Um Caminho Para O Coração escrita por Sill Carvalho, Sill


Capítulo 20
Capítulo 19 — Vulnerável




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O despertador no quarto de Olívia não tocou. Era sábado, não tinha de se levantar cedo para ir à escola. Ainda assim, ficou somente quarenta minutos a mais na cama.

As pálpebras se moveram devagar, despertando de mais um sonho bonito com Rosalie e Sarah. Levou algum tempo para sentar na cama e pensar finalmente em levantar. Espreguiçava-se quando, ao olhar para o lado, encontrou as roupas novas que o pai deixou a noite enquanto ainda dormia. Não era algo que tenha visto acontecer antes, então, realmente chamou sua atenção.

Desconfiada, saiu da cama para ver de perto as peças de roupas novas.

— Hummm... — murmurou. — Que bonitas. De quem será? — Segurou um moletom cor-de-rosa, com a estampa de um gatinho em alto-relevo na parte da frente. O sorriso em seu rosto se alargou. Eram roupas novas de inverno; blusinhas de mangas compridas, calças leggings com um segundo forro que a deixariam aquecida, suas estampas eram variadas. Meias-calças coloridas, luvas, meias de algodão, duas calças jeans, um casaco pesado na cor lilás. Roupa íntima e pijama. E, para sua surpresa, um vestido vermelho com gola peter pan e uma saia nova de tule num tom de rosa clarinho que a encantou.

— Olha Arco-íris! — comentou com a amiga imaginária, mostrando sua saia nova e então gesticulando para que notasse todas as outras peças de roupa. — Quanta lindeza tem aqui. Você não acha que são uma lindeza? Uma belezura?

— São roupas muito bonitas. E todas parecem servir em você, além de combinar.

— Quem será que deixou tudo isso aqui?

— Você deveria perguntar a seu papai, aposto que ele sabe quem deixou todas essas coisas lindas no seu quarto.

— Não — Ela segurou um par de luvas onde cada dedo tinha uma cor. — Ele pode ficar bravo. Eu não quero que o papai fique bravo. Tenho medo. — Ela analisou novamente o moletom com o gatinho estampado na frente. — Tá bom — falou, por fim. Arco-íris sorriu para ela, com seus cabelos coloridos caindo na testa.

Olívia saiu correndo pelo corredor. A porta do quarto do papai estava aberta, mas a do banheiro, onde bateu, estava fechada. Ninguém respondeu. O papai também não estava lá. Estava para sair do quarto, quando o violoncelo da mamãe chamou sua atenção. Adorava o instrumento musical, ainda que não soubesse como tirar a melodia dele. Ainda que o papai não gostasse que chegasse perto, se sentia atraída, quase fascinada pela aparência e o mogno lustroso.

Sentia como chamasse por ela. Chegou ainda mais perto, olhando cada detalhe nele. Estendeu a mão até tocá-lo, sendo o mais cuidadosa possível. O arco estava posicionado logo ao lado. Uma leve brisa soprou a cortina na janela e também seus cabelos. Não soube o porquê de seus lábios terem se curvado com um sorriso. Foi fácil e irresistível. Moveu a mão até segurar o arco. O tocar dele nas cordas trouxe um som diferente de tudo o que havia conseguido tirar um dia. Uma segunda vez, ela moveu o arco, encantada com o que estava fazendo.

Não ouviu passos no corredor, por isso se assustou quando Emmett parou no umbral da porta. O peito dele ofegava como tivesse corrido escada acima. Olívia saltou dando um passo para trás, enquanto tentava esconder o arco atrás das costas.

— Foi você? — ele pediu.

Olívia recuou um pouco mais. Como não respondeu, Emmett deu um passo à frente, entrando assim no quarto. Por medo, ela deixou cair o arco atrás das costas. Ia sair correndo, mas o braço forte estendido em sua frente impediu a passagem.

— Espere!

— Eu quero ir papai. Eu quero ir.

— Espere — pediu novamente. — Não vou brigar com você.

Ela finalmente desistiu de fugir.

— Foi você quem fez aquilo? — Olívia abaixou a cabeça, ainda com medo de revelar que havia mexido onde não tinha permissão. — Não irei brigar. — reforçou. — Você pode me dizer a verdade.

Olívia mostrou o arco no chão, movendo sutilmente a mão.

