DeH; A Maldição do Castelo Funok escrita por P B Souza


Capítulo 14
II




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As cartas eram quinzenais, e vinham de ambas as partes. Betenion e Gavel mantinham contato falando sobre qualquer particularidade do castelo, de forma que um sempre havia algo para responder à mensagem do outro, assim sempre haviam cartas para serem enviadas. Porém desde o dia que partira do castelo, Betenion nunca mais havia voltado lá.

Até aquele dia.

A carruagem parou na frente do castelo, o portão antes de metal sempre negro agora era dourado e um brasão com um elefante em fundo verde encimava o arco da pequena muralha. O portão estava meio-aberto como se esperasse por ele, e de guarda havia um soldado com roupas esverdeadas, espada e aljava nas costas.

— Espere um momento. — Betenion pediu ao cocheiro indo para o portão. — Bom dia. Sou o convidado do Senhor Toulline.

Lá dentro, no jardim aonde sua mãe morrera nos seus braços estava a família de Gavel. Rostos que Betenion nunca antes havia visto. Mas dentre as pessoas ali, um homem se levantou de uma cadeira de descanso.

— Deixe-o passar. — O homem vinha até o portão enquanto Betenion mostrava a carta de Gavel, como prova de ser ele quem dizia ser. — Deve ser o coletor em nome de Betenion, correto?

— Na verdade, sou Betenion! — Respondeu para o homem.

— Nesse caso, prazer. Sou Jaques, filho de Gavel. — Estendeu a mão, assim que Betenion apertou-a, Jaques usou o ato para puxar ele para dentro da propriedade, levando-o rumo a mulher e as crianças. — Essa é minha esposa Marza, meus filhos Anatol e Leslaw e minha filha Aneta.

— Lindas crianças. — Betenion olhou para cada um dos três filhos. Anatol era o mais velho, era visível. Aneta e Leslaw pareciam ter a mesma idade, e Aneta ser mais ativa que o irmão. Eles brincavam de lá-vem-o-rei. Claro que Anatol era o rei. Betenion então se virou para Marza, que se punha de pé. — Uma honra conhece-la!

Beijou-lhe as costas da mão, se curvando.

— Venha, Betenion. Te levo até meu pai, ele tem passado muito tempo na sala do tesouro, aposto que contando seu dinheiro.

Era aquilo que Betenion havia ido fazer ali. Coletar a parcela da venda de seu castelo. Porém aquele lugar não lhe trazia boas lembranças, nenhuma!

Nas suas memórias via apenas dor e sofrimento, e sentia-se até mesmo culpado por pegar dinheiro em troca daquele lugar. Às vezes pensava que deveria deixar o castelo às moscas, abandonado para o azar dos desventurados que ali chegassem por qualquer caminho que fosse. Invés disto, estava ali, em pé a poucos metros de onde sua mãe caira de joelhos, de onde um homem despencara da torre para a ter seu corpo despedaçado contra o chão, aonde outro homem havia morrido no andar inferior na adega, aonde apenas mais e mais desgraça acontecera.

— Prefiro esperar aqui, se estiver tudo bem consigo?

— Ah, claro. Conhece bem o castelo, tenho certeza. Fique à vontade! — Jaques disse com um sorriso polido e foi rumo a soleira.

Betenion olhou para trás, para Marza. A mulher de cabelos amarelos e ondulados como uma cascata de moedas de ouro sorriu para ele.

— Está bem, senhor?

— Maravilhosamente. — Respondeu para a mulher. — Sinto que devo devolver a cortesia...

— Nunca nos aconteceu nada aqui. Vejo que tem aflição nos olhos. Conversei com bastante pessoas do vilarejo sempre que vamos no mercado. Todos parecem ainda crer nessa ideia de maldição, mas não vejo como... O castelo é um pouco frio e talvez sim, coisas ruins aconteceram aqui, mas nada mais acomete essas paredes se não um amor profundo e uma força de adoração crescente!

— São... fieis?

— Ah, sim. Muito! — Marza garantiu. — Gavel não é fiel à fé, talvez por isso o choque, nunca conheceu Jaques estou correta de afirmar?

— Mais impossível!

— Pois então. O pai nunca foi um homem de crer, mas rezava por obrigação moral e aparência na sociedade. Ironicamente seu filho o via rezar e cresceu fazendo o mesmo. Quais as chances? Mias dispares não é possível. Jaques e Gavel se dão bem por milagre de Árion, pois são como água e fogo!

— Um pouco de fé é bom, ainda mais para esse castelo. — Betenion olhou em volta. Nos diários de sua mãe páginas contando sobre batalhas e carnificina detalhavam os horrores que Jeniz revivia com os próprios olhos, mas agora...

O castelo estava pintado, as janelas ornamentadas, os arbustos podados, a pedra lavada estava branca e limpa, as vidraças eram azuladas e os jardins verdes como um jardim deveria ser, repleto de flores em harmonia, com trechos em cascalho aonde as crianças brincavam e com estruturas para as crianças se pendurarem e fazerem todo tipo de peripécia que a juventude cria.

— E você, é temente à Árion também?

— Desde muito nova minha família me levava aos cenóbios em Heoul. Sobrevivemos a bastante ódio lá, a cidade ainda tem muitos magos de Garfh, a transição entre fés é complicada, mas a heresia vem perdendo espaço.

— Não acredita no puritanismo então?

— Acredito em sua vilania, senhor. — Marza respondeu. — Com todo respeito, se esta for a fé que segue. Sei que sua família, assim como os que governaram antes de vocês e os próprios lordes de Magmun tiveram as mãos fundas nessas magias. Então a maldição... Nada mais é que reboliço, se me permite dizer. Árion ensina que não devemos mexer com o que não podemos controlar. Magia isto é!

