Um Caminho Para O Coração escrita por Sill Carvalho, Sill


Capítulo 13
Capítulo 12 — Tente Me Impedir


Notas iniciais do capítulo

Oi gente!
Antes de qualquer coisa, quero agradecer a Vaaz e a Lili Reed por terem recomendado a fic, e a Lili, novamente, pela recomendação em Um Lugar Para Ficar. Muito obrigada meninas, mesmo. Eu adorei! O capítulo de hoje é dedicado a vocês, espero muito que gostem.

Obrigada, também, a todas vocês que deixaram um comentário no capítulo anterior.
Tenham todos uma boa leitura!



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Naquela tarde, Rosalie deixou a escola primária, levando os poucos pertences que manteve durante o pequeno tempo que contribuiu com a instituição. Seu tempo, rodeada de crianças das quais aprendeu a gostar, havia chegado ao fim.

Saber que tinha sido a causadora da tristeza recente de Olívia, com a notícia de seu afastamento da escola, foi suficiente para deixá-la triste também. Precisava dar um jeito de reverter à situação. Encontrar um jeito de estar perto dela, ainda que o pai da menina fosse um empecilho.

[…]

Olívia ainda chorava quando o ônibus escolar a deixou próximo de casa. Novamente, precisou esperar pela Sra. Smith. Mas, dessa vez, em vez de ficar sentada na varanda como costumava fazer, correu para o jardim dos fundos e se escondeu na casinha de bonecas ao lado do caramanchão.

Largou a mochila num canto, se encolhendo no lado oposto, abraçando os próprios joelhos, deixando o rosto roçar na marca de poeira que ficara ao rastejar para o interior da casinha. O peso do abandono esmagando seu pequeno coração, enquanto lágrimas lhe molhavam o rosto salpicado de minúsculas sardas.

[…]

Quando Rosalie chegou à casa do avô, não o encontrou em lugar algum, logo imaginou que pudesse ter saído para ir ao mercado. Para passar o tempo, acabou preparando um chá, e tomou sentada na bancada da cozinha, pensando o tempo todo na situação de Olívia.

[…]

Ao chegar à casa de Emmett e não encontrar Olívia esperando na varanda como de costume, a Sra. Smith ficou bastante irritada, imaginando o que a menina estaria aprontando. Nada disposta a surpresas. Deu a volta no entorno da casa, chamando pelo nome dela, sem obter resposta em retorno. Se Olívia a ouviu, não quis revelar onde se escondia. Foi somente ao se aproximar do caramanchão que a ouviu falando. Mais alguns passos à frente, reconheceu que estava na casinha cujo suas paredes se encontravam encobertas de limo de invernos anteriores.

Seu punho se ergueu, e ao abaixar atingiu o teto da casinha grosseiramente, exigindo a atenção da criança lá dentro. Tomada pelo susto, Olívia gritou. Logo em seguida o silêncio tomou conta do local como tivesse encoberto a boca com as mãos. Não levou muito tempo, a Sra. Smith começou bradar com ela.

— Por que não estava esperando na varanda? Sabe que não gosto de ficar procurando por você. Não tenho tempo para isso, menina abusada. Parece que está sempre buscando um modo de irritar as pessoas.

Num sussurro, Olívia respondeu:

— A senhora nunca gosta de nada.

— Anda logo! Saía já daí.

— Não quero — a menina resmungou.

A Sra. Smith pôs o rosto na pequena janela tentando enxergá-la lá dentro.

— Pouco importa o que você quer. Eu falei que era para sair e você vai sair.

Chorosa, Olívia mencionou.

— A Rose não vai mais voltar pra escola...

— Eu lá me importo com o que essa tal Rose faz ou deixa de fazer?! Escuta aqui, menina, eu não estou com tempo, nem paciência para suas manhas. Saía já daí!

Ressentida, Olívia se encolheu ainda mais no interior da pequena construção de madeira.

— Eu quero o papai — pediu.

— Pelo amor de Deus, seu pai não está nem aí para você ou para o que você quer. Não seja ridícula.

— Quero o papai — voltou a pedir, pondo as mãos nos ouvidos. — Rose gosta de mim — falou chorosa, tentando inocentemente convencer a vizinha de que havia alguém que se importava com ela. Mas a velha rabugenta riu de suas palavras com desdém.

