Um Caminho Para O Coração escrita por Sill Carvalho, Sill


Capítulo 8
Capítulo 07 – Uma Amiga Real


Notas iniciais do capítulo

Antes de tudo, quero agradecer a Lili Swan pela recomendação, não só nessa fic como também em Um Instante No Tempo.
Agradeço também a Ella Brunet pela recomendação em Um Instante No Tempo.
Obrigada meninas, mesmo. O capítulo é dedicado a vocês. Espero muito que gostem :)

A todos, uma boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/757879/chapter/8

Naquela noite, Emmett ficou por muito tempo sozinho do lado de fora, sentado no banco sob o caramanchão. Momentos após o início de uma chuva fina, finalmente resolveu levantar e ir para dentro de casa. A lata de cerveja vazia ficou largada no banco. Não levou muito tempo para que estivesse no gramado destruído, rolando de um lado a outro.

Ele subiu a escada como não suportasse o peso do próprio corpo, mas era o sofrimento do vazio da ausência de Sarah que mais pesava. Quando chegou ao quarto, levou mais alguns minutos observando o violoncelo que ela tocava, relembrando um pouco mais o passado que jamais pôde deixá-lo.

Pela primeira vez em alguns dias, ele dormiu na própria cama e não no sofá da sala. Assim, quando Olívia acordou pela manhã e não o encontrou no sofá, voltou ao segundo andar correndo para se certificar que durante toda a noite não esteve sozinha na casa.

Ela abriu a porta da suíte do pai bem devagar. Sentiu medo de ser repreendida, mas precisava verificar. O encontrou jogado na cama, deitado de bruços, um dos braços pendendo para fora do colchão. O porta-retratos com a foto de Sarah outra vez estava ao lado dele.

A tristeza apertou o coração de Olívia, e, com os ombros caídos, ela tornou a fechar a porta, sem fazer barulho.

Voltou ao térreo, e outra vez seu café da manhã foi cereal com leite, o que não era nenhuma surpresa. Para o lanche, um sanduíche de pasta de amendoim e uma banana. Banana não era uma fruta de que gostasse muito, mas como não tinha opção, apenas a pegou. Ter uma banana, ainda que não gostasse muito, era bem melhor que ficar com fome.

Guardou o embrulho de papel dentro da mochila e saiu para o jardim, tomando cuidado com as raízes expostas, esmagando matos e ervas daninha com os pés. A mochila barata, que o pai trouxera certa noite sem se importar se gostaria de sua cor escura.

Emmett acordou e caminhou até a janela, passando pelo violoncelo com cuidado. Olhando através do vidro, além do jardim destruído de Sarah, avistou a figura miúda de Olívia. A menina usava uma touca vermelha na cabeça. Uma chuva fina caía sobre ela. Notou que falava sozinha. Na verdade, sabia que se tratava da amiga imaginária. Aquilo o incomodou.

Ouviu o barulho do motor do ônibus e logo o veículo amarelo apareceu na rua. Havia algumas poucas crianças no interior dele, aparentemente mais velhas que Olívia. Bem mais agitadas e faladeiras. Ele viu a filha entrar no ônibus, com uma mulher ao volante, e sentar, sozinha, em um dos bancos ao lado da janela.

Percebeu ela olhar em direção a casa, como buscasse sua presença, ele rapidamente se afastou, soltando a cortina atrás do vidro. Olívia abaixou a cabeça, olhando as mãos unidas sobre o colo. O ônibus partiu, e Emmett já não estava na janela para vê-lo se distanciar.

Após um café forte e um cigarro, guardou algumas ferramentas na carroceria da caminhonete e saiu para o trabalho.

[…]

Assim que saiu do ônibus escolar, Olívia correu com a mochila nas costas até a biblioteca. Ao se deparar com a porta fechada, sentiu-se abandonada outra vez. Talvez houvesse apenas sonhando com a moça gentil que se tornou sua amiga no dia anterior e até mesmo lhe oferecera o almoço. Talvez fosse como Arco-íris, que ninguém mais via ou ouvia, mas diferente de Arco-íris, essa apareceu apenas uma única vez.

Alice parou ao seu lado diante a porta fechada da biblioteca.

— A substituta de Rachel ainda não chegou. Se quiser devolver ou pegar algum livro emprestado, é melhor voltar mais tarde, querida.

