O rei do Pop escrita por Kaline Bogard


Capítulo 2
Esse momento é dele


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!!



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Aburame Shino era um homem de hábitos regulares. Ele herdou o jeito soturno do pai, assim como ganhou aquele apartamento quando Shibi se aposentou e foi para o campo, o prazer de estudar insetos sendo agora relegado a mero hobby.

Shino continuou morando sozinho no grande apartamento em Tokyo, trabalhando na conceituada Toudai como professor pesquisador.

O bairro era bom. Tinha uma estação de metrô perto, apesar de preferir ir trabalhar de carro. Também havia uma Konbini aberta vinte e quatro horas por dia, a vizinhança era tranquila. Não podia reclamar de nada.

Acordava cedo, lia o jornal e fazia as palavras cruzadas. Tomava seu café da manhã e ia para a faculdade.

O laboratório de Entomologia desenvolvia um projeto ousado e revolucionário: a criação de nanodrones sem-inteligentes que desempenhariam a função das abelhas. Com esse pequeno inseto desaparecendo da terra, centenas de outras espécies desapareceriam também. Inclusive a raça humana.

Se tivessem sucesso, salvariam a humanidade da extinção. Ou, ao menos, adiariam um pouco mais esse triste evento.

A equipe era pequena, mas dedicada. Aburame Shino era o cientista responsável pelo projeto, seus artigos publicados traziam alvoroço ao meio científico. Era cogitado que recebesse uma cadeira no corpo docente. O Nobel era a cada dia uma possibilidade real.

Geralmente chegava em casa ao cair da tarde. Preparava chá de pêssego, que preferia morno e terminava o dia revisando assuntos na internet ligados à sua área de atuação.

Morava naquele prédio desde a sua inauguração, duas décadas atrás, época em que era pouco mais que uma criança. a construção era relativamente nova em comparação as demais ao redor, principalmente em comparação ao prédio que dava de fundos com aquele.

Shino o achava uma aberração em termos de arquitetura, construído no início do boom populacional que lotou a capital do país, e o projetista tentou inovar já prevendo a falta de espaço que enfrentaram.

Como resultado, cada apartamento era um cubículo ridículo de tão pequeno. Sem sacada, quase uma lata de sardinhas. E janelas de vidro enormes, quase ocupando toda a área da parede dos fundos, porque assim se tinha a ilusão de ambiente mais claro e arejado. Caso contrário seria impossível habitar aquilo.

O prédio de Shino tinha sacada que dava direto para esse outro. Mas isso significava correr o risco de ter uma visão panorâmica de todas as quitinetes abaixo do seu andar.

Odiava ir tomar um ar fresco e pegar os moradores desses cubículos em sua vida íntima. Sentia-se um observador indiscreto. Então evitava sair à sacada.

Mas tal decisão mudou radicalmente quando, uma noite, cerca de cinco anos atrás, Shino saiu para a sacada para estudar. Não conseguia dormir, por isso resolveu aproveitar a insônia de um jeito mais util.

Ele pegou alguns livros e foi sentar-se na sacada. Já que era tarde, os vizinhos de fundo deveriam estar dormindo, não?

Não. Não estavam.

Na quitinete abaixo do seu apartamento vivia uma família. E, para horror de Shino, naquela noite o marido estava batendo em sua esposa. Espancando era o termo melhor. A cena de terror foi tão impactante, que ele perdeu um segundo paralisado, tentando se convencer de que não era um pesadelo.

A vidraça dava uma visão panorâmica absurda, não escondeu nada. E graças a isso, Shino pôde ver a expressão assustada de dois garotinhos, filhos do casal, que presenciavam tudo aos prantos.

Não hesitou mais.

Ligou para a polícia, oficiais vieram e levaram o homem preso.

Shino soube depois que a esposa juntou as malas e foi embora dali. Uma semana depois, havia uma placa de “Aluga-se” na frente do prédio. E nunca mais soube algo daquela família.

Desde esse acontecido, volta e meia Shino ia para a sacada dar uma espiada nas quitinetes e no prédio ao redor. Não ia ignorar ninguém precisando de ajuda só porque não queria parecer um voyeur. 

A residência ficou vazia por alguns anos, até o começo do ano letivo anterior, quando um rapaz veio morar ali.