— Você acha mesmo que alguém gosta de você?

Olívia não respondeu. A Sra. Smith se afastou, tomando o caminho de volta até casa.

— Cuidado com os zumbis — ameaçou, sem parar de caminhar. — Eles podem aparecer quando menos esperar.

Não demorou, Olívia surgiu na porta da casinha.

— Zumbis não existem — respondeu não muito confiante disso.

— Se eu fosse você, não teria tanta certeza.

Foi o que bastou para a menina pegar a mochila e deixar o local às pressas, seguindo os passos daquela mulher que lhe dizia palavras duras a todo o momento. Olhou para trás uma única vez, para ter certeza de que não estava sendo seguida por zumbis. Por precaução, acelerou o passo, entrando na casa antes mesmo da Sra. Smith.

Mais tarde, quando Emmett chegou do trabalho, Olívia já tinha jantado, e se encontrava na sala com a Sra. Smith, embora a televisão estivesse desligada. A mulher tricotava em silêncio. Os olhos tristes da pequena, brilharam ao ver o pai chegar em casa. Apesar de tudo, sentiu-se aliviada em vê-lo.

A vizinha logo se despediu, deixando pai e filha sozinhos mais uma vez.

Emmett olhou para a filha, parecendo finalmente notá-la desde que passou pela porta.

— O que está fazendo acordada? — pediu.

— Esperando por você.

— Você não tem de me esperar.

Olívia se levantou do sofá. Deu alguns passos receosos e estendeu os braços envolvendo as pernas dele num abraço mendigado. Implorado.

— Por favor, papai, me deixe ficar aqui com você — sussurrou.

Emmett se desvencilhou após afastar os bracinhos que envolviam suas pernas.

— Vá para o seu quarto, por favor.

— Não quero ficar sozinha. Tem zumbis comedores de cérebros...

— Zumbis não existem — bradou sem paciência. — Não comece com mais essa agora.

— Tem sim — ela afirmou, com os lábios tremendo. — A Sra. Smith disse...

— Pare de contar mentiras — ele praticamente gritou, fazendo-a se encolher.

Com olhos de quem implora carinho, ela sussurrou:

— Por favor, papai...

— Olívia — ele continuou com o tom de voz elevado —, eu estou cansado. Tudo o que quero é chegar em casa e ficar sossegado,  e você não está permitindo que isso aconteça.

— Rose não vai mais voltar pra escola... — outra vez ela sussurrava aquela frase. Desejando, mesmo que não tivesse noção de tal desejo, ser compreendida.

— Que bom! Quem sabe assim ela para de importunar.

Confusa, Olívia perguntou:

— O que é importunar?

— É isso que você está fazendo comigo agora.

— Mas o que eu estou fazendo?

— Vá para o seu quarto, Olívia. — Ela ia dizer qualquer coisa, quando de repente Emmett gritou: — Agora!

A menina se moveu como tomasse um grande susto. À medida que subia a escada, sentia as lágrimas molharem as sardas no rosto outra vez.

Emmett ficou parado no meio da sala por alguns instantes, sem saber o que fazer, até que por fim decidiu subir a escada também.

Olívia chorava, sentada na cama, quando ouviu passos no corredor e então a porta do quarto do papai abriu. Ouviu o barulho de coisas caindo, mas não eram sons pesados, era mais como procurasse algo. Sentiu vontade de saber o que acontecia. Muito cautelosa, levantou e foi até a porta, pondo a cabeça no vão, olhando no corredor. Notou que o papai estava voltando do quarto dele, e carregava uma caixa florida nas mãos. Achou a caixa bonita e até pensou, inocentemente, que pudesse ser um presente para ela. Afastou-se da porta, aguardando o momento que ele entraria no seu quarto e a surpreenderia com o presente da caixa bonita, mas isso não aconteceu.

Voltou para a cama, abraçando o cobertorzinho. Depois de muito tempo, com a casa às sombras, ouviu vozes. O som era distante. Não era a Sra. Smith, nem mesmo sua amiga Arco-íris. Apenas uma voz ela reconheceu, a do papai, mas ele não parecia bravo. Que estranho! A voz feminina soava cantada, suave aos ouvidos. Embora não soubesse dizer quem falava, seu coração acelerado revelava que ele sim sabia.

