Ponte dos Anjos escrita por Hypnomium


Capítulo 1
Ponte dos Anjos




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Não é como se eu não me lembrasse de como cheguei ali, mas não lembrava exatamente como havia chegado àquele ponto. Quanto a condução de minha vida, havia ficado tão fora dos trilhos, desgovernado em um perpétuo ciclo acelerado, sem pausas, sem freios.

E ao mesmo tempo, sabia perfeitamente.

Um filme editado dos momentos chaves no qual cada frase rasgou minha pele por dentro, deixando meu coração em uma colcha de retalhos mal remendada. Fazendo do meu corpo igualmente mal remendado, incapaz de guardar dentro de si todas as emoções de forma a sempre transbordarem, sempre pelo rosto.

Cada remenda, uma cicatriz. Dentro e fora.

Cada suspiro de descontentamento, levava a um sentimento que não deveria ser sentido, uma angústia desalocada. O coração batia na hora errada, a mão na hora certa. Peito e rosto pulsavam em diferentes dores. Dor que antes, meus instintos me recomendaram evitar, mas logo tornaram-se a única coisa imaculada a se sentir.

Já estava cansado de me afogar nessa água santa. Nessa água insana.

Respirei fundo e subi no ferro que me separava dos braços divinos do milagre da vida. Fechei os olhos e respirei fundo, senti os ventos por meu rosto. Para alguém pervertido como eu, talvez essa fosse minha única ação altruísta. Condenaria a mim, mas libertaria meus entes.

— Está tentando voar?

Uma súbita voz fez com que abrisse meus olhos. O equilíbrio de meus pés tornou-se repentinamente relevante e em um salto desengonçado, pousei novamente no asfalto.

— Você é um anjo? – Continuou o dono da voz, uma criança de cabelos ondulados castanhos que não devia ter mais de 9 anos de idade. Ela me olhava com genuína preocupação, eu a olhava incógnito e desesperado.

— Anjo? – pergunto.

— Meu irmão diz que às vezes os anjos descem para nos visitar e se esquecem que estão em corpo de gente. Mas eu já vi isso antes, não é assim que vai conseguir voar.

Abri minha boca, mas não consegui dizer uma palavra sequer.

— Quer almoçar lá em casa? – ela veio em minha direção e segurou minha mão, suas palmas estavam quentes. – Meu irmão não gosta de estranhos, mas não acho que dirá não a um anjo!

Também não gosto de estranhos. Costumo ser um tanto indiferente a eles. Mas quando aquela pequena menina segurou minha mão e deu o primeiro passo, apenas a segui pela rua.

Ela parecia energética, disse que seu nome era Verônica e que gostava muito da cor azul. Estava atrasada para o almoço porque, por ser domingo, já tinha fechado a padaria onde ela ia comprar uns sacolés, mas se lembrou de uma tia de uma barraquinha aqui perto que vendia até mais tarde mesmo nos domingos e feriados.

Durante todo percurso eu não disse uma palavra. Minha mão parou de tremer e começou a suar, mas ela não me soltou nenhum instante. A segui até uma casa verde menta, com degraus e janelas brancas, até bem grande, ao menos maior que a dos meus pais. Ela enfiou a mão no bolso e tirou de lá um chaveiro de pelúcia de um coelho azul, junto dele algumas chaves, por não largar minha mão, ela balançou o molho algumas vezes até conseguir segurar aquela que abria sua grade e teve o mesmo desafio para encontrar a da porta de sua casa.

Tentei soltar a mão dela, mas o tempo inteiro, não era eu quem a segurava. Era ela que não havia me soltado, como se estivesse preocupada que no instante em que me soltasse, eu correria para o lago e tentaria fatalmente voar.

A porta se abre antes que ela possa penetrar a fechadura dourada-velha com a chave e do outro lado um rapaz um pouco mais alto do que eu nos surpreende com um alto:

— Bu!