— Eu mesmo não sou um homem da fé, nenhuma delas. Mas Árion está certo nisso. Magia não é para nós. — Mal terminou a frase, e surgiu como uma ondulação, o vulto tremeluzente, indistinguível.

Marza percebeu seu movimento de olhos. Ela se virou para trás, procurando o que ele vira.

— Quanto tempo não via um verdilhão. — Betenion emendou tentando disfarçar o que vira com o pássaro mais comum de Lorval. — Não tem desses em Moogul, sabe?

— Um lindo pássaro. — Marza respondeu franzindo o cenho, havia percebido a mentira, mas mantido a classe, como qualquer dama faria naquela situação. — Dizia antes?... Ah, veja. Jaques retornou.

Betenion olhou para trás, para ver sua mãe caída na frente da soleira. Ela engatinhou, rastejando como naquele dia. É normal. Pensou, sabia que aquilo acontecia, ouvira as histórias de sua mãe várias vezes para saber que a veria ali. Tentou não esboçar reação.

Jaques passou pelo corpo caído rastejando, e Jeniz se desfez em fumaça densa, caindo chão adentro, sumindo sem nunca ter existido.

— Betenion, está bem? — Jaques perguntou indo até ele, então apontou para o jardim no lado oposto de onde as crianças estavam, para o portão. — Ficou pálido.

Betenion fechou as mãos e as colocou nos bolso, sentia os dedos tremendo enquanto o coração batia em outro ritmo.

— Seu pai...

— Eu, digo... Meu pai nunca foi um sujeito bom, desculpe. O dinheiro... Ele simplesmente não possuí. — Jaques engasgou nas palavras no mesmo passo que Betenion tremia. Os dois estavam desconcertados, mas por motivos igualmente opostos.

— A carta dizia o contrário. — Betenion retorquiu

— Permita-me explicar. Não quer entrar, sentar... — A expressão de Betenion em nada mudou, Jaques compreendeu. — Veja, meu pai fez um acordo incerto pelo dinheiro em um negócio de pouca confiabilidade, sujou o nome que tentou erguer para lhe pagar, de forma nenhuma lhe culpo por querer o dinheiro que lhe é devido, mas condeno os métodos empregados por meu pai. Perceba que lhe pagarei eu mesmo, cada moeda que foi acordada e o juros decorrente dos atrasos, tal como consta no contrato...

— Não há contrato além de um valor especificado, não quero juros, apenas...

— E terá! Como preferir. Mas pedirei mais tempo. O dinheiro que teria viria da escravidão de magos, traficados para o continente além-mar para sabe-se lá  que nefasto motivo. Deixamos Heoul e eu tinha a fé que meu pai enriquecerá com honestidade, não sobre a desgraça da vida de homens e mulheres. Mesmo magos não merecem tal fim.

— A forma que seu pai trouxe o dinheiro é ruim, mas ainda não explica a falta do dinheiro.

— Magos causam caos, é o que os torna tão perigosos. Aparentemente alguns fugiram, nunca chegando ao comprador, e, portanto, o comprador nunca efetuou o pagamento. — Parou de falar por um instante deixando Betenion absorver aquilo. — Imploro a ti, pela minha família, que nos deixe ficar nesse castelo, pois o que meu pai fez agora nos impossibilita retornar para Heoul. E acredito veementemente que lhe pagarei em quatro ciclos, no máximo cinco. Parcelas toda parte-de-ciclo...

Jaques continuou falando quando ao lado dele as trevas e as sombras se formaram em uma silhueta e um rosto surgiu. Betenion recuou um passo, lá atrás sua mãe, rastejando, se levantava e corria para dentro do castelo, os guardas do combate surgindo em montes, correndo, os gritos aumentando exponencialmente como uma briga de bar, depois como um torneio em uma arena.

Betenion olhou para cima, o mastro da torre estava quebrado e Pilos Haradram estava pendurado ali, morrendo novamente.

— Eles não vão perdoar isso. Não, eles não perdoarão! — A silhueta na sua frente era sua avó, Tenissa. Sua voz foi sútil como um alerta tardio, embora falasse no futuro, o futuro era tão próximo que se tornava irremediável.

— Cadê seu pai? — Betenion agarrou os ombros de Jaques Toulline.

— Para manter a luz, treva não pode ser tolerada. — Tenissa disse como um sussurro. — Não há redenção sem punição.

— Ficou lá...

— O que o vovô tá fazendo...

Jaques não terminou de falar, nem Leslaw. No topo da torre de Funok Gavel Toulline surgiu em um passo, subindo na ameia, e antes que alguém gritasse qualquer coisa, ele deu mais um passo.

O corpo girou, imóvel como um boneco de treino. Em silêncio, sem um único grito além dos de Marza primeiro, depois das crianças.

A pancada foi de cabeça, abrindo o crânio ao meio pela orelha esquerda. O sangue espirrou contra a pedra polida da parede do castelo. Jaques correu para seu filhos, Marza chocada em estado de choque ficou estática. Os guardas correram para dentro do castelo.

Betenion olhou sem nenhum tipo de emoção a cena que apenas se repetira e continuaria se repetindo infinitas vezes. Mas entendeu uma única diferença. Entendeu a oportunidade que se apresentava tão distinta.

— Precisa acabar. — Betenion sussurrou, se virando e deixando o castelo. — Isso precisa acabar!

Pela primeira vez sabia o que fazer.

Subiu em sua carruagem, o cocheiro fez meia volta e guiou-o para Vila Magmun deixando o choro de uma família para trás. Fora a última vez que Betenion vira os Toulline ou Funok. Nunca mais pisaria ali, nem mesmo após o fim da maldição!


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