Atraída pelo som das vozes, levantou da cama, acendeu a luz e saiu para o corredor esquecendo-se de seu medo recente de zumbis. O som era baixo, ela nunca teria notado, caso estivesse dormindo.

Acendeu as luzes no corredor, seguindo caminho até a escada. Com a mão na proteção lateral feita de madeira, reconheceu as luzes da televisão tremulando nas paredes da sala. O som das vozes, mais próximo agora. Começou descer a escada, parando na metade dela. As vozes que ouviu vinham da televisão. A imagem do papai estava na tela, ela o reconheceu mesmo ele estando mais parecido com o papai das fotografias que o que ela conhecia.

A imagem mudou e apenas a mulher, a dona da voz que agitava seu coração, aparecia na tela agora. Era a mesma da fotografia. Em um breve reconhecimento soube que poderia ser a mamãe. Notou os cabelos ruivos da moça no vídeo, automaticamente passou a mão nos seus, gostando do que via. Não era uma estranha no ninho.

A imagem na tela tornou a mudar. O papai fazia isso com o controle remoto de tempos em tempos. Então a moça ruiva não estava mais falando, estava sentada, tocando o mesmo instrumento que o papai guardava no quarto dele, num cenário que ela vira igual apenas na televisão. O som do instrumento musical chegou aos seus ouvidos com doçura e, estranhamente, reconhecimento.

Hipnotizada pelo som e pela imagem, Olívia desceu mais alguns degraus na escada. O papai estava sentado de costas para ela no sofá. Não pôde deixar de notar que os ombros dele tremeram. Naquele instante, soube que estava chorando. Não soube bem o porquê, mas, a música, a moça que tocava o instrumento e o choro do papai a fizeram chorar também. As lágrimas corriam facilmente no rosto e caiam na gola da roupa. Ela apertava os dedinhos ali onde às lágrimas caiam, e soluçava.

Movida pelos sentimentos, não pensou no que estava fazendo, apenas desceu os últimos degraus, parando ao pé da escada.

— É a mamãe? — soltou de repente.

O som de sua voz arrancou Emmett do passado. Ele virou bruscamente na direção da escada atrás de suas costas. E, sem mesmo notar as lágrimas no rosto dela, se mostrou furioso. Virando-se novamente para a televisão, ele a desligou. Outra vez olhando a menina, bradou:

— Por que não está no seu quarto?

Olívia recuou, agarrando com a mão a proteção lateral da escada. Os olhos molhados de lágrimas indo da televisão desligada para o rosto do pai.

— Era para você estar no quarto — o modo como falava soava como Olívia tivesse violado um local sagrado.

— Era a mamãe — a menina insistiu, mostrando com o dedo a televisão apagada.

— Por que você desceu Olívia? Eu não pedi para ficar no quarto?

— Eu ouvi vozes. Depois aquela música... — falou baixinho. — Ela estava tocando aquele negócio que tem no seu quarto, papai. É tão bonito.

Emmett se aproximou da escada sem ao menos notar o que estava fazendo. A raiva e a frustração o estavam guiando. Estavam no comando. Olívia levou um susto quando ele a garrou pela cintura levando-a escada acima, como uma bola de futebol americano, sem dificuldade alguma.

Ignorando o choro da filha, ele a colocou na cama. Não se importou que seu comportamento estivesse lhe causando medo.

O corpo miúdo de Olívia afundou nas cobertas pesadas.

— Quando eu disser que é para ficar no quarto, você fica no quarto.

Ela engatinhou até o canto, entre a parede e a cabeceira da cama, abraçando desesperadamente o cobertorzinho e a pelúcia gasta. Soluçando pediu:

— Por que não posso ver a mamãe com você na televisão?

Emmett ergueu a mão num ato involuntário.

— Você... — ele se esforçou em segurar o que estava prestes a dizer. Fechou a mão em punho e foi abaixando o braço devagar como fosse muito difícil fazer isso. O olhar de desespero de Olívia o deixou desconcertado. Ele então somente disse: — Só fique aqui, por favor. — Passou a mão depressa na cabeça, deixando o quarto em seguida, fechando a porta atrás de si.