Olívia olhou brevemente a mulher ao seu lado e sacudiu a cabeça, aceitando a sugestão. Novamente de cabeça baixa, saiu andando pelo corredor a caminho da sala de aula onde outras crianças acabaram esbarando nela sem querer.

Para Olívia as horas pareceram se arrastar mais que de costume. O horário do almoço parecia nunca chegar, mas chegou. Ela se encaminhou para o refeitório levando o lanche que trouxera de casa. E, antes de escolher um lugar para sentar, ouviu outras crianças mencionarem a substituta da senhorita Rachel na biblioteca. Olívia desistiu de ficar ali e saiu para o corredor levando o embrulho de papel na mão.

Caminhou ansiosa, um pouco apressada, e, ao avistar a porta da biblioteca aberta, sentiu um novo tipo de emoção pulsar seu coração magoado.  

Entrou na sala, mas não encontrou Rosalie a vista. Numa das primeiras mesas de estudos, encontrou um garoto do terceiro ano sentado com um livro aberto. O menino de cabelos escuros, usando óculos de grau, com frequência deslizava os dedos nas folhas. Se ele notou sua presença, não demonstrou.

Estava virando as costas, pronta para voltar ao refeitório, quando ouviu chamar seu nome.

— Olívia? — ela parou e olhou para Rosalie, contente que estivesse ali, e que o menino também podia vê-la, afinal levantou a cabeça do livro para olhar Rosalie, quando ela lhe entregou mais um livro. Ele agradeceu. Rosalie acariciou seus cabelos escuros antes de se afastar e se dirigir a Olívia.

— Não vá ainda — pediu. Quando estava perto o bastante, se abaixou para ficar na altura de Olívia. — Pode me esperar um minuto, sentada à mesma mesa de ontem?

Olívia concordou. Rosalie ficou observando ela se movimentar com timidez para os fundos da biblioteca.

Ao encontrar-se com ela pouco tempo depois, percebeu o embrulho de papel que segurava sobre a mesa e a banana ao lado dele.

Olívia olhou na direção dela, logo que sentiu sua presença. Em seguida, olhou o embrulho de papel sobre a mesa e novamente para Rosalie.

— Eu trouxe um sanduíche de pasta de amendoim para dividir com você, e também essa banana.

Rosalie se sentiu tocada com a atitude dela em querer dividir o lanche. Automaticamente, estendeu a mão fazendo um carinho no rosto da menina, que novamente não soube como reagir a seu gesto.

— Fico muito feliz que hoje seu papai tenha se lembrado do seu lanche, querida. Me diga, você tomou café da manhã hoje, antes de sair de casa?

— Eu comi cereal com leite.

Ao menos dessa vez o pai tinha lhe dado algo o que comer antes de deixá-la na escola, pensou. Fez mais um afago no rosto de Olívia, consciente de que tão poucas vezes alguém lhe ofereceu carinho. Em seguida, colocou um pote plástico sobre a mesinha de estudos.

— Você não vai precisar dividir seu lanche comigo, Olívia. Eu trouxe o almoço.

A menina olhou a vasilha com desanimo. É claro que seu lanche era muito pouco perto do que ela tinha ali dentro.

Rosalie notou seu olhar.

— Falei isso, porque trouxe almoço para duas pessoas. — Ela pôs a mão sobre a vasilha. — Este aqui é para você. O meu, vou comer só depois, tudo bem?

Olívia quase sorriu, balançando a cabeça de forma positiva.

Rosalie desembrulhou o garfo descartável do guardanapo e entregou na mão dela.

— Você sabe que não devemos comer aqui dentro, não é querida? Então, se alguém aparecer, você vai ter de esconder.

Olívia anuiu.

— Eu poderia mandar você ir comer no refeitório junto com as outras crianças, mas, a verdade é que não quero que vá. — O rostinho de Olívia se iluminou, porque ela queria ficar junto, diferente do papai e da Sra. Smith que faziam de tudo para mantê-la à distância.

— Quero conversar com você. Conhecer-te melhor. — Rosalie estendeu a mão sobre a mesinha alcançando o queixo de Olívia. — Quero muito entender o porquê desse rostinho tão triste. Mas, não se preocupe, vou deixar você almoçar antes. — Ela recolheu a mão, para abrir a vasilha em seguida. A comida estava separada em pequenas divisórias. Olívia reconheceu cada alimento no momento em que seus olhos pousaram neles; cenouras, milho-verde, salada de batata e tirinhas de frango frito empanado.