Verônica dá um grito divertido, depois solta uma gargalhada alta que faz com que minha tensão pelo susto não dure muito. Porém, o rapaz do outro lado da porta não me olha de forma tão amigável, de forma que engulo minha risada antes mesmo dela manifestar qualquer som.

Seus olhos castanhos-claro me atravessam como facas, me ameaçando silenciosamente enquanto ele passa seu braço pela frente de Verônica, deixando-a atrás dele. Ele tem cheiro de cebola e alho, seu rosto tem leves sardas de sol. Notar seu rosto me faz notar seu pescoço, que me faz notar suas clavículas muito expostas por conta da regata velha e larga. Seus ombros são até largos para um adolescente. Ele deve ter minha idade.

Por seu corpo tem sardas de sol também, além do tom levemente mais moreno que seu braço forte. Meu olhar continua até chegar na sandália de seus pés, que fico encarando por alguns segundos. Sinto um nó na garganta antes mesmo dele perguntar:

—  Quem é você?

—  Ele é um anjo que eu achei na ponte, Tim! –  Verônica respondeu alegre. – Trouxe ele pra comer com a gente! Por que a gente tem que tomar conta dos anjos!

— Vai pra cozinha, Verônica – ele diz, fechando a porta da casa deixando apenas nós dois frente a frente. Foi quando percebi que seguir uma menina estranha pela rua era uma má ideia.

Essa seria minha primeira conversa com Valentim e estaria longe de ser a última. Quando sua irmã achou que eu era o anjo, mal sabia ela que estava me apresentando o homem que salvaria minha vida.

— Quem é você? – me perguntou de forma acusatória.

— Nicolas – respondi, sem perceber que um nome avulso era o mesmo que nada para ele.

Mantive minha cabeça baixa, não tinha uma boa explicação para estar ali. Afinal, o que eu iria dizer? “Sua irmã interferiu no me suicídio e disse que ia me trazer para o almoço, então cá estou?”

Ele me olhava de cima a baixo, procurando se eu era alguma ameaça. O silêncio que pairava depois de me apresentar estava me deixando ansioso. Mordi meu lábio inferior esperando que Tim quebrasse o silêncio. Eu não devia estar aqui, não deveria ter seguido uma guria qualquer pela rua. Não deveria ter desistido de pular.

Estava para me desculpar e despedir, quando a porta encostada atrás do rapaz se abriu.

— Tem farofa de ovo, feijão e frango. Gosta? Eu adoooro farofa de ovo! – Verônica fala com um sorriso entusiasmado mostrando todos os dentes.

Faço que sim com a cabeça, na mesma hora sei que Tim reprovou. Porém, ele não me expulsa. Contra sua vontade, ele abre a porta e faz um gesto com a cabeça, me convidando a entrar em sua casa.

Não recuso. Adentro a casa em silêncio, sou recebido por um cheiro delicioso de feijão cozido. O lugar não é muito grande, mas é bem confortável. As paredes azul bebê são enfeitadas por molduras de quadro com uma mulher sorridente de cabelos cacheados longos e duas crianças.

Sinto uma pontada de inveja desse cenário de família feliz. Não tenho muitas fotos minhas em casa. Os melhores quadros de minha parede são ocupados por Jesus, um homem que prega o amor e é a causa e destino de todos seus seguidores. Um homem que nunca ajudou ninguém a melhorar de suas doenças mentais. Nas bancadas costuma ter a Nossa Senhora, que é sagrada por ser mãe dele.

Preferia que a relação de mãe sagrada e imaculada fosse da minha com minha mãe. Nem Maria parecia tão feliz ao segurar Jesus quando a moça dos cabelos cacheados segurando o garotinho dos cabelos claros em seu colo. Mesmo ambos com o rosto coberto em tinta.

— Essa é nossa mãe – Tim me conta, mas já tinha deduzido.

— O frango vai ficar frio! – Verônica grita da cozinha.