Olívia levantou agarrada aos dois objetos de conforto, para então entrar debaixo da cama. Não ouviu mais a música tocando na televisão. Em vez disso ouviu uma porta batendo. Não saiu de seu esconderijo para ver o que estava acontecendo. Arco-íris logo estava ao seu lado, cuidando para que não se sentisse tão sozinha.

Emmett saiu pela porta dos fundos. Não sabia bem o que estava sentindo. Os sentimentos estavam em conflito, oscilando entre ira, decepção, frustração, saudade e culpa.

O frio lá fora não o incomodou. Num gesto involuntário, tateou os bolsos da calça procurando pelos cigarros. O maço estava praticamente vazio e bem amassado. Tirando um cigarro, acionou o isqueiro algumas vezes até finalmente conseguir acender. Deu duas longas tragadas, antes de relancear os olhos na direção da janela do quarto de Olívia. A única luz acesa lá dentro era a do pequeno abajur adquirido antes de ela nascer. Por um breve instante, teve impressão de ter visto a filha se aproximar da janela. Pensou que, por causa dela, a noite não teve o fim que esperava. Também pensou, se Sarah estivesse com eles, tudo seria diferente.

Estava preso ao passado, no momento da perda, se recusando deixar o luto para trás. Ficou do lado de fora por alguns minutos, que nem mesmo notou passar. Quando a temperatura começou baixar um pouco mais, resolveu entrar e preparar um café. Tomou uma caneca cheia, na companhia de seus pensamentos, ouvindo os ruídos habituais da casa: a geladeira funcionando e a calefação. Quando por fim resolveu ir para o quarto, o dia estava quase amanhecendo.

Dormiu muito pouco. E quando a manhã chegou o barulho incessante do despertador no quarto de Olívia o acordou. O mau-humor estava de volta. Enquanto saía da cama, pensou por que Olívia não desligava logo aquela coisa irritante. Calçou os chinelos e foi ver o que acontecia no quarto dela.

Alcançou a porta do quarto com passos pesados, pronto para fazer reclamações. Abriu à porta de forma bruta, mas uma breve olhada em seu interior revelou a cama vazia. Notou, também, a falta do travesseiro e do cobertor. Entrou no cômodo indo direto ao despertador que tocava sem parar. O silêncio que tomou o quarto ao silenciar o objeto foi reconfortante. Mas não ficou lá por muito tempo, logo estava no corredor outra vez, seguindo o caminho do patamar da escada. Pensou que a encontraria na sala, deitada no sofá, assistindo televisão, porém, Olívia não estava lá. Voltou pelo corredor e deu uma olhada no banheiro, ela também não estava lá.

Se ela já tivesse saído para esperar o ônibus, não teria deixado o despertador tocando, foi o que imaginou.

— Olívia? — ele chamou. A raiva crescendo à medida que era ignorado. Porque desde a noite anterior ela fazia tudo para irritá-lo, deduzira. — Saia de onde estiver se escondendo. Você vai perder o horário do ônibus. E você sabe o que acontece depois.

Ele voltou ao quarto dela. Olhando com mais atenção, em meio à bagunça, reconheceu a ponta do cobertor saindo de debaixo da cama. O carpete já nem parecia o mesmo, depois de tantos anos de uso e falta de zelo.

Não pensou por qual motivo estaria ali. Apenas se abaixou ao lado da cama e falou com ela.

— O que pensa que está fazendo? Saía já daí!

Nada aconteceu. Ele precisou se abaixar um pouco mais, quase deitando no carpete, para conseguir vê-la melhor. Ela estava acordada, mas parecia não ouvir o que dizia.

Emmett enfiou as mãos embaixo da cama puxando as pernas de Olívia até tirá-la de lá. A menina gemeu, agarrando mais forte o cobertorzinho e a ovelha de pelúcia.

Ele a segurou pela cintura, numa tentativa de colocá-la de pé. O corpo miúdo e pequeno tombou mole em seus braços.

— Ei! — falou de repente, surpreso pelo modo como despencou. Ao segurá-la novamente, pôs uma mão em seu rosto, tentando entender o que acontecia. As bochechas vermelhas e a pele quente revelaram que estava com febre.