Os olhos de Olívia brilharam com satisfação e ansiedade.

— Obrigada — agradeceu, sem deixar de olhar a comida.

— Eu tenho mais uma coisa aqui comigo — Rosalie olhou em volta antes de tirar do bolso da jaqueta jeans uma caixinha de suco de uva. Se curvando sobre a mesa, cochichou: — Precisava de um esconderijo para essas coisas. — Ela logo percebeu a curva acanhada de um sorriso marcar os lábios de Olívia. — Agora coma, querida. Ainda quero te dar mais uma coisa, mas só depois de você terminar a comida.

Olívia capturou com o garfo uma pequena cenoura e mastigou com gosto. Depois, uma tirinha de frango frito, assim, um a um, todos os alimentos foram desaparecendo da vasilha.

— Muito bem, Olívia! Você comeu tudinho.

— Estava tudo muito gostoso, senhorita Hale — a pequena confessou, com olhar envergonhado.

— Nada de senhorita Hale. Só Rose ou Rosalie.

— Rose — Olívia aceitou.

Rosalie sorriu para ela.

— Agora que você já comeu tudo, acho que posso lhe entregar o que ficou faltando.

— Foi a sua mamãe que fez essa comidinha gostosa? — a menina questionou, de repente.

— Não, meu bem. Fui eu mesma quem fez.

— Você cozinha muito bem.

— Fico feliz que tenha gostado, porque fiz pensando em você. — Outra vez ela pôs a mão dentro da jaqueta jeans e tirou de lá uma barra de chocolate. — Vi que ficou trise aquele dia, no mercado, porque a senhora que estava com você não te deixou levar um desses. Até quis te entregar naquele mesmo dia, só que não voltei a encontrá-la.

— Você comprou um chocolate pra mim?

— Sim, eu comprei. Na verdade, era mais, só que o vovô comeu um pouco e eu também. Você me desculpa por isso?

Finalmente, Olívia sorriu para ela. Seu sorriso fez Rosalie sentir-se banhada em raios de sol, numa linda manhã de primavera; acolhedor, uma promessa de vida.

— Vem cá — Rosalie abriu os braços, ainda sentada à cadeira. A menina se levantou e foi para junto dela, levando o chocolate na mão. Rosalie lhe deu um abraço apertado e a colocou sentada na perna.

— Obrigada — Olívia agradeceu, olhando do doce para ela. Os olhinhos brilhando.

— Você não precisa me agradecer. — Rosalie segurou o rostinho dela entre as mãos e lhe beijou a testa. — Fiz isso de coração. — Então, olhou bem de perto no rosto de Olívia. — Você é uma garotinha linda, sabia? Uma bonequinha.

Pela primeira vez, Olívia se sentiu realmente bonita. O elogio sincero foi para seu coraçãozinho como água a molhar uma flor em solo arenoso; trouxe-lhe esperança e vida.

Ela passou a mão de forma delicada nos cabelos louros de Rosalie.

— Você também é muito bonita. E bondosa também.

Rosalie segurou na mão dela, depositando um beijo.

— Olívia, você ontem me disse que a senhora que estava no supermercado com você não era sua avozinha. Quem é ela, então? Eu não gostei muito de como ela agiu com você. Vi que bateu em sua mão quando tentou pegar o doce.

A lembrança daquele momento obrigou Olívia abaixar a vista, envergonhada.

— Ela mora perto de minha casa.

— Ela é sua vizinha, então?! — presumiu Rosalie.

A menina anuiu.

— E por que você estava com ela? Onde estava o seu papai?

— No trabalho.

 — Mesmo no fim de semana?

— Ele trabalha de fim de semana também, às vezes.

— E quando você chega da escola, quem cuida de você?

— A Sra. Smith.

— A mesma mulher, ok. E ela é legal com você? Quero dizer, quando estão em casa?

Olívia abaixou o olhar. Rosalie tocou o queixo dela para que olhasse em seus olhos.

— Querida, você pode falar comigo sobre qualquer coisa.

Os olhos de Olívia encontram os dela novamente. Parecia pronta para falar, mas, quando estava abrindo a boca, alguém chamou por Rosalie da entrada da biblioteca.

— Querida, continuamos a conversa em outro momento. Eu preciso ir agora — Olívia se afastou dela. E Rosalie se apressou em esconder as evidências do almoço clandestino. — Você pode levar o chocolate, ele é seu. Não se esqueça do seu lanche, meu bem, você pode sentir fome mais tarde.