Emmett olhou dela para o objeto no chão e novamente para ela.

— Eu passei assim. — Gesticulou, mostrando como mover o arco no violoncelo ao pai.

— Como você sabia que tinha de fazer isso?

Olívia não quis mencionar o dia que Emmett estava assistindo aos vídeos de Sarah na televisão da sala. Estava com medo que tivesse outra reação explosiva como aconteceu no dia.

— Pode fazer de novo? — ele pediu.

A menina negou com um movimentar cauteloso de cabeça.

— Tudo bem. — Ele recolheu o arco e colocou de volta no lugar.

Olívia finalmente pôde sair do quarto correndo como desejava desde que o pai a pegou espiando o violoncelo. E, antes de o pai sair da posição que se encontrava, voltou correndo ao quarto dele para perguntar.

— Papai, papai.

Emmett virou de maneira a ficar de frente para ela. Estava agitada, nem parecia à mesma garotinha desconfiada de minutos atrás.

— De quem são todas aquelas roupas novas no meu quarto? Quem as deixou lá? Foi vovó? Foi a Rose? Quem foi?

— As roupas são para você. E não, não foi nenhuma das duas que as deixou lá. Nem a Rose, nem a vovó.

— Então quem foi? Porque eu sei que não pode ter sido o papai Noel, ainda é cedo para o natal. Além do mais, ele nunca veio na nossa casa.

— Fui eu.

A boca pequena se abriu em sinal claro de surpresa, da mesma forma que os olhos expressavam o espanto.

— Você comprou pra mim, papai?

— Sim.

— Por quê?

— Porque você estava precisando há muito tempo.

— Comprou para você também, papai?

— Não.

— Não tinha mais dinheiro? Pode devolver um pouco das minhas e trazer uma roupa nova para você. Assim você tem uma roupa nova também.

— Não, o dinheiro não acabou. Não tem de se preocupar em devolver nada.

— Tá bom papai. Muito obrigada. Agora eu vou trocar de roupa.

— Vista uma das novas. E escove os dentes. Nós vamos sair em alguns minutos.

— Sem tomar café nem nada?

— Vamos parar para comer alguma coisa no caminho.

— Eu não vou mesmo ter de ficar com a Sra. Smith?

— Não, agora não.

Ela o presentou com um sorriso de orelha a orelha. E novamente saiu correndo pelo corredor.

— Arco-íris, Arco-íris. Foi o papai quem comprou todas essas roupas pra mim. Ele comprou mesmo. Comprou pra mim. Ele tinha dinheiro agora.

Enquanto se trocava, conversou um pouco mais com a amiga imaginária. A roupa escolhida foi uma legging com estampa floral, blusa de mangas compridas e o moletom com a estampa do gatinho. Calçou meias novas, mas teve de pôr as mesmas galochas velhas de sempre. Até tentou pentear os cabelos, mas não ficou muito bom. Estava contente pelos acontecimentos da amanhã, os cabelos não tão bem peteados, não iria atrapalhar.

Desceu a escada correndo, carregando o cobertorzinho na mão. Emmett esperava por ela na sala já com a chave do carro entre os dedos.

— Estou pronta papai. Aonde que a gente vai?

Emmett a olhou, admitindo a si mesmo que as roupas novas ficaram bem melhores nela. Mas as galochas, essas ainda precisavam ser substituídas. E os cabelos, precisavam de uma melhor escovação.

Guardou os pensamentos para si. Alertando apenas para o cobertorzinho na mão dela.

— O cobertor fica.

— Mas eu posso precisar dele.

— Você não vai precisar dele.

— Vai me levar para ver a Rose?

— Não.

— Então eu posso precisar dele sim.

— Vamos comprar sapatos novos. Não vai precisar dele na loja.

— Não dá para saber — ela rebateu.

— Você não quer sapatos novos?

— Quero papai, mas eu preciso levar meu cobertorzinho junto.

Emmett estava começando perder a paciência.

— Você até pode levar, só que terá de ser dentro da mochila.

Olívia voltou ao quarto correndo, pegou a mochila nova que Rosalie lhe deu e pôs o cobertorzinho dentro. Em pouco tempo estava de volta à sala, com a mochila nas costas. Seus desenhos ainda estavam nas paredes, presos com fita adesiva de fácil remoção.