— Está com febre — avisou, e a levou para a cama. Enquanto a menina se encolhia, ele se abaixou para pegar o travesseiro e o cobertor embaixo da cama.

Olhando novamente para ela, pediu:

— Por que estava lá embaixo? — Ele jogou o cobertor sobre ela, sem demonstrar nenhum cuidado especial. Também não ajeitou o travesseiro, por isso Olívia continuou com a cabeça no colchão. — Eu tenho de ir trabalhar — esclareceu. — Não posso ficar aqui em casa com você. Nem mandá-la pra escola assim, eles vão mandá-la de volta. Vou ter de chamar a Sra. Smith para ficar o dia todo com você, não tem outro jeito.

A menção a vizinha fez Olívia gemer em desgosto. Ela esfregou o cobertorzinho nas bochechas sem ânimo.

— Sonhei com a mamãe e também com a Rose — murmurou, mas Emmett já tinha deixado o quarto.

Ele não retornou para vê-la antes de sair para o trabalho. A Sra. Smith não ficou muito contente em ter de deixar sua casa tão cedo para ficar com Olívia. Esperou Emmett sair para somente então subir a escada e ver como a menina estava.

Não demonstrou preocupação ou afeto ao se aproximar da cama. Olívia estava embaixo da coberta, agarrada novamente aos dois objetos que lhe davam segurança e conforto. Não disse nada ao ver a vizinha chegar.

— Então está com febre, hã? — a velha questionou como duvidasse. Em seguida ergueu a mão tocando o rosto da menina, que fechou os olhos, temendo um tapa. A Sra. Smith estalou a língua, incomodada.

Olívia sentiu a mão marcada pela idade tocar seu rosto e isso a fez lembrar-se da vovó Cheryl. Mas as mãos da vovó não tinham tantas rugas e marcas como as da Sra. Smith. Ainda que a vovó não fosse afetuosa, sentia falta dela. Ela não costumava gritar ou lhe dizer coisas feias.

— É — a mulher estalou a língua novamente. — Você está mesmo bastante quente — aceitou por fim. — Vou ter de voltar na minha casa e pegar umas ervas para preparar um chá porque, é claro, aqui não tem. — Ela tomou o caminho da porta. — Com o pai que tem... — resmungou.

Olívia sentiu o peso da tristeza deixá-la ainda mais frágil.

Levou pouco mais de meia hora para a Sra. Smith voltar com o tal chá que prometeu. Olívia estava dormindo quando a mulher entrou no quarto trazendo uma xícara liberando fumaça junto com ela.

— Sente-se — ordenou, assustando a criança. — Não pense que vou lhe dar na boca. — Com uma mão puxou a coberta até metade das pernas da menina.

Olívia logo sentiu o frio envolvê-la. Como estava demorando em erguer o tronco, a Sra. Smith pegou em seu braço puxando-a para frente.

— Anda logo! Por sua causa, precisei mudar meus planos. Eu não contava que teria de ficar com você hoje logo pela manhã.

Olívia olhou para ela com os olhos miúdos.

— Eu quero o papai. Não quero ficar com você.

— Eu também não queria estar aqui, mas estou. Agora bebe logo esse chá. — Aproximou de forma exagerada a xícara dos lábios de Olívia. O líquido de cor de lodo respingou no queixo e na roupa da menina. O gosto era horrível. Olívia sentiu náuseas se formando e teve de se esforçar para engolir.

— Se vomitar, esteja sabendo que não vou limpar.

O chá ficou revirando no estômago vazio de Olívia. Antes que a Sra. Smith alcançasse a porta, ela pôs tudo para fora. Pânico estava estampado em seu rosto de traços delicados, quando a mulher se virou para olhá-la.

Passando a mão trêmula no queixo, explicou:

— Eu vou limpar...

— Eu é que não farei isso — a velha resmungou, deixando-a sozinha no quarto.

Olívia puxou, com dificuldade, o cobertor para fora da cama fazendo um amontoado em todo ele, deixando no canto ao lado da porta para levar para lavanderia depois.

Devagarinho foi ao quarto do pai pegar um cobertor limpo. Pegou o que estava na cama dele por não saber onde buscar outro.