Com o rostinho bem mais suave, Olívia recolheu o embrulho com o lanche que trouxera de casa.

Rosalie se curvou, plantando um beijo na testa dela.

— Agora eu preciso ir. — Ela deu alguns passos, e olhou para trás. — Por que você não escolhe um livro desses, ilustrados, para levar para casa hoje?

Pensando no que disse, Olívia olhou na estante os livros infantis. Envergonhada, não soube o que dizer. Ainda não conseguia ler. Estava tendo dificuldades em sala de aula. Apenas porque Rosalie olhava se aproximou de uma prateleira pegando um dos livros. Rosalie piscou um olho para ela, orgulhosa de como reagiu a sua sugestão.

Enquanto Rosalie se afastava, Olívia sentou-se à mesa e ficou olhando a figuras, imaginando sua própria história. Não levou muito mais tempo para que tivesse de voltar à sala de aula. Quando estava de saída, notou que Rosalie conversava com a professora do terceiro ano. Por não querer incomodá-la, saiu de lá sem se despedir. Ainda assim, Rosalie a viu, de canto de olho, sair levando apenas o embrulho de papel na mão. E ficou pensando o porquê de ela não ter requisitado o empréstimo do livro.

Dos alunos de sua turma, Olívia foi a primeira a entrar na sala de aula. Ela guardou de volta o embrulho na mochila e sentou-se em seu lugar. Uma a uma todas as outras crianças foram chegando e ocupando seus lugares, por último a professora, que os recebia na porta.

No final do horário letivo, as crianças começaram a deixar o prédio; algumas em ônibus escolar, outras de carro com algum parente próximo.

Rosalie caminhava pelo estacionamento, levando apenas a bolsa embaixo do braço, até onde estava estacionado seu carro quando avistou Olívia do outro lado, afastada das outras crianças. Pensou que pudesse falar então com ela um instante, quem sabe descobrir por que não pegou o livro.

Chamou por ela, mas por causa do barulho que as outras crianças faziam, Olívia não percebeu. Enquanto a observava a distância, esperou que fosse ao encontro do pai ou até mesmo da senhora mal-humorada que esteve com ela no supermercado. Em vez disso, Olívia subiu num dos ônibus amarelo. Outras três crianças entraram depois dela e logo em seguida o ônibus deixou o estacionamento.

Rosalie ficou pensando a respeito. Era estranho que nunca tivesse visto nenhum parente com ela. Uma vez que a menina havia partido, não tinha motivos para ficar parada ali. Acenou para algumas crianças que estavam de saída e logo depois entrou no carro deixando o local.

Por todo o trajeto até a casa do avô, esteve pensando em Olívia. Em que condições vivia? Qual havia sido a causa da morte da mãe e há quanto tempo isso teria acontecido? Por que estava sempre sozinha? Até mesmo em como era o pai dela.

Quando estacionou em frente à casa do avô, reparou que o carro dele não estava do lado de fora onde costumava deixar durante o dia.

Com a bolsa na mão, saltou do veículo e se encaminhou até a porta da frente, usando a chave reserva para abri-la. A casa estava silenciosa, mas aquecida. Na lareira ainda restava lenha crepitando, provavelmente, não havia muito tempo, seu avô esteve ali se aquecendo enquanto tomava uma xícara de chá. Mas, para onde teria ido? , pensou. Largou a bolsa num dos sofás e foi para a cozinha. Pensar que o avô tinha tomado uma xícara de chá diante a lareira, a fez desejar fazer o mesmo.

Foi ainda enquanto procurava as coisas para o preparo do chá que notou um bilhete preso à porta da geladeira por um imã no formato de bola de basebol. Ela se aproximou para lê-lo. Acabou descobrindo que o avô tinha ido comprar mais chá, porque o deles havia acabado. Assim, acabou preparando um pouco de café. E, com uma xícara fumegante na mão, voltou para sala de estar onde se sentou diante a lareira, recostada as almofadas que puxou do sofá.

No silêncio, os pensamentos a traíram. Entre um gole e outro de café, as lembranças da traição voltaram ocupar sua mente. Pegá-los na cama foi um golpe e tanto. Irina era sua irmã, e Royce o homem por quem estava apaixonada, ou ao menos pensava estar. Um relacionamento de anos, que acabou numa traição sórdida. Descobrir que a estavam enganando há tanto tempo foi ainda mais difícil. Na mesma semana veio à notícia da gravidez de Irina, seguida da pressa pelos preparativos de casamento. Como não bastasse, seus pais demostraram mais apoio a Irina e ao noivo que a ela que foi a enganada.

