O Ar Que Ela Respira escrita por Alyssa


Capítulo 3
Segundo ou Dedicação


Notas iniciais do capítulo

Sim, bem, depois de mais de um ano sou mesmo eu que está de volta. Infelizmente, tive um bloqueio muito grande durante todo esse tempo, mas nem por um segundo me ocorreu abandonar esta história, então a todos os que continuaram desse lado, muito obrigada. Espero que gostem!



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Na manhã seguinte, Lily acordou ainda sob o efeito do álcool. Tinha a certeza que já havia bebido muito mais e coisas bem mais fortes do que champanhe, mas aparentemente o seu organismo tinha mais dificuldade do que se lembrava a eliminar o efeito das bebidas mágicas. Como se não bastasse o fraco desempenho do seu fígado,  também o cansaço de uma noite mal dormida após uma semana de treinos intensos e uma forte restrição alimentar para que pudesse manter o seu físico adequado ao nível mais elevado de performance, eram outros factores que se aliavam agora para a inquietante sensação de nevoeiro mental e fraco equilíbrio.

Parecia um pouco irónico então que Lily, aquela que desde os seus oito anos trabalhava incansavelmente para este exato momento, fosse arriscar comprometer o seu desempenho na audição mais importante da sua vida por uma noite de algazarra. Podia até parecer injusto então, arriscar o seu futuro para celebrar o do irmão, contudo não fora como se os pais a tivessem obrigado a comer os petiscos servidos ou a emborcar um litro de espumante. Não, eles apenas queriam a sua presença e apoio, como uma verdadeira família faz — ou que devia de fazer de qualquer maneira. E Lily, que estava perfeitamente consciente da sorte que tivera em nascer num seio protetor e que a continuava a amar independentemente daquilo que ela fosse (ou, no caso, daquilo que não fosse), pareceu-lhe perfeitamente aceitável ceder às chantagens emocionais de Ginny Weasley.

Lily não tivera muita vontade de bater de frente com a mãe; elas eram duas mulheres com feitios muito próprios e distintos e, acima de tudo, fortes e com a certeza de que sabiam bem o que queriam. Por isso, apesar de se darem muito bem na maioria do tempo, era sempre necessária uma dose de esforço mútuo para que os egos não chocassem e começassem a arrastar tudo para a discussão como um tornado. A prova disso fora a adolescência de Lily, em que muitas coisas foram ditas e quase todas elas feriram ambos os lados até eventualmente Ginny aprender que a filha era a sua própria pessoa e Lily que a mãe só queria o melhor para ela, mesmo quando parecia o contrário.

Mas claro que isso tudo não significava que não fosse difícil, oh não. Estar rodeado por tudo aquilo que ela falhara a ser, a sensação desoladora de desrespeito por algo que ela nunca tivera escolha e até mesmo a simpatia não desejada era mais do que ela conseguia aguentar.

Podia haver quem conseguisse, claro. Quem sabe, talvez ela só fosse demasiado auto consciente ou talvez estivesse a julgar demasiado duramente todos os outros. Independentemente do que fosse, Lily estava certa de que não teria conseguido aguentar até ao final da noite anterior sem um pingo de álcool no sangue… Tudo se resumia a escolhas. E, principalmente, a saber lidar com elas mais tarde.

Lily alongou-se preguiçosamente na cama, respirando profundamente enquanto se dobrava sobre as pernas para que pudesse pousar a cabeça junto ao dorso do pé. Repetiu o movimento na perna oposta, sentindo os músculos distenderem e, depois, fletiu os dedos do pé contra a barra da cama.

Tudo isto era como uma espécie de ritual que dava início ao dia: havia quem orasse, quem começasse por escrever no diário ou bebesse um copo cheio de água com limão, já Lily certificava-se que a sua elasticidade se mantinha perfeita.  Afinal, era de conhecimento geral que o ballet não era só técnica.

Dirigiu-se para a cozinha, concentrando-se nos seus movimentos erráticos e evitando o melhor que conseguia chocar contra os móveis. Marcel já lá estava, muito bem sentado nas cadeiras metálicas e rodeado por livros universitários demasiado grossos e com letras demasiado pequeninas para suscitar qualquer tipo de interesse nela. Entre os dois, Marcel era o académico e se pudesse de certeza que se manteria como o eterno estudante, sempre sedento de aprender mais.