Não estava com vontade de vomitar antes do chá, pensou que a culpa era toda da Sra. Smith.

O violoncelo no canto chamou sua atenção. Recordou do vídeo que o papai via na noite anterior. De como a mamãe tocava tão bem aquele instrumento musical. Ergueu a mão até alcançar as cordas com os dedos pálidos. O som emitido foi desafinado, em nada se pareceu com o som que ouviu na televisão. Sentiu vontade de ouvir aquele som perfeito outra vez. Passou os dedos nas cordas novamente e o som foi igualmente horrível. Então lembrou que a mamãe, no vídeo, usava um arco para tirar o som. Tinha sido por causo do vídeo que sonhou pela primeira vez com Sarah.

Voltou ao quarto dela, e deitou com o cobertor que havia pegado no quarto do papai. O cobertor era muito grande e tinha o cheiro dele misturado com cheiro de cigarro. Os minutos se passaram e Olívia acabou pegando no sono de novo.

Passaram-se horas, até acordar com a Sra. Smith ao lado da cama, segurando uma bandeja com um prato de sopa rala.

De novo, havia sonhado com a mamãe.

A Sra. Smith deixou o prato na mesinha de cabeceira e imediatamente retornou ao andar de baixo.

Embora tivesse se esforçado para comer da sopa, Olívia conseguiu apenas tomar duas colheres rasas.

[…]

Rosalie estava ao volante, a caminho da casa de Emmett. Tinha passado na escola para levar o almoço de Olívia ainda pela manhã, quando ficou sabendo pela motorista do ônibus escolar, que a menina não tinha ido à escola. Passou o resto do dia pensando nela, até não aguentar mais e ir em busca de notícias. O celular estava no bolso agora, tinha decidido ligá-la para facilitar o contato com Olívia, após sua saída da escola. Só não sabia ainda para qual número ligar.

Deixou a bolsa no banco do carona ao saltar do carro em frente à casa de jardim destruído. Ainda se sentia incomodada com o como a paisagem em frente à casa deles parecia mórbida. Por vezes, assustadora.

Alcançou a varanda, olhando com curiosidade da porta para as janelas. Percebeu o barulho da televisão ligada.

Tocou a campainha e aguardou. Segundos depois a porta foi aberta, revelando a mulher de cabelos grisalhos e rosto marcados por rugas profundas. As duas se olharam em silêncio, avaliando uma a outra.

— O que faz aqui? — a mulher mais velha falou primeiro.

— Eu gostaria de falar com Olívia. Soube que não foi à escola hoje.

A Sra. Smith a interrompeu.

— A menina está no quarto. Não vai poder falar com você.

— Por que não? — Rosalie pediu, desconfiada.

— Ela não está se sentindo bem.

— O pai a levou ao médico?

— É claro que não. É só uma febrezinha boba.

Rosalie deu um passo à frente, decidida entrar na casa e falar com a criança de qualquer maneira.

— Onde ele está agora? O pai dela.

— No trabalho, onde mais estaria?

Passou pela porta, com a velha resmungando as suas costas.

— Você não pode ir entrando assim na casa dos outros, sua abusada.

Rosalie olhou para ela com olhar desafiador.

— Eu já entrei.

— Você não pode... — dizia a Sra. Smith quando foi interrompida.

— Onde fica o quarto dela?

— Não vou dizer nada — foi a resposta que recebeu. — Saía já dessa casa.

— Tudo bem — Rosalie suspirou. A Sra. Smith pensou que fosse acatar sua ordem, em vez disso Rosalie acrescentou: — Eu encontro sozinha. — Ela virou as costas sem se importar com nada além de encontrar a criança desprezada que vivia naquela casa. Subiu a escada com a velha resmungando sobre ela ser abusada.

Seguiu pelo corredor, decidida verificar cômodo por cômodo se fosse o caso. Não foi preciso, logo encontrou a porta decorada com ovelhinhas do quarto de Olívia.

A porta estava entreaberta. Ao se aproximar, abriu o restante, notando de imediato a bagunça de roupas e cobertores que era lá dentro. O que ela não sabia era que nenhuma daquelas roupas servia mais em Olívia já há algum tempo.