Não foi difícil as lágrimas estarem outra vez em seu rosto. E apesar do que dissesse ao avô ou a Isabella, não sabia se um dia poderia perdoar a irmã pelo que fez. De repente, percebeu que precisava da amiga, ouvir o que tinha a dizer. Considerando o horário, certamente não estaria disponível para uma conversa agora.

Sozinha na casa do avô, Rosalie ouvia apenas o crepitar do restante de lenha na lareira. O café acabou e ela nem mesmo se deu conta em que momento isso aconteceu. Afogando-se nas lembranças, não viu o tempo passar. Nem mesmo se incomodou com o escuro que tomou conta da casa quando a noite chegou. Somente quando Norman chegou com o carro na entrada de veículos, os faróis iluminando as paredes dentro de casa, causando sombras fantasmagóricas, notou o tempo corrido.

Ouviu o barulho de chaves na fechadura, e embora quisesse levantar para recebê-lo, não teve animo. Sabia que não deveria ter se deixado levar pelas lembranças ruins, mas não pode evitar. Agora estava com o semblante destruído. Sentiu vergonha de ter de olhar no rosto do avô e admitir que havia voltado a chorar por causa do que lhe fizeram Royce e Irina.

— Rose? — ele chamou ainda no escuro, a mão buscando o interruptor. — Está em casa? — as luzes se acenderam, ele logo a avistou no chão diante a lareira. A lenha havia acabado há bastante tempo. O rosto marcado por lágrimas secas e recentes, o nariz e os olhos vermelhos. A bolsa estava aberta ao lado dela e alguns lenços de papel amontoados no tapete. — Rose — ele se precipitou, largando o saco de papel com as embalagens de chá no braço do sofá, indo imediatamente para junto dela. De joelhos ao lado da neta, passou os braços em volta de seu corpo. Ele olhou para os lados, preocupado que alguém tivesse entrado na casa e feito mal a ela. — O que aconteceu, meu bem? Alguém esteve aqui? Por que estava no escuro? Por quê?...

— Desculpe-me, vovô... — ela conseguiu dizer entre um soluço e uma fungada. — Estou te desapontando. Estava aqui sozinha... e... voltei  a pensar nos motivos que me levaram a me afastar. Eu não queria... Eu queria ser forte, só que às vezes é muito difícil. Me sinto mal por desejar que minha irmã seja infeliz. Nós temos o mesmo sangue. Porém, isso não significou nada para ela quando se envolveu com o homem com quem eu iria me casar.

Norman limpou as lágrimas no rosto dela na palma da mão.

— Eu sei que disse que iria ser forte. Que não me deixaria desmoronar pelo que me fizeram, mas só que...

— Está tudo bem — garantiu Norman.

— Não — Rosalie murmurou. — Eu vou entender se o senhor quiser que eu vá embora, por ser uma tola.

— Isso não vai acontecer. Não vou mandá-la embora.

— Vai ficar decepcionado se me recusar voltar a ser voluntária na escola das crianças?

— Se for para ficar desse jeito, trancada em casa, sofrendo por quem não merece, então sim, ficarei muito decepcionado. — Ele desfez o abraço e a ajudou sentar no sofá. — Você me disse ontem que tinha gostado de ficar perto das crianças. O que mudou agora?

— Sim, eu gostei. Nada mudou.

— Então, por que está pensando em desistir?

— Estou confusa com tudo isso.

— Logo você não precisará mais ir.

— Eu sei.

— Você falou com a garotinha para quem levou o almoço hoje? Descobriu mais alguma coisa a respeito dela e da família?

Rosalie passou a mão pelo rosto. Enrolou os cabelos como fosse prendê-los, mas os soltou em seguida.

— Falei. Ela adorou tudo o que levei para ela hoje. O senhor precisava ver, os olhinhos brilharam. Mas ainda sei muito pouco sobre ela. A mãe morreu. O pai trabalha muito. A vizinha toma conta dela, algumas horas depois da escola. Vou tentar descobrir mais amanhã.

Norman anuiu.

— Isso quer dizer que vai voltar lá amanhã?