Ele ergueu os olhos claros claramente satisfeito por vê-la de pé naquele dia, como se isso por si só constituísse algum tipo de vitória. Esboçou um sorriso e começou a brincar com o botão da caneta que tinha na mão, batendo-o ritmicamente contra a mesa e produzindo um chiar desagradável.

— Bom dia, princesa.

Lily beijou-lhe os caracóis dourados, mesmo no topo da cabeça, como resposta.

— Acordaste cedo — continuou Marcel. Apesar de ser uma afirmação, Lily sabia que ele estava apalpando terreno, há espera que servisse de incentivo para ela desembuchar o sarau dos Potter. Mas ela não queria falar, não ainda, porque sabia que assim que o fizesse, não seria capaz de colocar qualquer tipo de comida sólida para o interior.

Suspirou, pegando na cafeteira de cima da mesa e despejou o líquido escuro para dentro de uma xícara. Sempre que era o primeiro a acordar, Marcel preparava o café em grandes quantidades, não só para atender ao seu vício pessoal de cafeína, mas também para que ela pudesse se servir quando se levantasse. Apesar de não parecer nada de mais, era um gesto de carinho e afeto porque assegurava que Lily, na sua sempre frenética rotina matinal, não se descuidasse das refeições e, consequentemente, não se sentisse mal no meio de treinos que pediam tanto de si.

Lily enrolou os dedos em volta da xícara, respirando o cheiro forte de um café bem feito antes de começar a bebericar, esperando que lhe ajudasse a despertar os sentidos lânguidos.

— Não conseguia dormir — admitiu finalmente, com um pequeno encolher de ombros. Serviu-se dos ovos mexidos, decidida a ignorar o olhar penetrante de Marcel. Por uma vez na vida, Lily realmente tinha fome. Ainda assim, muito apesar do rapaz ter preparado um verdadeiro pequeno-almoço inglês, Lily evitou tocar no feijão e nas salsichas que a podiam fazer sentir-se inchada, degustando feliz os ovos e o pão integral em pequenas dentadas.             

Marcel bateu os dedos impacientemente contra o queixo, o olhar preso no movimento ascendente do garfo até à boca e, depois, no movimento descendente da boca para o prato. Quando finalmente se fartou, puxou os óculos de aro redondo que lhe escorregavam pelo nariz comprido e mudou de posição, começando a bater com os dedos no tampo de vidro ao invés.

Lily suspirou, derrotada.

— O que queres saber?

Os olhos verdes de Marcel amansaram, com cuidado e preocupação evidente.

— Como estás?

Ela deu de ombros, engolindo a comida a custo. Subitamente, a garganta parecia-lhe muito mais apertada.

— Não sei — admitiu. — Sinto-me sempre aquela menina pequena e incapaz de se proteger dos outros.

Deu uma gargalhada sem humor, achando um bocado ridícula a sua afirmação. Ela não tinha nada do que se proteger, nenhum perigo eminente prestes a saltar-lhe ao pescoço. Então, porque se sentia como se fosse ela contra o mundo?

Marcel pousou a sua mão na sua, dando-lhe um pequeno aperto que sabia significar “estou aqui para ti e sempre vou estar”. E era a verdade: Marcel era a maior constante na sua vida. Conhecia-o desde os 12 anos, quando ele se mudara de França para a sua escola, com a pronúncia muito arrastada e dissonante. Como Lily sabia bem o que era ser excluída, rapidamente adotara-o sob a sua asa antes que ele tivesse a chance de se aperceber o que estava a acontecer.

Desde então, eram inseparáveis. Marcel era o seu melhor amigo e, embora a maioria das pessoas nem desconfiasse, era o seu ex-namorado também. Aconteceu aos 14 anos, mas eles rapidamente aperceberam-se que estavam a se usar para preencher os seus próprios vazios pessoais; Lily porque estava sedenta de amor e aceitação; Marcel porque queria desesperadamente se afirmar como aquilo que não era. Não era, no entanto, algo constrangedor ou que desejassem esquecer. Se qualquer coisa apenas ajudara-os a se perceber melhor e aumentara ainda mais o carinho que nutriam um pelo outro.

— Devias ter recusado o convite — resmungou. — Se tivéssemos de nos mudar para um apartamento do outro lado da cidade e sem água corrente que fosse.