O quarto cheirava a mofo. Só pôde lamentar aquela criança vivendo de tal maneira. Não foi difícil perceber que o quarto havia sido projetado aguardando a chegada de um bebê desejado, mas os anos de abandono foram mudando sua cara. De todas as coisas fora de lugar, o que mais chamou atenção foi a cama horrível que não deveria estar ali.

Sob o cobertor pesado e grande demais, Rosalie reconheceu os cabelos ruivos de Olívia. O corpo miúdo quase imperceptível embaixo da grossa coberta.

— Ollie! Ollie? — se precipitou indo até à cama. Passou a mão no rosto quente da menina, em seguida, sentou ao lado dela. Permaneceu fazendo carinho, notando no mesmo instante as bochechas vermelhas. Era a primeira vez, desde que a conheceu que via seu rosto tão corado, ainda que fosse por conta da temperatura elevada. — Olívia? Ollie?

A menina abriu os olhos devagar, sorrindo debilmente para ela. Acreditando que era apenas mais um sonho.

Relanceando o olhar ao redor, Rosalie encontrou o prato de sopa rala, praticamente intacto. Permaneceu afagando o rosto de Olívia enquanto chamava seu nome.

— Eu quero ficar aqui com você... — Olívia murmurou de olhos fechados, desfrutando do carinho que recebia. Que tanto lhe fazia falta. Era tão bom. Fazia pensar como seria ter uma mamãe que a ama —... no sonho — concluiu.

— Ollie, meu amor, não é sonho. Eu estou mesmo aqui com você. Abre os olhinhos e olha pra mim, querida, por favor.

Ela abriu os olhos devagar, como temesse o sonho chegar ao fim.

— Rose? Rose! Rose! — Olívia levantou o torso frágil devagar, erguendo os braços para ela. Rosalie a abraçou levando-a para sentar em seu colo. Olívia estava suada, apesar do frio da estação. Os cabelos revoltos cheiravam a suor.

Rosalie afagou suas costas e também seus cabelos.

— Como está se sentindo, meu anjo?

— Você está aqui — Olívia se limitou a dizer. — Está sim.

— Estou sim. E vou cuidar de você agora.

— Que nem uma mamãe cuida da filhinha?

— Sim. Que nem uma mamãe cuida da filhinha.

Olívia começou a chorar. Havia uma sensação estranha tomando seu coração. Ser a filhinha querida de alguém era o que mais desejava na vida. Quantas e quantas vezes desejou sentir esse amor e até se colocou no lugar de uma coleguinha. O desejo de se sentir amada era tão forte e desesperador, chegando algumas vezes ser sufocante.

Rosalie levantou, procurando por uma escova de cabelos. Deu uma ajeitada nos fios ruivos de Olívia, e pôs o agasalho nela. Antes de pegá-la no colo, usou o celular pela primeira vez desde que chegou a cidade, para ligar no número do celular de Emmett, encontrado na mochila de Olívia. A ligação foi breve. A menina se agarrou a ela com braços e pernas, levando o cobertorzinho junto, preso entre as duas.

— Você vem comigo, minha pequena. Eu vou levá-la ao médico. Vou cuidar de você agora. Seu papai vai encontrar com a gente lá.

Desceu a escada carregando a menina no colo. A Sra. Smith se precipitou se pondo em seu caminho.

— O que pensa que está fazendo? — exigiu furiosa.

— Levando Olívia ao médico. Ela não pode simplesmente ficar em casa sem saber o que tem. Ela tem plano de saúde?

A Sra. Smith não respondeu.

— Não importa — Rosalie avisou. — O pai dela me dirá.

— Você não pode levar a menina — a mulher avisou.

— Tente me impedir — Rosalie desafiou, com olhar firme, decidida.

— Vou avisar ao pai dela, que está levando-a sem permissão.

— Poupe seu tempo, senhora, eu mesma fiz isso. Ai dele que não esteja lá quando eu chegar com a menina. Ele não é nem doido.

Rosalie caminhou com Olívia no colo rumo à porta de saída, sem olhar para trás uma única vez. Deixando a porta aberta atrás de si, e uma senhora raivosa dizendo coisas feias a seu respeito.

 


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Notas finais do capítulo

Sill