— É, acho que sim. — somente agora, Rosalie se lembrou do recado na porta da geladeira. — O senhor conseguiu comprar o chá? — Norman lançou o olhar à sacola de papel no braço do sofá.

— Sim, estão bem ali.

— Quem bom.

— Vou preparar um pouco agora mesmo. Por que você não vai lavar o rosto e me encontra na cozinha depois? Vou preparar o nosso jantar, também.

— Eu te ajudo — ela declarou se pondo de pé.

— Está bem. Vá lavar o rosto. Estarei esperando por você na cozinha.

[…]

Emmett chegou em casa ao anoitecer. Embora ainda fosse cedo, Olívia já estava na cama. A Sra. Smith aguardava por ele no sofá da sala. Não demorou em deixá-lo sozinho.

Ele jantou sozinho na cozinha e tomou uma lata de cerveja. Enquanto assistia tevê na sala de estar fumou um cigarro. Bem mais tarde, subiu ao segundo andar, tomou um banho e caiu na cama. Não demorou, estava sonhando com o funeral de Sarah tantos anos atrás.

No dia seguinte, acordou bem antes de Olívia e preparou um bule de café. Sentado na banqueta, tomou quase todo o café, olhando o jardim dos fundos pela janela sobre a pia da cozinha. A cerca continuava lá, quebrada. O céu estava encoberto, mas não garoava como no dia anterior.

Olívia entrou na cozinha, com a mochila nas costas, sendo tomada pela surpresa em encontrá-lo acordado tão cedo.

— Papai — murmurou.

Emmett girou o corpo na banqueta de modo a ficar de frente para ela. Nada diferente; Olívia continuava vestindo as roupas gastas e pequenas. Os cabelos bagunçados. Os olhos tristes que ele evitava olhar por muito tempo, era o lembrete da vida que vinham levando desde a morte de Sarah. Ele não aguentou, virou de costas outra vez.

— Tome seu café da manhã e vá esperar o ônibus.

Olívia se aproximou da geladeira, sem dizer uma só palavra. Ele ouviu os movimentos dela enquanto se preparava para tomar o café da manhã, mas não teve coragem de olhar para ela outra vez.

Quando pensou que tinha tudo sobre controle, Olívia chamou sua atenção.

— Faz panquecas, papai?

— Acabou a farinha.

— Eu vi que tinha farinha no armário ontem. — Ela apontou para o armário no alto. — Estava bem ali.

— Eu já disse que não.

— Por favor, papai.

— Cale a boca — ele disparou, de repente. Olívia se assustou, o salto que deu fez com que a garrafa de leite virasse sobre a mesa derramando na superfície o líquido branco, escorrendo para o chão.

— Limpe isso — ele avisou se levantando da banqueta.

Olívia recuou, embora não estivesse tão perto assim dele, assustada. Emmett desapareceu da cozinha pela porta que dava na garagem.

— Se apresse! — ela o ouviu dizer. — Se hoje perder o ônibus vai ficar em casa sozinha.

Olívia se apressou em pegar o pano e limpar o leite derramado da melhor forma que pôde. Ouviu a porta da garagem sendo aberta, e correu até lá para ver se o pai ainda estava em casa.

Ele estava dentro do carro, descansando a cabeça no volante. A buzina apertou sem que tivesse a intenção de fazer isso, então ergueu a cabeça. Olívia viu lágrimas no rosto dele. Ela não sabia o que pensar. Nunca tinha visto o papai chorando. Ele era triste, assim como ela, já tinha notado, mas não o tinha visto chorar ainda.

Sentindo-se culpada, sussurrou:

— Eu não quis derramar o leite, papai. Desculpe — Ela se afastou da porta e, com o pano sujo de leite na mão, voltou para junto da mesa. Comeu o cereal depressa, para não perder o horário do ônibus.

Quando saiu para o jardim, olhou a garagem aberta, o pai dentro do carro. Ela tropeçou e por pouco não caiu de cara no chão.

Emmett a viu no ônibus escolar. Quando o veículo desapareceu de vista, saiu com o carro da garagem, manobrou até a rua e seguiu para o trabalho.

Sonhar com o funeral de Sarah deixava tudo ainda mais difícil, porque nunca chegou realmente se recuperar do dia que, para receber uma em seus braços, teve de dar adeus à outra.

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Obrigada a quem comentou no capítulo anterior.
Vejo vocês nos comentários?
Sill