No começo, Shino não teve nenhum interesse por aquele desconhecido. O novo vizinho parecia padrão dessa geração baderneira, que acha que nasceu para revolucionar o mundo. Sempre que o via, estava desfilando sem camisa, como se sentisse um calor nível fusão do núcleo solar.  Ah, e era praticamente um alcoólatra, porque era mais fácil vê-lo com uma latinha na mão ou uma longnek do que com um copo de água. Ele e aquele loiro sorridente que ia tantas vezes à quitinete que parecia morar lá.

Bom, Shino sabia de alguns detalhes, mas não tinha interesse algum em ficar vigiando os vizinhos! Todas as vezes que saia na sacada e o rapaz do prédio dos fundos estava na cozinha, era por pura coincidência!

Não sentiu interesse nenhum em saber por que ele ficou tão desesperado no final do primeiro bimestre, época em que andava de um lado para o outro da cozinha, com um grosso livro numa mão e uma caneca de café na outra. Café!

Por aí se vê que incômodo era ter duas construções tão próximas uma da outra…

Uma vez, estava revisando um artigo que publicaria no período da faculdade. Era noite e estava um clima agradável para se sentar na sacada, quando a luz da cozinha da quitinete em questão se acendeu e o vizinho apareceu na janela.

Shino ficou chocado.

O garoto tinha feito dois grandes triângulos vermelhos no rosto, um em cada bochecha. Estava uma graça, mas Shino implorou aos deuses para que não fosse tatuagem definitiva. Seria uma pena se aquele rosto bonito ficasse marcado para sempre.

Aqui foi o ponto em que o choque se elevou a outro nível. Compreendeu o adjetivo que associou ao vizinho que nem sabia o nome! E que acenou pela janela, cambaleante. De vez em quando o desconhecido não tão desconhecido assim, notava a presença do vizinho do prédio de fundos e andar acima, e acenava. Mas bem de vez em quando mesmo.  A maior parte do tempo, simplesmente não parecia notá-lo na sacada. Ou era isso que dava a entender.

No outro dia, Shino acabou por fazer alguma hora na sacada, para comprovar se era tatuagem definitiva ou não.

Ufa.

Não era.

Mas a ressaca parecia das bravas.

A medida que o semestre caminhou, Shino percebeu que o vizinho tinha o péssimo habito de não ter hábitos! O cara era uma bagunça, não tinha hora certa para nada, nem padrão ou rotina. Era intrigante. Como alguém consegue viver sem praxe?

Não tentou entender. Pensar no vizinho as vezes lhe dava dor de cabeça.

Percebeu que ele entrou em período de provas. O livro voltou para uma das mãos e a caneca voltou para a outra. Ele começou a dormir mais tarde. Perdia a hora graças a isso.

E Shino parou de sair tanto na sacada, com medo que algum outro vizinho o acusasse de ser stalker…

Se aguentou bem por um tempo, fingindo não sentir uma vontade quase irresistível de ir pra sacada tomar um ar. Tal desejo tinha nada a ver com a oportunidade de observar (ainda que rapidinho) o garoto da quitinete - apelido conveniente que deu ao estranho.

Resistiu o quanto deu! Bravamente!

Até que um dia a vontade venceu. Pegou uma kobati cheia de chá verde, quente e amargo; alguns biscoitos de gengibre e saiu na sacada.

A janela da quitinete estava aberta, como de costume. Não havia ninguém no cômodo e Shino relaxou. Poderia tomar seu lanche com calma, degustando o ar fresco de fim de tarde, antes de voltar para analisar o resultado de testes com os nanodrones.

A paz foi apreciada. E curta.

Pressentiu um movimento no prédio do outro lado. Os olhos se moveram sem que controlasse, certos de que veriam o vizinho adentrar na cozinha, só não esperava que fosse daquele jeito.

O garoto entrou deslizando de costas.

Deslizando.

Como se fosse aquele cantor pop norte-americano.

Shino ficou tão chocado, que se paralisou no lugar. Quando começou a se recuperar, o vizinho girou sobre os calcanhares, veloz. O kobati quase escapou das suas mãos com o que assistiu: o rapaz agitou os braços de modo descoordenado, as pernas também. Parecia um tipo de convulsão…

Shino chegou a dar um passo para trás, pensando em ligar para a emergência.

