DeH; A Maldição do Castelo Funok escrita por P B Souza


Capítulo 8
2° Conto; O trono de cima e de baixo




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O salão de jantar de Funok tinha essa comprida mesa, com dezoito cadeiras, oito de cada lado e uma em cada ponta. A mesa e cadeiras eram feitas com madeira de bétula, polidas para se tornarem lisas perdendo o aspecto rustico.

As paredes de granito haviam sido renovadas com quadros modernos e cortinas brancas, lisas, nada das antigas e melancólicas pinturas da escola anterior. Agora a aposta era na simetria e dualidade, as tendências religiosas cada vez mais fortes traziam impacto para a arte, deixando tudo mais intenso naquele cenário simples e limpo.

Não que Tenissa fosse religiosa, mas sempre fora uma mulher de bom gosto no que tocava arte.

— É de quem esse quadro mesmo? — Anelamo, sue convidado naquela noite, lhe perguntou. O homem olhava um quadro de cores azul e vinho com as formas geometricamente idênticas na esquerda e direita, separados por um corpo desenhado de costas, com braços e pernas esticados para cima e para baixo.

— Foucet Yel. Ele não assina os próprios trabalhos porque acredita que o caminho para o pecado é o reconhecimento buscado para alimentar o ego. — Tenissa disse, se lembrando da compra. Os Yel eram exímios na produção de arte. Quase toda a mobília, quadros e artigos de decoração do castelo tinham vindo da Casa Yel, os que não eram presente do Rei Queloyn para ela, após a mudança para Funok.

— Às vezes penso que a fé cega algumas pessoas enquanto abre os olhos de outras. — Anelamo tomou um gole de seu vinho na taça de prata, então se virou e voltou para a mesa. — Passei ciclos longe daqui, e olha o que aconteceu? — O homem já não era nenhum jovem, tinha a experiência a seu lado, assim como os cabelos grisalhos. E no rosto trazia um semblante de preocupação além da característica expressão de descontentamento da família Magmun.

Para Tenissa eles pareciam sempre terem perdido algo. Esse aqui perdeu o trono. Ela pensou olhando Anelamo se sentar na cadeira lateral. Ela estava na ponta da mesa.

— Mesmo com a crise você conseguiu reformar o castelo, e não cortou os dedos de ninguém para isso. Devo lhe parabenizar.

— Não reformei nada, querido. Apenas troquei a mobília velha. — Tenissa ressaltou enquanto cortava um pedaço do coelho assado. — Não provou a abobora? Está ótima, é uma nova técnica de cozimento que foi inventada na cozinha real de Evelum, lá no sul.

— Infelizmente já estou cheio por um dia. — Anelamo rebateu, apenas bebericando o vinho que tinha um gosto forte de carvalho.

O salão estava quente, mesmo com as lareiras apagadas. Havia um sistema de aquecimento entre as ocas paredes, planos originais de Pilos, o responsável pela reforma original do castelo. Dentre as reformas inacabadas por Pilos e Orel, o sistema de aquecimento por vapor era uma delas. Algo que Tenissa finalizou com os tubos de cobre e a caldeira no porão onde outrora ficavam os dedos decepados do povo.

— Seu marido não virá para cá? — Anelamo perguntou olhando para as outras cadeiras. Era um salão razoavelmente grande para apenas duas pessoas e alguns pratos.

Nas portas, em cada uma delas, havia um guarda com polainas negras e calças cinzas, ponchos negros de couro por cima das cotas de malha agrilhoadas nas cinturas com cintos e bainhas para espada e adaga. Um ou outro tinha aljavas no lugar das facas e um arco desmontado nas costas, com as cordas presas na cintura ao lado da aljava.

Além disso, havia quatro empregadas em linha próximas a uma das lareiras apagadas, assistindo a refeição com expressões nulas, esperando serem requisitadas.

— Infelizmente não, Uclessis precisa continuar em Lorval cuidando da transportadora da família, ele virá, claro, fazer visitas, tal como veio quando nos mudamos. O tolo queria verificar por si mesmo se o castelo era realmente assombrado.

— E a conclusão dele foi favorável imagino, afinal, lhe deixou ficar.

— Como se ele pudesse me fazer voltar. — Tenissa respondeu com desdém. Viajou o mundo e ainda tem a cabeça tão pequena quanto um fazendeiro local. Tenissa nunca gostara de homens como Anelamo, aprendera a lidar com eles, mas nunca gostara.

— Então acredita nas assombrações?

Tenissa sorriu olhando para o salão. Ela via os vultos vez ou outra, ali não havia nenhum agressivo, estava já há quase dois ciclos no castelo. No começo havia pensado ser loucura ou até mesmo sua imaginação, depois aprendeu que precisava se proteger.

— Claro que não. — Respondeu no mesmo tempo. — Quando Orel morreu, aquilo foi estranho.