Olhou de um lado a outro, mas o papai não estava por perto. Correu até a porta da frente girando a maçaneta de forma apressada. A porta não abriu, estava trancada com a chave.

— Papai? — chamou, sentindo o choro se formando na garganta, imaginando que tivesse saído sem ela. — Papai? Arco-íris?

Emmett cruzou a sala de jantar, vindo da cozinha.

— Por que está chorando Olívia?

A surpresa em seu rosto, por ele ainda estar em casa, foi nítida. Engoliu o choro e correu para junto dele, oferecendo a mão pequena para segurar.

Emmett levou um minuto inteiro olhando a mão estendida. Sem coragem de segurar, pôs a mão em seus ombros pequenos.

— Vamos — declarou, guiando a menina pela sala de estar, de jantar e cozinha até chegar à garagem.

— Papai, você viu os meus desenhos na parede?

— Vi.

— Você gostou?

— São todos lindos. Você desenha muito bem.

Ela sorriu para ele, antes de entrarem no carro.

Emmett a levou para tomar café da manhã no pequeno estabelecimento onde algumas vezes, durante a semana, costumava parar para comer a primeira refeição do dia antes do trabalho.

Foi ele quem segurou a porta de vidro para ela passar. A sineta anunciando a chegada logo em cima de suas cabeças. Ele reparou na mochila nova nas costas dela, e não pôde deixar de pensar que combinava mais que a mochila escura que tinha comprado quando iniciou na escola.

O local estava praticamente vazio. Mesmo assim, as poucas pessoas lá dentro viraram suas cabeças para olhar para eles. Um ou outro cliente falou com Olívia, incluindo a garçonete; uma mulher na casa dos quarenta anos, que os atendeu.

Ele pediu um café puro, ovos com bacon, panquecas, donuts e um copo de leite.

Olívia olhou da comida para o pai, admirada com o que iriam comer.

Emmett só percebeu que não estava comendo, após um longo gole de café. Ela mantinha as mãos no colo como esperasse autorização. Ele olhou para ela, pensando ser impossível não encontrar semelhanças com Sarah. Mas, o que o surpreendeu mesmo foi à ausência de raiva alcançando o momento pai e filha. Não quis afastá-la como das outras vezes.

Moveu o copo de leite devagar sobre a mesa até ficar na frente dela. Sentiu que as pessoas olhavam, de tempos em tempos, e cochichavam como sentissem pena do que aconteceu a eles no passado.

— Você não vai comer? — perguntou a Olívia, ignorando os olhares e cochichos ao redor.

— Pode papai? — As mãos unidas no colo, esperando permissão.

— Pode.

As mãos pequenas se moveram com cautela sobre a mesa alcançando uma rosquinha com cobertura de morango e confeitos coloridos. O olhar no pai, antes de dar a primeira mordida na comida. A cobertura cor-de-rosa sujou toda sua boca e a ponta do nariz.

Iria sugerir que comesse devagar, mas parecia estar tão saboroso que deixou passar. Em vez disso usou o guardanapo para limpar a boca e nariz dela. Olívia ficou sem reação, admirada com seu gesto.

Depois de comer mais da metade do donuts, segurou o copo de leite com as duas mãos e tomou o primeiro gole. Tinha o bigodinho branco quando deixou o copo na mesa. Respirou fundo, gostando muito daquele café da manhã na companhia do papai. Ele parecia diferente. Tudo parecia diferente.

Emmett pegou um dos donuts começando a comer.

Minutos depois, pai e filha deixaram o local com a garçonete dando tchau a Olívia.

Levaram um bom tempo na loja de departamentos escolhendo calçados para Olívia. Como não sabia a numeração, precisou tirar a medição do pé. No final, escolheram um par de tênis cor-de-rosa, um de botinhas na cor bege, outro de galochas vermelhas com bolinhas brancas e um de chinelinhos. Ainda a caminho do caixa, Olívia encontrou um par de pantufas de unicórnio. O modo como as olhou revelou seu desejo por elas. Emmett acabou incluindo nas compras. Ela não conseguia acreditar no quanto o papai estava sendo legal desde que saiu da cama aquela manhã.

Emmett carregou as sacolas até o carro, com Olívia caminhando ao seu lado, apertando o passo.

— Posso usar minhas pantufas novas quando chegar em casa, papai? Posso? Posso?