Lily riu, subitamente mais leve. Ginny de facto utilizara a gorjeta mensal de Lily para a coagir a ir ao sarau, em frases que não diziam nada, mas implicavam tudo, já que os pais se asseguraram que ela poderia viver exclusivamente para o ballet, sem qualquer outro tipo de preocupação, naquele ano.

— E dar-te tamanho desgosto? — respondeu, colocando a mão sobre o coração de forma teatral. — Julgas-me tão cruel?

O amigo revirou os olhos.

— Depois de viver tantos anos contigo sou capaz de suportar qualquer coisa.

Lily deu-lhe a língua, enchendo mais uma garfada.

— Vi o Albus, que também parecia miserável por ser o centro das atenções, uns quantos bruxos espantados com a minha presença como se tivessem esperado que eu tivesse entrado em combustão há anos e… Bem, — baixou os olhos escuros, sentindo-se culpada. Quando continuou, fê-lo quase a sussurrar, como se tivesse medo que Marcel fosse brigar — sou capaz de ter bebido um bocadinho a mais.

— Eu pedi para me ligares se bebesses!

— Eu sei! Mas eu só me senti mal hoje.

Marcel não pareceu comovido com o beicinho dela.

— E terias te sentido ainda pior se tivesses tido um acidente — atirou, estalando a língua. Lily fingiu que não ouviu, embora se sentisse envergonhada. Realmente, havia sido uma estupidez e ela não podia atirar as culpas a ninguém que não fosse ela mesmo.

— E eu tenho de ir treinar — prosseguiu ela, com um gemido. — Sinto-me tonta sem começar a dar piruetas.

Ele franziu o nariz.

— Porque não ficas hoje a descansar? É domingo — lembrou Marcel, como se houvesse a possibilidade de ela se ter esquecido. Mas Lily fez justamente o que ele sabia que faria, abanando a cabeça como se fosse uma ideia perfeitamente descabida.

— Sabes que não posso.

Foi a vez dele suspirar. A questão não era tanto poder, mas não querer. Lily queria se certificar que era perfeita e sabia que nada disso viria sem esforço. Ela estava disposta a fazer todos os sacrifícios para que fosse não apenas boa, mas a melhor.

Discutiram mais algumas banalidades, os exames eminentes que Marcel ia ter e o que deviam encomendar para o jantar já que ela não estaria de volta antes do almoço. Uma vez encerrada a conversa, lavou os pratos para que o amigo pudesse se concentrar nos estudos e voltou para o quarto onde colocou o seu maillot preferido — preto e bês com uns bordados florais também pretos nas zonas mais claras — para servir de incentivo para deixar o apartamento.

Decidiu ir a pé para a Royal Ballet School, o local onde aconteciam as suas aulas, principalmente porque o dia estava ameno e Lily queria aproveitar a sensação dos raios de sol a baterem-lhe no rosto, tornando-lhe as bochechas pálidas avermelhadas.

A caminhada era relativamente curta; cerca de 10 minutos ao longo de meia dúzia de quarteirões nas ruas movimentadas e cheias de vida da capital. Lily gostava particularmente de apreciar a dinâmica da cidade, desde os condutores irritados constantemente a buzinar e as pessoas tão concentradas nas suas próprias vidas que raramente levantavam os olhos para as características cabines telefónicas vermelhas até ao imponente Tamisa que rasgava Londres. A indiferença das pessoas, embora chocante, tinha um tanto de maravilhosa.

Entretida no mundano da vida quotidiana, rapidamente avistou a escola, um edifício da era vitoriana de três pisos e quatro colunas de estilo grego a adornar a fachada. Possuía várias alas que se estendiam tanto para os lados como para trás e jardins verdes rodeados por muros altos que tanto destoavam daquela região urbana. Deveria, a certa altura, ter pertencido a algum elemento da alta nobreza, mas Lily não poderia ter a certeza.

Para além dos incontáveis estúdios de dança, o local ainda contava com o refeitório, diferentes salas recreativas e dormitórios para as várias centenas de estudantes.