Preparo meu prato depois dela, farofa, frango, feijão. Tudo com F.

A mesa está posta com uma toalha branca de rendas na ponta pouco encardida. Tem quatro lugares na mesa, mas apenas três são ocupados, o meu e o dos irmãos.

— Como você se chama, anjo? – Verônica me pergunta. Verdade, até agora ela não sabia meu nome.

— Nicolas – respondo.

— Você bebe suco de uva?

Faço que sim e estendo o copo para que ela me sirva um pouco do suco de uma jarra grande de plástico. Tim tenta ajudá-la, mas ela se recusa. Ela é tão meiga fazendo essas coisas por um estranho que começo a me sentir mal em aderir a história do anjo. Parece que estou mentindo.

Seu irmão tem seus olhos azuis fixos em mim, ele não fala muito, mas perpetua uma aura acusatória dele. Apenas levanto o olhar para observá-lo quando ele fala com a irmã sobre modos à mesa.

Ele tem uma pequena marca branca de corte no queixo que faz parecer que está sujo. Seu rosto é cheio de marcas tanto as manchas de sol, como uma pequena craterinha cicatriz abaixo do olho direito, comum de quem teve catapora, mas minha prima ficou com uma dessas por que mexeu em espinha.

Quando me dou conta, já viajei por seus cílios longos claros e por seu lábio fino, queixo quadrado, mechas loiras não uniformes. Antes que eu possa me impedir se sentir, já tenho curiosidade em descer o pescoço e contornar as curvas da clavícula. Sou muito estúpido. Sei o que não devo fazer, mas quando ele olha para mim e nossos olhos se encontram, abaixo meu rosto quente.

Por sorte, o pigmento escuro de minha pele não vai deixar claro meu constrangimento. Apenas dou uma garrafa na farofa – que está muito boa, por sinal – e mastigo rápido. Bebo um gole de suco, e dou outra garfada.

Não acredito que estou achando outro garoto bonito. De novo. Eu sou tão estúpido. Algumas regras são tão fáceis de seguir: não use drogas. Não saia descalço. Não esqueça o casaco. Lave a louça, estude para a prova, não se atrase para a missa. Estende a roupa, arruma a cama, penteia o cabelo. Lave as mãos antes de comer, não ponha o pé na cadeira, corte o cabelo, escove os dentes, não durma tarde.

Não queira beijar outro menino.

Por que?

Não pense em outros rapazes.

Tem que ser tão difícil.

Controle o seu coração.

Ser um garoto normal?

Quando percebo que estou nessa espiral ansiosa por conta da consciência de meu inconsciente doentio, abaixo meus talheres e respiro fundo. Bebo todo o meu suco e fecho meus olhos, recitando a reza do anjo da guarda.

Nunca sei se essa reza funciona.  As vezes me acalma, as vezes faz eu me sentir ainda pior. Talvez eu devesse perguntar sobre isso a um pastor.

— Está tudo bem? – Tim pergunta.

— Claro – minto. – É que eu quase me engasguei. A farofa está uma delícia, se a comida lá em casa tivesse esse gosto, não comia fora nunca.

— Leva um pouco! – Verônica fala contente.

Recuso, até por que Tim a olha com total reprovação da ideia. Ela conta sobre um programa de televisão que assiste sobre historinhas de monstros infantis e depois levo a louça até a cozinha. Seu irmão me impede de ajudar a lavar.

 

— Olha Verônica, – falo com a pequena – você tem um coração muito bom, mas não pode convidar pessoas estranhas para sua casa.

— Mas você é um anjo!

— Eu sei, mas esse é nosso segredo, tudo bem? Não pode contar pra ninguém. – Levo o indicador à boca para indicar que é um segredo. – Outra coisa, às vezes, pessoas muito ruins se fingem de anjos para fazer maldade com meninas especiais como você. Eu ia ficar completamente arrasado se um desses falsos anjos te fizesse mal. Então pode prometer pra mim que não vai mais convidar estranhos?