— Bem, foi para isso que compramos.

Ela olhou para cima, com expressão contente, sem deixar de segui-lo pelo estacionamento, algumas vezes, dando pulinhos, outras, girando nos calcanhares.

[…]

Rosalie estava na janela, olhando nada específico.

— O que está fazendo? — Norman pediu. — Já faz quase uma hora que está nessa janela. Acho que nada mudou lá fora desde a última vez que olhou.

Ela se afastou do batente para olhar para ele.

— Estou preocupada — confidenciou.

— É com a Abobrinha?

Meneou a cabeça, dando um passo para longe da janela.

— Sim.

— E por que não vai vê-la?

— O pai dela me pediu. Na verdade, exigiu que ficasse longe da casa deles hoje.

— Você nunca aceitou o que ele diz.

Rosalie sorriu.

— Tem toda razão, vovô. Mais tarde darei uma passada por lá, para saber como estão às coisas com a minha pequena. Eles não devem ter voltado ainda.

— Voltado de onde?

— Desculpe, esqueci-me de contar, já estava tarde quando cheguei. Ontem ele comprou roupas novas para ela, hoje ficou de comprar calçados.

— Já não era sem tempo.

Um minuto em silêncio, Rosalie então suspirou.

— Espero que esteja tudo bem. Que esteja tratando nossa Abobrinha bem. Quero acreditar que ele vai cuidar dela. Só não garanto terminar o dia sem notícias. Não vou conseguir dormir se não tiver certeza de que está bem.

[…]

Olívia correu para tirar as galochas e calçar suas pantufas novas de unicórnio logo que passou pela porta de casa. Mostrou os pares de calçados novos a amiga imaginária e passou um bom tempo encantada com as pantufas nos pés.

A televisão na sala estava ligada no canal infantil. E Emmett, na cozinha preparando o almoço dos dois.

Olívia revezou seu tempo em assistir desenho animado, admirar as pantufas novas e correr para a janela de tempos em tempos a espera de Rosalie. Não se lembrava de ter dito que viria. Sentia falta dela todo o tempo.

Depois que voltaram da rua, o papai gastou muito tempo na cozinha entre preparar a comida e limpar tudo depois.

Faltando pouco para às quatro da tarde, entrou na sala avisando que precisava sair e que a Sra. Smith estava chegando para ficar com ela. A notícia não foi bem-recebida por Olívia. A menina sentiu medo, e acabou correndo até a janela mais uma vez.

— Eu quero ficar com a Rose — murmurou. — Não quero a Sra. Smith.

— Rose não virá hoje.

— Por que Rose não vem? — estava prestes a chorar quando fez a pergunta.

— Eu disse para ela não vir.

Imaginando que não fosse voltar a ver Rosalie, Olívia abaixou a cabeça entregue às lágrimas. Voltou para o sofá apertando o cobertorzinho junto ao peito.

— Eu queria mostrar a ela os meus sapatos novos. E também as roupas — soluçou, sem olhar no rosto do pai.

Emmett não disse nada. Só pegou a chave do carro no aparador. A campainha tocou, e quando abriu à porta, a Sra. Smith estava na varanda.

Olívia se encolheu junto ao braço do sofá ao ver a vizinha entrar na casa.

— Tenho um compromisso agora — ele contou a mulher de cabelos grisalhos. — Devo demorar um pouco para voltar. Tem comida no forno, não terá de preparar o jantar dela hoje.

O olhar da Sra. Smith alcançou Olívia no sofá. A menina se encolheu ainda mais. Aquele olhar dizia: mal podia esperar para estarem sozinhas.

— Não tem com o que se preocupar — garantiu a Emmett. Quando ele abriu a porta para sair, se lembrou de perguntar: — E aquela moça?

— Que moça?

— A loura intrometida.

— Ela não virá aqui hoje. — Então ele saiu pela porta, fazendo a única coisa que não deveria fazer: deixar as duas sozinhas.

A Sra. Smith não usava mais a bota ortopédica. Parecia bem melhor que na última vez que Olívia a viu. A mulher logo reparou nos desenhos nas paredes.

— Quem pôs todas essas coisas aqui?

Olívia não respondeu.

A Sra. Smith ergueu a mão retirando o primeiro desenho da parede.

— Não! — Olívia gritou, pulando do sofá, deixando o cobertorzinho para trás.