Uma vez mais, Lily estava certa de que deveria ser a exceção à regra nesse quesito. Primeiramente, porque ao contrário da maioria dos alunos, Lily não era aluna daquela escola desde o início da sua adolescência, já que os pais quiseram primeiro garantir que ela primeiro teria acesso a uma educação de excelência. O resultado, claro, não poderia ter sido menos surpreendente, com Lily se mostrando uma aluna bastante mediana e desinteressada e passando todo o seu tempo livre no estúdio de dança. Talvez por isso, ela se esforçasse mais, desejosa por mostrar aos colegas que embora não tivessem o mesmo plano de fundo, não a deviam subestimar.

A segunda razão para não viver ali era, claro, o seu melhor amigo. Estava tão acostumada a viver com ele (mais, inclusive, do que a própria família) que o mero pensamento de partilhar uma casa (ou, no caso, um quarto) com qualquer outra pessoa a deixava desconfortável. Marcel também nunca mais a falaria, pensou com sorriso. Além disso tudo, sabia que ele não conseguiria manter o sítio onde viviam sem ela para dividir as contas e ela jamais estaria disposta a deixar-lhe numa situação desconfortável. Sendo assim, todos ganhavam.

Cumprimentou o porteiro logo à entrada, que já a vira vezes suficientes para não lhe pedir as credenciais de acesso, e continuou pelos corredores desertos até um dos salões de treino.

Há semelhança do resto, estava deserto e frio. Já suspeitava que nenhuma das suas colegas iria aparecer num fim de semana para treinar depois de oito horas de treino de segunda a sexta-feira. Era extremamente exaustivo, não só para o físico, mas especialmente para o psicológico.

Lily era diferente. Ela ultrapassaria todas as barreiras imagináveis pelo seu sonho, voltaria a se colocar em pontas as vezes que fossem necessárias, mesmo que tivesse os dedos em carne e sangue. E continuaria a dançar de novo e de novo, não importava se tinha os olhos marejados por lágrimas contidas.

Faltava só cinco dias: a sua escola de ballet, a melhor de Inglaterra, iria realizar uma audição para uma peça que seria apresentada ao público três meses depois. E, logo após, escolheriam três membros masculinos e três membros femininos para a companhia, entre a mais de centena de alunos. Era absolutamente aterrador. E muito, muito, excitante.

Se Lily por acaso ficasse com o papel principal, então já era quase certo que entraria para a companhia. E desde que começara a dançar aos 8 anos após ter ficado completamente mesmerizada com uma atuação do baildado Quebra-Nozes que Lily sabia que o seu maior desejo era pisar aquele mesmo palco e causar a mesma sensação que ela sentira naquele momento.

Deixou cair a mala de treino no chão. Preparou os dedos para calçar as sapatilhas de ponta, com a perícia de quem estava acostumado a repetir este processo. Envolveu os dedos em esparadrapo e papel e calçou as sapatilhas em seguida, dando leves batidinhas contra o chão para se assegurar de que estavam seguras e confortáveis.

Pôs uma música a tocar no telemóvel, muito diferente do estilo clássico que era mais apropriado, mas rítmico o suficiente para que pudesse se aquecer na barra.

Começou. Lembrou os nomes dos movimentos antes de executá-los, como o demipliê — em que mantendo a postura ereta, baixava o seu centro de gravidade sobre os joelhos — ou o battement tendu — em que abria o braço direito num arco elegante, levando uma perna alongada à frente e de volta para a posição original, repetindo o movimento algumas vezes até alternar a direção.

Lily gostava de trabalhar nos seus movimentos menos bons para que tudo pudesse ficar perfeito. Todavia, não era só isso; ela também desfrutava de tudo o resto. Para ela, o perfeito emaranhado de horas de dedicação e da busca pela excelência era, ao contrário do que se podia pensar ao assistir os movimentos intransigentes, de uma liberdade incomparável.

E acima de tudo, havia um pormenor muito especial… Afinal, fora o ballet que lhe devolvera a vida que ela pensara ter perdido há muitos anos atrás.


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Notas finais do capítulo

Queria deixar umas notas importantes, primeiro que eu devo levar cerca de uma mês até atualizar novamente porque vou entrar numa época de exames muito exaustiva, mas isso não quer dizer que tenha entrado em hiatus novamente. Então espero que sejam pacientes comigo um pouco mais. Em segundo lugar, tenho uma nova fic scorlily que pretende ser mais leve se tiverem interesse (chama-se "Define-me amor") e em terceiro, não se esqueçam de comentar e favoritar se gostaram! Beijinhos ♥



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