Ela fica um pouco desapontada, mas depois assente com a cabeça. Seu irmão toca o ombro dela:

— Se despeça do Nicolas, Vê. Ele precisa ir pra casa agora.

Ela faz um bico de decepcionada, depois me abraça. Não entendo essa menina, ela é tão… inocente. Eu a abraço rapidamente de volta antes que meus olhos marejem.

— Até! – ela diz enquanto seu irmão me leva até a porta.

Me despeço e me desculpo pelo inconveniente, não sou bom em dizer não.

— Tudo bem. Você não parece mau – ele diz. É a coisa mais legal que ele disse o dia todo. – Sou Valentim, a propósito.

Ele estende a mão até mim e eu a aperto.

— Acho que estamos fazendo isso ao contrário – digo.

— Como assim?

— Nós deveríamos nos apresentar antes de você me deixar entrar na sua casa para o almoço.

— Também se deve conhecer alguém antes de julgar e sinto muito por isso. Mas hoje deve ser um dia das avessas.

Dou de ombros e ele sorri. Nossa que sorriso lindo, seus dentes são bem brancos mesmo que não tão alinhados. Seu canino é um pouco saltado em comparação aos outros dentes de sua boca.

— De onde você é? – ele pergunta.

— Da rua ali de cima.

— Jura?

— Também nunca te vi por aqui, não sou de sair muito. Minha mãe é um pouco coruja – me arrependo no mesmo instante de comentar da minha mãe.

— Onde Verônica te desenterrou? – ele pergunta, sem vacilar.

— Ela disse que foi comprar sacolé numa tia do outro lado da ponte e eu… eu estava, é, tipo, de bobeira – franzo a testa. Ele levanta uma sobrancelha.

— Ela veio te importunar do nada e você aceitou?

— Eu tava com fome. E achei que fosse uma pegadinha. Olha, eu tava mais confuso do que você agora.

Ele não parece nenhum pouco convencido com o que digo.

— Sua mãe nunca te instruiu a não falar com estranhos?

— Não achei sua irmã estranha. Ela é meiga, energética e fala muito sobre desenhos animados, mas estranha não, nenhum pouco.

Ele riu de meu comentário mais uma vez, sinto meu peito apertando. Dói como uma conversa consegue ser boa. Queria ser só um garoto normal numa conversa normal, mas sei muito bem que estou na beira do abismo agora.

— Bom. Foi uma tarde estranha, mas foi bom te conhecer Nicolas.

Ele aperta minha mão novamente e seguindo caminhos opostos. Não estou mais com tanta vontade de voltar para a ponte, então volto para casa. Aguentar mais um dia nesse inferno só meu.

 

*

 

Minha mãe perguntou onde estive e menti dizendo que estava caminhando. Ela não acreditou em mim, ela nunca acredita, então a verdade é uma coisa bem subjetiva nessa casa. Funciona assim: ela pergunta e eu digo o que ela quer ouvir, se eu minto, sou punido por isso. Se a verdade não lhe agrada, muitas chances de isso acontecer também.

Tenho mais chances me trancando em meu quarto e torcendo para que o acesso dela não seja tão forte.

— Sai dessa porta! Me olha na cara! –  ela grita batendo em minha porta com socos. –  Você tava em algum lugar sujo, não é? Estava com pessoas malignas, não é? Me deixa olhar na sua cara, se não tem nada a esconder, não se esconda!

Mamãe tem bipolaridade bem agravada, mas não pode fazer nenhum tratamento, porque vai contra a fé dela.  Ela reza muito, mas funciona pouco. Meu pai normalmente apenas ignora quando ela tem esses acessos de raiva, na maioria das vezes ele não ta aqui em casa também.

— Você está sujo meu filho –  ela diz em prantos – Vem rezar com a mamãe, vem, meu filhinho querido.

