A - Encontrar algum lugar mais ou menos seguro para deixar Vermont e ir sozinho procurar pelos outros. Sozinho ele seria bem mais rápido e poderia trazer ajuda para Vermont, porém, deixar Vermont ferido na floresta não parece a opção mais segura.
B - Parar de insistir com a caminhada, que Vermont obviamente não consegue acompanhar. Sabendo que provavelmente vão passar a noite na floresta, Carter resolve fazer uma fogueira, já que durante as horas restantes do dia a fumaça pode ser vista pelos outros, guiando-os para onde estão os dois, e a noite a luz guiaria. Porém, o grupo vindo de Aurora não são os únicos na floresta, e a fogueira pode atrair algo mais.
C - Medidas desesperadas são necessárias. Carter convence Vermont que é melhor retirar o toco do ferimento e fechá-lo com uma ligadura. Depois de algumas horas, talvez ele ande melhor, e quando encontrarem os outros, Erin Walker pode atendê-lo melhor.

Aguardo a resposta. Quanto aos outros, qual opção vocês acham melhor?