A mulher arrancou um segundo desenho da parede.

— Foi você quem fez isso? — questionou. — Com autorização de quem?

— Não! Não tira. É do papai. É tudo do papai.

Com um olhar de zombaria, a Sra. Smith partiu para o terceiro desenho.

— Põe de volta. Põe de volta. Isso não é para a senhora. É para o meu papai.

— São apenas rabiscos. E que coisa mais feia.

— Não é não. É bonito. — Olívia ficou na ponta dos pés, tentando pegar os desenhos da mão dela. — Devolve sua malvada. Devolve.

— Senta lá, menina abusada, se não quiser levar um castigo.

— Não vou. A senhora pegou isso, e é do papai.

— Você tem certeza, Olívia, que não quer mesmo sentar? — O olhar que lançou a menina foi de dar medo. Olívia não teve escolha senão obedecer. Ficou chorando baixinho enquanto a vizinha retirava todos os seus desenhos da parede e rasgava a plaquinha que Rosalie ajudou fazer. Ao menos os desenhos, ela deixou em cima do aparador onde estavam os cadernos.

Pegou o controle da televisão e mudou a programação para o que queria assistir, sem se importar que a criança estivesse assistindo antes mesmo de ela chegar.

— Assim está bem melhor — se atreveu a dizer, ignorando a criança que chorava no sofá.

Olívia encobriu o rosto com a almofada para não ter de olhar na Sra. Smith, enquanto murmurava o nome de Rosalie em voz baixa.

Os minutos se passaram e assim as horas também. Olívia acabou dormindo no sofá, com a Sra. Smith assistindo televisão sentada na poltrona.

Acordou com alguém cutucando seu braço com força. A escuridão havia tomado às ruas do lado de fora. As luzes acesas na sala fizeram seus olhos piscarem, acostumando gradualmente com a claridade.

A cutucada no braço foi ainda mais forte dessa vez.

— Levante! — ordenou. — Não está me ouvindo chamar?

— Não quero — Olívia recusou sonolenta.

— Você tem de tomar banho. Já é noite.

— Não...

— Estou falando para você levantar, menina.

— Me deixa dormir — ela pediu, virando para o outro lado.

A Sra. Smith a sacudiu forte chegando ao ponto de sua cabeça bater na almofada do sofá. Por sorte, havia sido num lugar macio ou a teria machucado feio.

— Quero esperar o papai aqui.

— Não vai esperar papai coisa nenhuma. Você está cansada de saber que ele não gosta de te ver acordada quando chega do trabalho.

— A senhora está mentindo. — Olívia desafiou. — Mentirosa. Malvada.

A Sra. Smith agarrou seu braço puxando-a para fora do sofá na marra. Na tentativa de se livrar das mãos da mulher, Olívia deixou o cobertorzinho cair no tapete. Tomando a vitória como certa, a Sra. Smith soltou o braço da menina para pegar o cobertorzinho que havia deixado cair.

— Vai subir agora para tomar banho ou terei de jogar essa coisa podre no lixo? — Ela erguia o pequeno cobertor no alto, ameaçando a criança.

— Devolve. Devolve sua malvada.

— Então faça o que estou mandando.

Olívia tomou o caminho da escada com lágrimas no rosto e o nariz fugando. A Sra. Smith foi atrás dela fazendo mais ameaças. Olívia tropeçou duas vezes, por estar sempre com a atenção no cobertorzinho, temendo que fosse jogado fora.

Entrou no banheiro com a Sra. Smith seguindo seus passos tal qual uma sombra.

— Tire as roupas — ordenou, passando pela menina para abrir o chuveiro.

Olívia não se moveu, ficou o tempo todo olhando o cobertorzinho que corria perigo nas mãos dela.

— Ah, não vai tirar não? — Levantou a tampa da privada ameaçando jogar o cobertor lá dentro. — Aposto que vai bem ficar bem nojento se cair aqui dentro.

— Não! — Olívia voltou a gritar. Olhando para o precioso cobertorzinho, começou retirar as roupas.

A Sra. Smith largou o cobertorzinho finalmente em cima da pia.

— Anda logo, estou esperando você entrar embaixo do chuveiro.

A menina tentou pegar o cobertorzinho, mas a velha entrou na frente. Balançou a cabeça olhando com desprezo a figura pequena e miúda a sua frente. A pele pálida expondo caminhos de veias azuis.