Se eu sair, ela vai me agredir. Minha mãe é doente e ninguém quer tratá-la. Cubro meus ouvidos para não ouvir os choramingos falsos que ela dá, não sou muito inteligente, mas também não sou imbecil para cair nesse truque.

Logo ela volta a chutar minha porta, mais agressiva do que antes. Ela me chama de nomes. Para ela, estou possuído e dou apenas desgosto. Eu sou o demônio que infecta seu filho querido, faz um bom tempo que ela nem se quer me cogita como seu filho. O melhor que posso fazer nessas horas é me encolher em minha cama, fechar os olhos debaixo do travesseiro, e torcer para que ela se canse logo.

Ela fica quase uma hora na minha porta, ouço seus passos se aproximando e se afastando. Volta e meia, ela gira a maçaneta, depois soca a porta, então a chuta e arranha. Então ela grita e chora, implora, mente e se afasta. O ciclo se repete três vezes dessa vez.

A noite, enfim, ela se cansa.

Ela nunca se desculpa. O que cansa é seu corpo, sua mente ainda acha que sou seu inimigo e que quero infectar sua família e consumir seu filho. Ela vai para cozinha preparar a janta, não arrisco sair do meu quarto. Não gosto da forma como ela me olha, sempre em analisando e interrogando, esperando que eu dê a resposta errada que seu filho diria.

Qual a resposta certa para sua felicidade, mãe, que não me destrua completamente?

 

*

 

Queria um pouco de paz na minha semana, precisava de um lugar bem barulhento para tentar ofuscar o som dos meus pensamentos. Infelizmente, não sou o tipo de garoto que tem muitos amigos, então não tinha como ir a casa de alguém para ouvir música alta. Meus fones de ouvido não eram o suficiente. Acabei pegando minha carteira e indo para uma casa de festas no bairro vizinho.

Ir a uma festa sozinho é algo que exige coragem, mas infelizmente eu estava só sob impulso, o que significa que assim que cheguei fiquei completamente intimidado. Por um lado, estar cercado de pessoas que não ligam umas para as outras e possivelmente trocar saliva e fluidos corporais com um estranho era perfeito. Por outro, havia dois seguranças na porta olhando identidade e falta pouco menos de um ano para eu poder entrar legalmente.

Se desse algum problema, eu teria que voltar para casa e eu realmente não queria ir para casa. Me encostei em uma das paredes dos bares ao lado e fiquei tentando decidir se mentia para o segurança, ou se eu apenas tomava um porre no bar. O som da casa de festa estava tão alto que podia-se ouvir o eco pelos arredores. As paredes vibram para algumas batidas. Pessoas se divertindo, o que eu não daria para conseguir desligar as frustrações por uma hora e poder apenas fechar os olhos e me divertir com eles.

Sinto um aperto no peito, eu não sei fugir. Sou patético, não sei nem tomar um porre para esquecer meus problemas, porque quando percebo já estou soterrado neles e incapaz de pensar em outra coisa se não eles. O quão ridículo é isso?

Não quero chorar no meio da rua. Sinto enjôo.

— Ei.

Levanto meu rosto e sou tomado pela surpresa.

— Valentim? – digo.

— Você é o Bruno, né? – ele pergunta, mas ao perceber meu desconforto soca meu ombro.

— Estou só te zoando, Nicolas. O que faz aqui?

— Ah, eu vim, tipo, espairecer – Faço que sim com a cabeça, não foi uma desculpa tão ruim.

— Aqui fora? Você tá drogado? – Ele segura meu rosto, tentando olhar meu olho. vendo se minha pupila está dilatada ou algo assim.

Viro meu rosto levemente corado.

— Não! Eu não uso essas coisas, é só que em casa estava agitado. E que queria me agitar também? – Nossa, eu falo que nem um bosta. Que raios que é “me agitar também”?

Ele não parece acreditar muito em mim, mas continua.

