Um Caminho Para O Coração escrita por Sill Carvalho, Sill


Capítulo 18
Capítulo 17 — Ação e Reação




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Emmett estava atrás da porta, ouvindo Rosalie cantar para Olívia. Ele chegou ao andar de cima, em modo automático, logo no início na canção quando a letra conhecida o guiou para lá. Tinha ouvido Sarah cantar a mesma música muitas vezes, outras, apenas tocava em seu violoncelo.

Chegou a pensar que fosse Sarah, mas a voz não era a dela, embora fosse igualmente encantadora. Aquela época havia chegado ao fim de maneira trágica e deixado marcas.

Raiva. Ele sentiu o corpo grande tremer por conta da raiva. Quis abrir a porta, fazê-la parar com a música, mas o corpo não obedeceu aos comandos da mente. Ouviu a canção até o final, parado junto à porta, os olhos chegaram a ficar cheios de lágrimas. O coração pulsando forte dentro do peito.

— Nunca esteve sozinha — ouviu Rosalie dizer a Olívia, que provavelmente já estava dormindo a essa altura.

O coração apertou. Ele encostou a testa na porta, logo acima da decoração de ovelhinhas brancas. Novamente, pensou em entrar lá, expulsar Rosalie do quarto da menina e então da casa. Sentiu vergonha de si mesmo. No final, apenas respirou fundo e se afastou da porta. Tomou o caminho da escada, parando uma única vez para olhar para cima.

[…]

Com Olívia finalmente na segurança de sua cama, numa noite de sono tranquilo, Rosalie finalmente estava pronta para ir embora. Antes, precisava apenas agradecer a Emmett por permitir que ficasse para o jantar. De repente, lhe ocorreu um pensamento: O que teria acontecido a Sra. Smith?

Do alto da escada, avistou Emmett sentado no sofá com uma garrafa de cerveja na mão. A televisão ligada, estranhamente com a tela azul. Alcançou o último degrau, se posicionando de maneira a enxergar seu rosto. Foi somente ao ficar de frente que pôde perceber as roupas retiradas da secadora, o cesto lotado ao lado dele, com peças de roupas ainda a serem dobradas antes de guardar. Um DVD estava parcialmente oculto sob uma camiseta. O cigarro esmagado no cinzeiro exalava forte odor.

Emmett ergueu a vista, prestando atenção no rosto dela um instante, antes de decidir fingir não notar sua presença.

— Não deveria ingerir tanta cerveja — ela começou num tom que beirava preocupação. — Tenho notado que às vezes exagera. E fuma demais, também.

Como a desafiasse, deu um longo gole na boca da garrafa, apreciando o sabor deixado nos lábios. Repousou, de maneira calculada, na mesinha de centro sempre abarrotada de coisas inúteis, a garrafa pela metade. Sua voz grave dizendo o que pensava.

— Você não me diz o que fazer.

— Eu não sei se você percebeu, mas existe uma garotinha que precisa que esteja sóbrio. Sua vida depende de você. Já chegou a pensar que possa haver uma emergência em algum momento?

Emmett voltou olhar para ela. Seu olhar sombrio obrigou Rosalie recuar dois passos.

— Que parte do “você não me diz o que fazer”, você não entendeu?

— Me preocupo com vocês, especialmente com Olívia.

O próximo movimento dele foi levantar-se de forma brusca. Exasperado.

— Por quê? — exigiu, caminhando na direção dela os poucos passos que os separavam. À medida que avançava, Rosalie dava um passo para trás, buscando uma distância segura, esbarrando em alguns móveis no caminho. Ela soube que não havia mais para aonde ir, no momento que sentiu uma das paredes da sala tocar suas costas.

Engoliu em seco, desafiando o próprio medo, vendo aquele homem enorme caminhar de forma selvagem em sua direção.

— Por quê? — ele tornou a pedir.

— Eu não sei... — seus pensamentos estavam confusos. A sensação de estar acuada era horrível. O instinto de sobrevivência enviando sinais ao cérebro para um pedido de socorro num eventual ataque da parte dele.

A mão forte de Emmett agarrou seu ombro, pressionando-a contra a parede um pouco mais.

— Você não é ela — acusou, sem esconder a raiva que sentia por estar se intrometendo em sua vida. Por fazer coisas que Sarah deveria estar fazendo.