A Sra. Smith puxou seu braço mais uma vez levando-a a ficar diante o espelho grande em cima da pia, obrigando subir a escada de dois degraus, usada pela menina quando escovava os dentes.

— Olha só para você. — Ela indicou a figura da menina no espelho. — Olha como é feia. — Olívia chorava com mais intensidade a cada ameaça e zombaria. Quando tentou sair da frente do espelho, a velha forçou ficar. — Eu não disse que era para você sair. Veja como fica feia chorando.

Olívia apertou os olhos se recusando olhar no espelho. Seus gritos e soluços soando pelo corredor chegando ao térreo.

[…]

Parado no sinal de trânsito, Emmett mantinha as mãos firmes ao volante. O olhar atento ao semáforo. Um segundo antes do sinal abrir, seu olhar foi atraído para a estrada escura. O coração perdeu uma batida, o corpo tremeu. Sarah estava diante o carro, tão bonita como sempre fora. Ele tinha certeza que era ela. Seus longos cabelos ruivos estavam soltos sendo soprado pela brisa fria. Mas havia algo errado, ela estava chorando. Parecia magoada por algo que tinha feito.

— Sarah! — Gritou, tomado pelo desespero de tê-la de volta. Ao tentar sair do carro, ouviu falar:

— Vá para casa. Você precisa ir agora.

— Sarah! — Ele tentou novamente sair do carro, mas a imagem de Sarah, chorando, tirou as forças de suas pernas. O sinal estava aberto quando ela se afastou, saindo do caminho.

— Vá para casa — a ouviu dizer uma última vez.

Ele fez o que pedia sem se importar que fosse ou não real. Pisou firme no acelerador.

Deixou o carro na entrada de veículos, se apressando até a porta da frente. O grito de Olívia foi a primeira coisa que ouviu quando abriu a porta. O sangue gelou nas veias. O coração tornou acelerar as batidas. Largou a porta aberta, correndo pela casa, seguindo o choro da criança que por muito tempo se esforçou em ignorar.

Correu escada acima, e pelo corredor de acesso aos quartos, tropeçando no caminho. Passou correndo pelo banheiro cuja porta estava aberta, voltando assim que percebeu que estavam ali dentro.

Seus olhos presenciaram o que jamais pensou pudesse acontecer. A Sra. Smith segurava Olívia diante o espelho. O corpo miúdo da menina tremendo. Seu rostinho todo vermelho e molhado de lágrimas.

A voz maldosa da Sra. Smith dizendo o tempo todo como sua filha era feia. Que ninguém a queria. Que a menina havia matado a mãe. Que era uma criança malvada. E crianças malvadas mereciam ser punidas.

Uma onda selvagem de fúria rugiu no peito de Emmett, impelindo-o para dentro do banheiro e para cima da Sra. Smith. Seu punho forte agarrou o braço da mulher pegando-a de surpresa.

Os olhos da Sra. Smith se arregalaram ao perceber que era o pai da criança. Havia sido pega no flagra. Ela tremeu da mesma forma que fez Olívia tremer. A respiração dele soprando em seu rosto. Os gritos de Olívia ecoando dentro do banheiro. A mulher sentiu o braço doer com o aperto da mão dele.

Emmett a empurrou para fora do banheiro e pelo corredor.

— Saia de minha casa antes que eu faça uma merda e acabe o resto dos meus dias na prisão — ordenou no alto da escada. — Desapareça da minha frente ou irá se arrepender. Velha maldita.

A Sra. Smith desceu a escada correndo, o mais rápido que suas pernas cansadas permitiram. As mãos trêmulas segurando na proteção de madeira. O olhar de pânico como tivesse visto próprio diabo.

Deu uma última olhada no alto da escada. Esbarrando nos móveis da sala no trajeto até a porta da frente, que permanecia aberta. Atirou a cópia de sua chave no chão antes de alcançar a varanda. Tropeçou na bagunça que era o jardim, olhando para trás se certificando que Emmett não a perseguia.

Emmett voltou ao banheiro com passos largos. Olívia estava sentada no chão frio, gritando tanto quanto no dia em que tentaram arrancar o cobertorzinho de seus braços na escola.

Sentiu o peso esmagador do sofrimento da filha. A dor abrindo passagem, derrubando barreiras de ressentimento pelo caminho que levava ao seu coração.