— Aqui fora?

— Eu não consigo entrar – Mostro minha identidade para ele. – Dezessete. Tem seguranças demais, eles não vão deixar. O que é uma merda, por que está tocando Panic! At the Disco e eu adoro esses caras.

— É só isso? – ele ri. – Dezessete é quase dezoito, sério que não te deixaram entrar por conta disso?

— Eu nem tentei, na verdade.

— Vem, vamos – Ele move o rosto em direção a casa de festas, eu o acompanho, mas ainda não estou muito seguro de que vou poder entrar, apenas não quero contrariá-lo.

Claro que um garoto gostoso como Valentim não ia vir a uma casa de festa sozinho, ele está com um casal de amigos logo ali na fila. Uma garota de mechas azuis com um batom tão vermelho que parece pintado com tinta do primário e um garoto com o queixo muito grande para um rosto tão fino. Como o garoto está com a mão na cintura dela, assumo que estejam juntos.

— E aí, quem é esse? – O garoto do queixo fala.

— Esse é Nicolas. Ele é… Coisa da Verônica – Valentim diz de forma divertida. – E Nicolas, esses são Roberta e João. São uns ex-colegas de turma.

— Somos amigos. – Diz João, sobre a relação deles com Valentim. – Ex-colegas são seus ex-colegas.

Acabo rindo junto deles, parecem divertidos. João começa a contar uma história sobre como ele e Valentim se tornaram amigos no primeiro ano, e os outros dois reviraram os olhos como se já tivessem ouvido essa história milhares de vezes. Nem percebo a fila andando, quando me dou conta, já é nossa vez.

O segurança pede a identidade de todos nós, dou a minha um pouco nervoso. O segurança checa o ano depois olha para meu rosto.

— Menor não entra.

— Por favor, seu guarda – Valentim segura na minha mão, fico nervoso no mesmo instante. Ele entrelaça os dedos nos meus, sinto meu rosto quente. – É uma noite importante pra gente.

— Antônio, a gente sempre se comporta – Renata fala cruzando seus braços e posso ver uma tatuagem de coelho de cartola em seu antebraço rechonchudo.

O segurança não parece exatamente feliz com isso, mas sai da nossa frente abrindo entrada para que possamos passar.

— Sem bebidas alcoólicas, hein.

— Juramos! – Renata diz empurrando todos nós para dentro da casa de festas.

Lá dentro é bem diferente das festas de quinze anos e aniversários no qual estava mais familiarizado a ir. Tem MUITA gente enfurnada como a lata mais baladeira de sardinha. A decoração feita de papelão nem aparece direito no local mal iluminado. A música é tão alta que sinto minhas células vibrando em meio a batida.

Nem acredito que eles me fizeram entrar, também não acredito que estou aqui e que Valentim pegou na minha mão daquele jeito. Então ele solta minha mão e os três vão em direção ao balcão de bebidas.

— Quer alguma coisa? – Fernanda oferece.

Faço que não. Não é nem por eu ser de menor, mas por que nunca bebi mesmo.

— Não tem ninguém olhando, xuxu. Pode se esbaldar se quiser, e é Happy Hour da caipirinha!

— Nós vamos para o andar de cima! – Valentim grita para Renata, ela faz um okay com os dedos.

Ele toca meu ombro indicando para a gente subir, ele fala alguma coisa também, mas não consigo escutar por conta da música alta. Tem muita gente circulando pela casa de festas então não consigo subir as escadas sem que esbarrem em mim o tempo todo. Nas séries da Netflix as pessoas costumam ficar tontas e automaticamente se divertir ao entrar na casa de festas, talvez eu devesse ter aceitado bebida.

Valentim segura meu pulso uma vez que me vê devaneando. Não consigo de evitar sentir constrangido quando ele me toca. Sei o que estou sentindo e isso me deixa ainda mais nervoso do que o sentir. Estou atraído, estou sendo doente.