— A história do porão?

— Porta trancada, chave ausente. — Tenissa fez que sim com um sorriso. — O mistério é realmente... Intrigante. Não consigo achar lógica no suicídio ou se foi um, mas o que importa? Morreu e as histórias surgiram, histórias demais para o conforto. Tudo por causa do seu primo.

— Galleo não é meu primo, é mais um tio.

— Você é mais velho que ele. — Tenissa afirmou, mas pareceu quase uma pergunta, na verdade ela não sabia, a afirmação era embasada no seu achismo por aparências.

— Galleo deixou tudo ao acaso, eu sei. Meu tio nunca foi um exemplo como governante. Teria me passado o título, mas acho que apegou-se a algum tipo de orgulho besta depois de velho. Alias, ele é mais velho. Isso aqui não é idade, é experiência. — Disse deslizando os dedos pelos cabelos grisalhos.

— Tenho certeza que é. Como eu dizia, foi depois disso tudo que Queloyn pediu para que eu resolvesse a situação.

— Sua majestade com toda certeza quis agradar Uclessis.

— O meu esposo é menos que adequado para o papel que faz. Pode ser um espanto para homens como você, mas Queloyn de fato gosta de mim.

— E mesmo assim a mandou para o buraco mais fundo de seu reino. Forma estranha de mostrar apreciação. — Inclinando para frente, deliberadamente sendo arrogante, Anelamo sorriu.

— Nas palavras de Queloyn, apenas uma pessoa valente pode resolver essa situação toda. É por isso, inclusive, que te convidei para esse jantar. — Tenissa afirmou estufando o peito para mostrar-se dominante ali. Homens sempre tentando ganhar espaço. — Vila Magmun já sofreu demais. Funok mais ainda. Queloyn sabia disso, por isso me mandou aqui, porque ele é um rei sábio e como tal sabia que eu resolveria seus problemas.

— Um vilarejo desse porte não pode ser tão cheio de problemas. — Reclinando na cadeira, Anelamo encerrou sua taça em um último gole.

— Ficaria surpreso. — Tenissa então se levantou, olhou ao redor e fez sinal para que seu convidado também se levantasse. — Quero lhe mostrar algo, na biblioteca, venha comigo.

Anelamo, um tanto a contragosto, se levantou. A comida parecia finalmente chegar ao estomago e batia aquele cansaço depois de uma farta refeição.

Os dois foram lado a lado para o corredor até subirem uma escada em caracol que os levou a outro corredor, esse mais largo e com menos iluminação, porém ali havia claraboias no teto deixando o luar entrar filtrado pelo cristal talhado em formas de peixes e corais. Tal como no resto da casa havia guardas lá e cá, o tempo todo. E uma das serventes seguia Tenissa, sempre dez passos atrás de sua senhora.

— A verdade é que talvez eu não seja, ao todo, cética sobre as assombrações. — Tenissa disse para Anelamo enquanto abria a porta da biblioteca. — Não significa que eu acredite em totalidade nas barbáries que espalham por ai. Pilos não anda pelos corredores com um colar feito de dedos decepados, isso é simplesmente ridículo. Mas a maldição é real, assim como a praga que fez os campos de Magmun secarem. Outrora era aqui a terra seca e era Magmun a fértil. Agora tudo parece ter sido invertido.

— Diria que a maldição está quebrada então?

— Só com o charme de minha presença? Como me gostaria de ter tais poderes, não. A maldição é real, e para quebrar ela será necessário mais que uma Turenc.

Entraram na biblioteca particular de Funok.

Era não mais que um corredor um tanto largo com prateleiras do chão de pedra ao teto. As prateleiras eram feitas em placas de olmo, talhadas nas bordas com encraves no antigo alfabeto Erah, trazendo versículos do texto sagrado de Árion. Um sinal de fé deixado por Pilos, mesmo este nunca tendo sido um homem tenente a Deus.

Não haviam muitos livros ali agora. Tenissa preferira sempre a arte em imagem que em palavras, e o antecessor dela, Orel, não preferia arte nenhuma pois mesmo tendo os espaços, todos estavam praticamente vazios depois da chegada de Tenissa ao castelo. Orel com toda certeza era um bom gestor, aumentou o valor da propriedade trazendo comércio à ela, mas nunca entendeu o valor agregado além do trabalho.

— Essa aqui, é minha prateleira pessoal. Diários. — Tenissa disse pegando o último livro, abriu sua capa de couro liso, apenas na lombada que estava escrito com uma tinta dourada o sobrenome dela. — Anotei porque não sou muito boa em decorar textos, olhe aqui; No banquete saberá que o herdeiro de sangue retornou, mas não ocupará o trono que lhe pertence. A terra ficará negra, e o herdeiro encontrará uma senhora que se diz nobre, juntos marcharam até o conhecimento e com o vermelho real, pai e mãe tomarão o trono de cima e de baixo. O Lorde tão negro quanto a terra vendo a luz do sangue real se levantará do trono que profanou. E fogo trará recomeço.