Rosalie sentiu o ombro doer no local onde ele segurava.

— Nem quero ser — ela mal conseguiu demonstrar sua indignação com a comparação, por conta da dor no ombro. Apertou os olhos, se remexendo numa tentativa de fazê-lo parar. — Por favor — pediu —, pense em Olívia. Não faça nada que possa magoá-la ainda mais.

Emmett olhou no fundo dos olhos dela, capturando, de maneira inesperada, a mesma doçura e carinho transmitido por Sarah quando se referia a Olívia, ainda que tenha estado com ela somente pelo tempo que esteve em seu ventre. A confusão tomou seus pensamentos, de repente, o rosto de Rosalie se tornou o da mulher que tanto amou.

Rosalie ficou aflita ao vê-lo aproximar o rosto ainda mais. Ele se afastou tão inesperadamente quanto o momento que tudo aconteceu. Rosalie viu dor e desespero naqueles olhos azuis aquosos. A vontade de querer ajudar foi real.

Ele virou de costas, se mostrando aflito com o que estava acontecendo.

— Você precisa ir embora — avisou, evitando olhar no rosto dela.

Rosalie esfregou o ombro, ainda sentia doer onde ele antes apertou.

— Emmett... — arriscou ela, dando um passo em sua direção.

Emmett sacudiu a mão num gesto de recusa, como mandasse que fosse embora.

— Você faz coisas que me deixa atormentado. Vá embora! Por favor... me deixe sozinho.

— Em nome de todo esse amor que tem por Sarah, cuide da filha dela. — uma curta pausa, ela voltou então a falar: — Alguma vez colocou sua filha para dormir ou mesmo lhe deu um beijo de boa-noite? Volto a repetir: Sarah não teve a chance, mas você tem. — Ela se virou, pronta para ir embora. Um momento antes de alcançar a porta, olhou para trás.

— Teve alguma notícia da Sra. Smith?

Ele permanecia sem querer olhar nela.

— Não, não sei de nada — foi tudo que respondeu.

Com sua resposta, Rosalie saiu para a varanda. Deu uma última olhada na casa, desejando boa-noite ainda que não tivesse ninguém ali para ouvir. Apertou o cardigã ao corpo e caminhou até onde estava estacionado seu carro. Definitivamente, detestava aquele jardim, porque era uma representação silenciosa e sombria do que os moradores naquela casa carregavam no coração.

Lá dentro, sem saber dos pensamentos dela, Emmett olhou no alto da escada. Por um momento, teve a impressão de ouvir Sarah tocando violoncelo no quarto deles. A saudade o guiou escada acima, a cabeça sempre erguida, como esperasse encontrá-la a qualquer momento.

Deixando o patamar para trás, seu olhar foi atraído à porta do quarto de Olívia, na ovelhinha que decorava a madeira. Pensamentos da época em que Sarah e ele decoraram o quarto para a chegada da filha lhe ocorreram. Sarah lhe sorria, mas o Emmett que recebeu o sorriso não tinha toda aquela barba que tem hoje, nem os cabelos desgrenhados e roupas de aparência desleixadas.

As lembranças se dissolveram. Ele abriu a porta do quarto e ficou um instante, sem fazer movimentos bruscos, olhando a filha dormir.

Com a luz do pequeno abajur iluminando parcialmente o cômodo, ele se aproximou da cama. O rosto de Olívia parecia sereno. Seu peito se movimentando de forma compassada. A ponta do cobertorzinho presa entre os dedos enquanto o restante dele ficava embaixo de sua bochecha.

Pegou-se pensando com o que estaria sonhando. Ternura reivindicou espaço em seu coração. Quando percebeu, estava ajeitando o cobertor em volta do corpo pequeno e miúdo. Ficando surpreso consigo mesmo ao depositar um beijo breve na testa da filha. Como sentisse o gesto de carinho, os lábios de Olívia se curvaram preguiçosamente num sorriso em meio ao sono. Emmett quase sorriu.

[…]

Norman esperava por Rosalie, tomando uma xícara de chá na cozinha. Ficou olhando para ela, como tentasse adivinhar seus pensamentos, quando a viu chegar silenciosa.

— Está tudo bem? — sondou, desconfiado.

— Sim.

— A menina ficou bem?

— Sim.