Mas não consigo evitar.

Ele está com uma blusa de botões azul marinho justa com pequenas âncoras brancas espalhadas pela roupa, seus cabelos claros penteados. Ele está atraente. Ele está com um cheiro gostosos. Lembro do dia que ele estava em casa de camisa larga e imediatamente imagino seu pescoço forte por debaixo da gola que cobre seu pescoço.

Queria ser uma garota. Ninguém ia me censurar por gostar de garotos se eu fosse garota. Elas fazem parecer tão fácil.

— Se ficar me encarando assim direto, vou começar a achar que tu é afim de mim – Valentim diz colando o rosto no meu ouvido.

Sua proximidade faz com que meu corpo se arrepie de susto, salto para o lado imediatamente em defensiva. Sinto meu rosto ardendo uma vez que processo suas palavras, tento rir, mas sai mais um sorriso forçado do que risada.

— Que? Não. Eu não – falo sem transpassar absolutamente nenhuma confiança.

— Que pena – ele diz sorrindo. Então se aproxima de mim, tento me esquivar mais uma vez, mas dou com a parede da pista de dança, ele se aproxima do meu ouvido novamente para que eu o escute. – Por que eu sou.

Viro meu rosto na direção dele perplexo. Ele sorri e morde os lábios inferiores. Fecho minha boca, por que ficar de boca aberta é rude. Ele olha para meus lábios, não me movo, não sei o que espero, quero e ao mesmo tempo não acredito que ele está falando sério.

Então ele se afasta, da meia volta e canta o refrão da música alta junto de muitos outros dentro da casa de festa. Acho que minha cara de pastel afastou ele. Quem estou tentando enganar, devo ter parecido um gato aterrorizado, quem ia beijar uma pessoa que te encara como se fosse uma aberração? Por que se eu queria ser beijado?

O peso de meus ombros se esvai. Agora me sinto derrotado. Assustei o crush sendo esquisito, nem gay eu consigo ser direito. As músicas começam a falar sobre pegação e sobre como relacionamentos podem ser picantes. Queria não saber inglês nessas horas e não entender nada do que se canta.

Então o refrão fala sobre algo irresistível. Valentim parece saber todas as letras de cór. A dor do desejo é algo viciante, diz a música. É impossível não amar a forma como ele nos corrói, não se apaixonar pela sensação do que pode acontecer. Quero tanto beijar Valentim.

Uma garota de cabelos curtos e camisa preta com uma garrafa de cerveja na boca se aproxima dele e ambos começam a berrar a música um para o outro, como se já se conhecessem e estivessem falando a letra um para o outro. Aquilo me incomoda. uma completa estranha consegue interagir com ele melhor do que eu.

Então uma menina toca meu braço e sorri para mim. Ela fecha os olhos e vem para cima de mim, jogando seu rosto contra o meu. Eu esquivo. Na verdade tenho bons reflexos para esquiva. Não vou beijar uma garota completamente estranha, sabe se lá onde a boca dela passou. Vai que é fumante.

Acabo dando uma volta na pista por conta da garota beijoqueira e tenho que encontrar Valentim novamente. Não quero ficar sozinho. Ele está com a mesma menina de antes, ela tem a mão na cintura dele e isso me irrita muito. Na mesma hora, vou em direção a eles ao som de sweet dreams ( brincadeira, está tocando Fall Out Boy, mas é uma das minhas músicas favoritas, então sei a letra e eu poderia estar gritando o refrão dela com ele), nem penso direito, apenas empurro a menina de perto dele e canto o refrão de irresistible para Valentim.

Ele ri um pouco, mas canta comigo. Quando percebo meus olhos já estão completamente vidrados nos dele, a música muda, não sei mais a letra, não quero largá-lo. Os olhos dele então me percebem ali, ele aproxima o rosto do meu, passa seus dedos por minha nuca e me puxa para um beijo.