Anelamo olhou para Tenissa assim que ela tirou os olhos da página. Ele parecia frustrado.

— O que é isso? — Perguntou com certa arrogância, descontente com o que ouvira.

— Uma profecia. — Tenissa respondeu para ele, guardando seu diário ao lado dos outros todos.

— Isso ficou claro, palavras vagas, rimas fracas e péssimo respeito ao Deus Árion. — Anelamo cruzou os braços. Tenissa quase riu na frente dele. Quanta moral para um homem desesperado.

— Eu nunca acreditei em profecias. Igual você não acredita em bruxaria...

— Acredito. — Anelamo a interrompeu. — Esse é justamente o problema, eu acredito no poder destrutivo que esse tipo de comportamento...

— Chega! — Tenissa então olhou com rudeza para ele. — Foi previsto que você chegaria, é previsto que Galleo lhe entregará a cidade sem violência alguma. Mas só de uma maneira.

— Isso jamais será a solução. — Anelamo então se virou, e só então percebeu que ali, pela primeira vez, estavam sozinhos. Até mesmo a porta havia sido fechada em algum momento. — Historicamente magia nunca solucionou nada...

— Você tem se alimentado de magia nos últimos dois ciclos. Nos últimos dois ciclos todo o vilarejo o tem. A praga dizimou as plantações e fez o gado morrer magro, menos aqui em Funok. Acha que isso é acaso? Eu fiz o necessário para manter o povo alimentado porque sabia que o verdadeiro herdeiro estava chegando. Anelamo, esse é você. — Tenissa foi até ele e segurou os pulsos dele, olhando-o nos olhos tentando buscar alguma esperança naquele homem tão rígido. Seu dever é ser um lorde e o meu é te transformar em um. — O povo daqui... Você esteve fora por ciclos demais. O orgulho os mata todo dia, iriam à guerra por qualquer ofensa banal, ainda mais quando esfomeados. Eu sei o que fiz, sei as represálias que o próprio Rei Queloyn teria contra minhas ações, mas fiz apenas o necessário pela paz. E se você pretende ser o Lorde que salvará Magmun do fim trágico para o qual essa cidade caminha, você fará o que for necessário.

— Eu não...

— Você já fez, já foi previsto. Só precisa aceitar!

— Temos tropas, posso, com a sua ajuda, forçar Galleo...

— Você tem vinte homens e eu quarenta e cinco. Isso não fará nem cócegas na guarda de Galleo, quão menos nos soldados. — Tenissa ponderou com ele. — Se planejar guerra, mesmo que ganhe, Magmun sangrará mais, demais. Famílias vão lhe odiar, e é uma cidade pequena. Logo todos vão lhe odiar e seu tumulo será cavada pela mão dos seus próprios servos famintos, que no fim ainda vão se alimentar da sua carne fria! Esse é o destino que corteja?

— Eu quero paz!

— É o que estou lhe oferecendo, mas é medroso demais para aceita-la! — Soltou os pulsos de Anelamo, e virou a mão contra sua face com um estralado tapa. O homem lhe encarou estupefato. — Me chamam de mãe do povo, eu os alimento e eu os motivo e antes, homens que não ousavam se aproximar desse castelo, agora fazem fila para me ver. Eu nunca feri ninguém para conseguir o que consegui. E tudo que consegui segue a profecia que a bruxa me deu.

— Está louca de confiar em uma bruxa... Por isso Galleo não lhe aceita, nós da família Magmun sempre fomos tementes a Árion...

— Um Deus que surgiu há menos de duzentos ciclos, sua família tem mais de quatro mil ciclos de existência. Sempre adoraram Árion? — Tenissa então segurou o homem pelo queixo, se aproximando. — O pai e a mãe tomarão o trono de cima e de baixo. Sem guerras, sem sangue desnecessário derramado. Pela paz e fartura, só precisamos de um pouco de coragem.

Agora estava tão próxima de Anelamo que podia ouvir o coração do homem batendo acelerado. Ela desceu os olhos dos olhos dele para os lábios, que segurava com as unhas contra suas bochechas. Ele não relutava, a olhava com uma admiração incomum entre o asco pela bruxaria e a apreciação por tudo aquilo. É desejo o que eu vejo? Mesmo com sua idade bem mais avançada que a dele, Tenissa ainda podia sentir os prazeres que a carne propiciava.

— Eles me chamam de Mãe. — Ela sussurrou encostando os lábios nos de Anelamo com calma, enquanto as mãos dele iam contra sua cintura. — Deixe-me lhe fazer Pai.


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Notas finais do capítulo

Não, não fica claro na história e isso é proposital.
Mas Tenissa é uma mulher de 60 e tantos ciclos, ou anos.



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