Pegou o corpo frágil no colo. Os gritos não cessavam. Doíam nos ouvidos, mas doíam muito mais em seu coração.

Rosalie tinha acabado de estacionar o carro na frente da casa. Cruzou o jardim, estranhando o fato de a porta está escancarada. Estava na varanda quando percebeu os gritos de Olívia no interior da casa.

Movida pelo carinho que tinha pela criança, e seu instinto de proteção, correu pela sala e também escada acima. O coração esmurrando forte o peito. O corpo tremendo, imaginando o que poderia estar acontecendo.

Encontrou Olívia nos braços do pai. As roupinhas jogadas no chão. Seus gritos, angustiantes, de medo e dor. Nem mesmo percebeu que tentava acalmar a menina. Partiu para cima dele, com tapas e socos, acertando as costas largas e braços musculosos.

— O que você fez? Desgraçado. O que você fez?

Em meio a toda aquela loucura de acusações e gritos, tentou pegar a menina dos braços dele. Emmett entregou Olívia sem relutar, sabendo que a atitude feroz em defesa de sua filha era autentica.

Rosalie acolheu a menina nos braços como quem acolhe um bebê que chora sem parar. Acusando ele, o pai, de tê-la machucado. Emmett teve a sensação de nunca ter se sentido mais incompetente. Um total fracasso no papel de pai.

Observou de longe o modo cuidadoso e afetuoso com que Rosalie cuidou e confortou Olívia. Os gritos da criança cederam lugar aos soluços, depois pequenas fungadas. Uma garotinha exausta descansava a cabeça em seu ombro, após sentar no chão do banheiro.

— Papai não fez nada. — Emmett a ouviu falar com a voz rouca. — Ele me defendeu da Sra. Smith.

Rosalie limpou na mão as lágrimas no rosto dela. E seu olhar posou em Emmett, encostado à parede ao lado da porta, ele parecia menor. Seus ombros largos estavam curvados e a cabeça, baixa. Visivelmente atormentado pelos acontecimentos. Ela desviou o olhar, envergonhada de tê-lo acusado de forma tão violenta quando, na verdade, estava defendendo a filha.

Foi a primeira vez que admitiu com convicção que Emmett ainda tinha jeito. Que por baixo daquela casca dura havia bondade e amor.

Olívia lhe contou o que tinha acontecido. Rosalie sussurrou no ouvido dela várias e várias vezes o quanto era bonita. Disse que a amava muito. Emmett ouviu tudo em silêncio. Olívia acabou adormecendo, exausta, no colo dela ainda dentro do banheiro.

Vendo a dificuldade em levantar do chão com a menina no colo, foi ajudar. O olhar dos dois se encontrou, durando pouco menos de um segundo, antes de ele retirar Olívia dos braços dela.

O corpo pequeno parecia leve demais para ele. Os cabelos ruivos, pendurados em seu braço.

Rosalie pegou o cobertorzinho e o seguiu até o quarto de Olívia. Emmett colocou a filha na cama com cautela. Teve o cuidado em ajeitar o cobertor e o travesseiro também.

— Você é linda — sussurrou ele —, igualzinho a sua mãe.

Rosalie secou uma lágrima no rosto.

— Eu sinto muito — murmurou no momento que o olhar dele voltou encontrar o seu. Pôs o cobertorzinho entre as mãos de Olívia e colado ao seu rosto manchado de lágrimas.

Quando saiu do quarto, Emmett já estava no corredor outra vez, com as costas na parede. Parecia não saber o que fazer.

— Me desculpe.

Ele meneou a cabeça aceitando seu pedido de desculpas.

— Agradeço muito pelo que acabou de fazer, mas preciso ficar sozinho agora. Eu...

— Tudo bem — murmurou ela. Passou as mãos nos cabelos, afastando alguns fios do rosto, consentindo. Retirou-se em silêncio pelo corredor e então a escada até estar do lado de fora da residência.

Emmett voltou ao quarto da filha e sentou no chão ao lado da cama, sem dizer uma só palavra. O coração explodindo com tantos sentimentos posto à prova, observando a menina dormir. Lágrimas lhe molharam o rosto e soluços sacudiram seu peito.

Um pedido de perdão preso na garganta, implorando para ser feito.

 


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