Ponho minha mão em seu peito, surpreso.

— Se ficar me encarando assim, vou começar a achar…

— Talvez eu esteja – respondo.

— Afim de mim? É meio gay isso.

Eu o beijo novamente. Talvez eu seja ambos. Se não for, só quero beija-lo de novo, quero fazer direito. Sinto a língua dele na minha, a minha na dele, beijo até onde meu fôlego permite. Que merda, estou adorando, seu hálito tem gosto doce de energético.

Ele passa a mão pela minha cintura, seguro a dele. O resto da festa passo em seus braços.

Naquele dia, ele me levou a um lugar que jamais imaginaria que existisse.

 

*

 

Pouco tempo depois, comecei a frequentar sua casa. Ficávamos no quarto dele com a porta aberta assim dava para ouvir as músicas da Verônica, às vezes era Kpop, outras vezes eram músicas de filmes e séries da Disney. Agora tocava Hero de Sterling Knight. não vou mentir não, adoro.

— Como suspeitou? – pergunto.

— Que o que? – diz Valentim deitado na mesma cama que eu. Estamos lado a lado em uma cama de solteiro encarando o ventilador de teto.

— Que eu era… diferente – suspiro. – Gay.

— Lembra que você não tirou o olho de mim na festa? Então, ou eu tava com uma tarântula na cara ou você tava bem afim de mim. Sendo que a segunda opção já qualifica você como um dos garotos do Vale.

— Não! Mas antes disso. Você pegou na minha mão bem antes da gente entrar na festa!

— Ah, eu não fazia ideia. Fiz aquilo só pra gente entrar mesmo – Me levanto da cama encarando ele sério. Não acredito que ele deu em cima de mim sem saber que eu era gay

— Mentira.

Ele se senta na cama também.

— Não é mentira. Você parecia que precisava de alguma diversão, eu só estava brincando, depois você começou a ficar me olhando como meus gatos olham pro aquário e eu pensei: ou ele quer me comer ou quer me beijar. Se bem que uma coisa até pode levar a outra, não é mesmo?

Ele aproxima o rosto do meu com um sorriso safado que me força a pegar uma almofada e dar na cara dele.

— Eu precisava! Mas você não me conhecia nem nada. E a noite depois da festa, na floresta ou vale… foi muito boa – digo com abaixando o rosto, ainda um pouco corado com a lembrança.

— Na verdade, Verônica me contou como te encontrou – Ele parece um pouco mais sério, também fico um pouco tenso. – Você não sabe, mas três anos atrás, quando eu estava com dezessete e verônica tinha cinco. Mamãe nos levou para um passeio de carro. Fomos no palácio imperial, tiramos fotos bobas na casa de Santos Dumont e ainda passamos na confeitaria Willemsen, que mesmo pequena tem os melhores bolos que já comi na vida. Foi uma tarde muito boa, na verdade, bem perfeita. Mamãe sempre ficava muito tempo no quarto trabalhando, então mesmo estando em casa não a víamos muito.

Ele suspira, depois limpa a garganta. Ele parece tão triste que seguro sua mão.

— Não conto muito essa história, desculpa – ele continua. – Quando estávamos voltando, passamos pela ponte. Ela desceu do carro, foi até o corrimão, passou entre as grades, subiu e se jogou.  Sem nenhum motivo aparente. Um tempo depois descobrimos que um remédio que ela estava tomando a deixava com impulsos instáveis. Mas pareceu tudo tão bem planejado, ela deixou até uma carta pra gente.

— Então o anjo que sua irmã fala…

— Foi a versão que eu contei pra ela. Nem sei se ela realmente acredita ou apenas se apega nessa versão para poder seguir em frente, mas para ela, te ver ali no mesmo lugar de onde nossa mãe esteve, deve ter dado algum gatilho.

Eu o abraço.

— Obrigado – digo como os olhos marejados. – Obrigado por ser meu anjo.


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