— Respostas curtas — Norman ponderou. — Aconteceu algo que eu deveria saber? O pai dela te maltratou? Machucou você? Se ele fez isso, vai se entender comigo.

Rosalie se apressou em tocar o braço do avô, lhe dando uma resposta melhor dessa vez.

— Eu estou bem. Nada aconteceu, só estou pensativa. — Ela fez uma pausa. — O senhor nem pense em sair por aí bancando o supervovô. E estou falando sério.

Norman sorriu, em seguida beijou no rosto da neta.

— Você tem o coração tão bondoso, minha querida.

— O senhor está enganado vovô. Ainda não consegui perdoar Irina e Royce.

— No momento certo — Norman analisou. — Vai acontecer no momento certo. — Por falar nisso, aquela sua amiga de Atlanta ligou. Ela disse que tentou no seu celular, mas você não estava atendendo nem visualizando suas mensagens novamente.

— Provavelmente estava cuidando de Olívia, desde então não verifico o celular. Ela falou se era algo importante?

— Não, só disse que estava com saudades. E que ficou feliz por você ter se decidido voltar usar o celular, embora não tenha atendido suas últimas ligações.

Rosalie sorriu, apertando gentilmente o braço do avô aos seus.

— Sabe que até gosto dessa moça. Espero um dia conhecê-la pessoalmente. Ela me pareceu uma boa amiga.

— Ela é. Ela é sim. — o chá de repente pareceu atrair sua atenção. — Ainda tem? — se referiu à xícara de chá, em cima da ilha, que o avô antes usava.

— Não.

Rosalie pegou a xícara, olhando no fundo dela, como buscasse alguma revelação ali dentro.

— Que pena — disse por fim.

— Posso preparar uma para você — o avô ofereceu.

— Não precisa vovô, eu mesma faço isso. Vá descansar um pouco.

Norman beijou sua testa.

— E a tal senhora que cuida da menina depois da escola, apareceu?

— Não, nada ainda. Estou pensando em passar na casa dela amanhã, para entender o que aconteceu. Uma senhora na idade dela não some assim do nada. Algo pode ter acontecido.

— Bom coração — Norman murmurou, não aceitando que a neta duvidasse de sua bondade.

Rosalie assistiu ele sair da cozinha esbanjando satisfação e orgulho.

[…]

Emmett não conseguiu dormir, mas também não voltou a beber. Passou horas arrumando parte da bagunça da casa e levando o lixo para fora. Pouco antes do amanhecer, pensou em sair para correr, mas resistiu ao impulso de deixar Olívia sozinha. Acabou se exercitando na própria casa, usando a barra de exercícios que ficava no porão.

Quando a luz pálida da manhã se estendeu sobre a casa, ele subiu para tomar um banho e se preparar para o trabalho.

Foi pego de surpresa pela presença de Olívia dentro de seu quarto àquela hora da manhã. Ainda de pijama, a menina olhava o violoncelo de perto. Deslizou a mão pequena no mogno lustroso, tomada de satisfação. Pouco antes de tocar nas cordas com os dedos finos, notou a presença do pai na porta do quarto.

Pensando que pudesse puni-la por estar ali, correu para se esconder atrás da cortina.

Emmett balançou a cabeça.

— Pode sair daí, Olívia. Eu já te vi.

As cortinas se moveram de vagar, mas ela não saiu do esconderijo.

— Vai você primeiro — ele a ouviu sussurrar para a amiga imaginária.

— Vamos Olívia, estou esperando — Emmett insistiu.

Levou um instante mais, até deixar o esconderijo atrás da cortina. A cabeça baixa, as mãos, unidas na frente do corpo.

— Muito bem — ele murmurou. Olívia não reconheceu o tom de voz usado por ele. Não soube dizer se estava bravo ou não. — O que está fazendo aqui tão cedo?

— Arco-íris queria ver... — Ela mostrou o violoncelo com a mão.

— Quer dizer você? — Ele insistiu.

Olívia negou com a cabeça.

— Não, papai, a Arco-íris.

— Ok. Agora que Arco-íris já viu o violoncelo, vocês podem sair. Vou usar meu banheiro para tomar um banho, depois vou precisar do quarto para me vestir.

Pela primeira vez desde que a encontrou no quarto, Olívia olhou no rosto dele.

