Dançando com o demônio escrita por Lyria Danis


Capítulo 1
Mata-me


Notas iniciais do capítulo

Eu não sei o que esperar de vocês. Escrevi isso em uma espécie de surto, e depois pensei "por que não?" Um conto.
A capa é porque o Nam Goong Min é o rei dos vilões.



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Aquele dia deveria ser normal.  Eu acordei e saí para a faculdade, e de lá me encontrei com colegas de curso para irmos a uma escavação. Deveria ser algo comum; apenas mais um trabalho extraclasse. Eu olhava para todos e enxergava sombras, que se transformavam em formatos abstratos, e calmamente eu admirava a dança que cada sombra era.

Naquele dia, finalmente eu subi naquela caverna. Se eu tivesse algum sonho, seria de realizar uma pesquisa arqueológica num local como este. Se eu tivesse algum sonho, eu teria acabado de realizá-lo.

As paredes rochosas e irregulares eram belas, perfeitas nos seus desníveis e ondulações. Os desenhos rupestres na parede, quase apagados, transmitiam mensagens de tempos imemoriais.

Andei cuidadosamente, olhando o chão que pisava; eu não deveria prejudicar as lembranças de um povo que não mais existia.

Eu vi uma pequena elevação no chão e consegui identificar que aquilo poderia ser um achado arqueológico. Então usei minhas ferramentas para começar a escavar. Primeiro, melhorei o acesso ao possível objeto; segundo, diminuí as camadas de terra sobre ele. Por fim, consegui achá-lo.

Era uma flauta de ossos. Praticamente impossível de se ter ali, mas eu consegui encontrar. Após limpar a flauta com uma escova, percebi como ela era detalhada.

Cheia de pequenos desenhos quase apagados pelo tempo, esculpido nos ossos rachados. Belos, mas talvez jamais tão quanto já foram.

Eu deveria ter chamado imediatamente meu professor, que estava supervisionando, para informar o achado. Este sitio arqueológico está para ser fechado e tudo ser derrubado para virar um prédio; a não ser que encontremos algo que impeça isso de acontecer. Eu encontrei, mas não consigo tirar minhas mãos disso.

Estes ossos deveriam ser de animais, mas o brilho pálido que se mantinha sobre cada detalhe da flauta me fazia pensar que poderia ser humano. A consistência do osso, a forma que se manteve...

Caso fosse humano, que tipo de humano morreu para dar origem a esta flauta?

Seria, se tornar um instrumento na morte, uma honra ou um castigo?

Esta flauta seria para encantar ou para comunicar?

Talvez eu fosse mais feliz se fosse um instrumento a ser usado pelos outros. Uma existência simplória, decididamente simplória. O que eu preciso ser para não machucar ninguém.

Encaixo meus dedos nos orifícios que saem ar, e posiciono a flauta próximo a minha boca, como se fosse tocá-la. Claro, caso meu professor estivesse aqui, isso nunca seria possível – mas aqui pode ser um humano transformado em musica, e eu estou testemunhando isso.

Não sombras. Som que se vai no ar – que se perde.

E que me acha. Ali, na minha frente, eu o vi. Imediatamente também, o reconheci. Não era difícil, afinal, que o dono desta flauta viesse me cumprimentar.

Eu o observei naquele momento, quando ele apareceu na minha frente. Seus olhos eram pretos e expressivos de pura malícia. Sua pele branca, e o cabelo liso e metodicamente cortado me fazia crer que ele era alguém importante quando morreu.

Ele se aproxima de mim e sorri, e eu sabia para o que ele tinha vindo. Eu sabia que ele seria a minha morte.

— Você me chamou.

A voz dele saiu rouca, como que há muito não usada; saiu bem articulada, mas repleta de deboche nas entrelinhas.

Ele se aproxima de mim. — Tola humana.

Ser humano é ser tolo. Confirmo isso, pois cada vez que ele se aproxima, eu me sinto fascinada. Eu sabia que ele seria minha morte, mas não me afasto. Pelos céus, nunca desejei tanto isso.

Assim como uma benção do diabo, ele se aproxima e me pede um desejo. — Faça seu pedido, mulher. — Sua voz era carregada de sotaque.

Talvez, ele estivesse aqui há muito tempo.

Talvez, ele estivesse tão cansado quanto eu.

Percebo minha garganta seca; e finalmente me dou conta de que estou com medo; mas mesmo com minha voz fraca de tolices, eu não falho em dizer meu desejo.

— Por favor, me deixe parar de viver. Mata-me.

Percebo que seus olhos negros se abrem mais, numa demonstração sentimental que eu não esperava de um espírito. A flauta queima na minha mão, mas, mesmo que doloroso, eu mantenho o toque. Após alguns segundos percebo que a flauta havia deixado uma marca na minha mão.

— Por quê?

Eu, para a vida, era uma expectadora. Calma e bem comportada, que reagia conforme a dança das sombras, mas que apenas esperava o espetáculo terminar.

— Eu olhei ao meu redor, e não poderia pensar num local mais adequado.

Ele balança a cabeça, e faz uma expressão que eu não consigo identificar; contudo, certamente diabólica.

— Mas não hoje. Você me intriga.

Finalmente, consigo deixar sair dos meus pulmões o ar que eu não sabia que estava segurando. Minha visão nubla, e o que eu consigo ver são lembranças misturadas de um objeto possuído, e um sorriso de alguém já morto.


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