Só não o fez por causa do solo de bateria.

Okay, não era uma convulsão. Definitivamente.

Seu vizinho batia em uma bateria invisível, com direito a efeito sonoro e tudo o mais. Não estava perto o bastante para ouvir, e pelo que assistia da cena, dava graças aos céus por isso.

Pensou que nada mais o surpreenderia. Que inocente.

O vizinho se moveu rápido pela segunda vez, um movimento felino. Shino quase engasgou quando ele agarrou o meio das pernas e deu um puxão nos… instrumentos íntimos. A outra mão se ergueu no ar, o dedo indicador apontando pro teto. E, por tudo que fosse mais sagrado, Shino teve certeza que ele desafinou um “aauuuu”.

Antes que se recuperasse do show particular, todo ofegante, o garoto abriu os olhos e se deu conta que não estava sozinho na cena.

O tempo parou e a troca de olhares pareceu durar duas eternidades.

Então o pobre coitado fez uma cara tão engraçada, mas tão engraçada, que Shino teve que dar um gole no chá, para não rir.

Ele sabia que rir seria a morte da dignidade alheia. E uma morte horrível, diga-se de passagem.

Mordeu um biscoito.

A distância era grande demais para ouvir qualquer coisa, mas não para que notasse o desconforto. Até mesmo o rosto jovial corando violentamente.

Seu vizinho deu-lhe as costas e sumiu das vistas, ainda agarrado ao vizinhinho junior e com o dedo apontando para cima.

Shino deu mais um gole no chá. Se ele não fosse um Aburame, teria se sentado no chão para chorar de tanto rir. Se conformou em terminar o chá com biscoitos e ir dormir. Queria ver seu vizinho no outro dia. Como ele se comportaria?

De um jeito imprevisível. Claro.

No dia seguinte a grande janela de vidro estava coberta com um pano cheio de estampas de bichinhos, para a decepção de Shino. Ele não sabia o que era pior: a forma que o rapaz escolheu para esconder a vergonha ou a própria decepção com o desfecho do caso! Desde quando estava tão interessado na vida alheia?

Desde que o desconhecido se tornou parte da rotina, ainda que sem saber disso. Shino não podia mais se enganar ou negar os fatos. Estava encantando pelo garoto. Usava desculpas e subterfúgios para observá-lo de longe, satisfeito apenas com o que encontrava na distância, pois isso era melhor do que nada.

Mas até esse “nada” lhe foi negado.

Queria não se importar. Mas querer não é poder.

A medida que as férias de verão avançavam, ele resolveu fazer algo arriscado e totalmente fora dos padrões “Aburame” ao pegar uma folha de papel e traçar ideogramas com a caligrafia rebuscada.

Pregou o papel na parede externa da própria sacada, esperando que o vizinho espiasse de vez em quando e o pedido o tocasse. Ele enxergaria a mensagem e entenderia?

Pelo jeito não, pois nada mudou no decorrer da semana.

Os dias de folga se aproximavam do fim. A janela continuava fechada e coberta. E Shino se conformou em não ter mais aquela parte da rotina que fugia do previsível, que o conquistou pela espontaneidade e jeito único. Parte da rotina que podia fazer um solo de bateria e grudar em partes pouco pudicas imitando um verdadeiro rei do Pop. E que usava cortinas de monstrinhos para esconder a vergonha de um flagra inesperado.

Desistiu do show diário que era a figura daquele vizinho em sua vida.

Até que numa sexta-feira, o último dia das férias, quando preparava tudo para voltar ao laboratório de pesquisas e retomar os testes com os nanodrones, ele teve uma surpresa que não esperava mais ver.

A cortina foi tirada e a janela estava aberta.

Parou um segundo na sacada, o kobati com chá quente em uma das mãos. Não esperava mais ver aquela cena. Ficou feliz, verdadeiramente feliz. Só por ver aquela janela aberta novamente.

Teria sido resultado do seu gesto ousado?

Quis acreditar que sim.

Foi até a parede da sacada e debruçou-se um pouco, para puxar o papel que tinha colado ali.

Mou ikkai.

Simples assim.

Um pedido singelo e direto.

Shino só queria ver aquele garoto outra vez.


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Notas finais do capítulo

Mou Ikkai - é o "bis" no Japão.

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O próximo é o último! ♥



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