— Se vista para ir à escola. Encontre-me em alguns minutos na cozinha para o café da manhã.

Olívia sorriu para ele. E, por um momento precioso, ele esteve prestes a sorrir para ela.

Ela estava de barriga cheia, quando saiu para ir à escola aquela manhã. Enquanto brincava, contou os passos desde o jardim até a calçada, junto a amiga Arco-íris. As duas riram, quando tropeçou.

— Você precisa tomar cuidado.

— Você me segurou Arco-íris.

As duas continuaram andando quando, de repente, Arco-íris parou.

Olívia aguardou.

— Hoje você não vai precisar de mim para te acompanhar até a escola.

— Vou sim — Olívia insistiu. A expressão no rosto delicado tomando ar de preocupação.

— Olha para lá, Ollie — a amiga pediu, mostrando o ponto de ônibus. Olívia virou o rosto, não muito confiante do que encontraria. Um carro branco se aproximava em velocidade reduzida. Olívia pulou de alegria quando percebeu que era Rosalie ao volante.

— É a Rose! — Vibrou com os braços no alto. Arco-íris lhe sorriu.

O veículo branco diminuiu a velocidade parando alguns poucos metros de onde Olívia estava. Rosalie abaixou o vidro e pôs o rosto para fora.

— Oi, Ollie!

Olívia olhou a amiga imaginária antes de se aproximar do carro. Arco-íris lhe deu tchau. Segurando firme nas alças da mochila sobre os ombros, se aproximou da janela.

Rosalie sorriu para aquele rostinho salpicado de sardas.

— Rose! — Olívia cantarolou com empolgação.

— Oi, meu amor.  Bom dia. Você dormiu bem?

Um agitado movimentar de cabeça deu a Rosalie a resposta que esperava ouvir.

— Que bom. Vim hoje para levar você à escola. O que me diz?

— Legal! — um pulinho e um sorriso acompanhou sua resposta.

A porta do veículo foi destravada, em seguida, aberta para Olívia entrar.

— Vem por aqui — Rosalie sugeriu que entrasse pela frente.

Olívia precisou subir nas pernas dela, para passar com a mochila nas costas.

— Eu não sabia que você iria vir — contou.

— É que eu queria te fazer uma surpresa.

A mochila foi retirada das costas de Olívia por Rosalie e deixada no banco do carona ao lado da lancheira. Ela aproveitou para arrumar, com a ponta dos dedos, os cabelos ruivos bagunçados da menina.

— Que cabelão lindo — elogiou, arrancando um olhar de satisfação da criança em seu colo. — Agora, vai lá para trás, meu bem.

Olívia concordou, passando entre os bancos da frente para se acomodar no banco traseiro.

— Consegue pôr o cinto de segurança sozinha? — se certificou.

— Ahã.

— Perfeito. Fecha direitinho, porque já estamos indo. — Rosalie se sentiu impelida olhar na fachada da casa, se deparando com a figura grande de Emmett na janela do quarto, no segundo andar.

— Ollie, olha só quem está lá em cima, na janela.

Olívia largou o que estava fazendo, para olhar pela janela do carro. Olhando na mesma direção que Rosalie, encontrou o pai olhando para fora. Por um minuto inteiro, olhou para ele em silêncio. Num gesto automático, acenou com a mão. Para sua surpresa, por detrás da vidraça suja da janela, Emmett acenou de volta. Isso a fez tão contente, que a deixou sem saber o que fazer; Olívia pulou no assento, sorriu e acenou tudo ao mesmo tempo.

Foram inúmeras às vezes, num passado recente, que olhou na mesma janela esperando encontrar o pai acenando para ela e nunca havia acontecido antes.

Rosalie presenciou a cena com satisfação.

— O papai acenou para mim — contou empolgada.

— Ele acenou, sim — confirmou Rosalie, partilhando a animação da criança.

— E foi lá da janela — a menina lembrou com a mesma empolgação.

— Isso foi muito legal, não foi? — Rosalie acrescentou.

— Tchau, papai — Olívia se despediu e dessa vez usando a voz.

Rosalie olhou para ter certeza que Emmett ainda estava na janela. E ele estava.

— Pronta para ir, Ollie?

— Sim, muito, muito. Muito pronta.

A risada de Rosalie soou no interior do veículo.

— Aperte o cinto, meu amor.

Antes de sair com o carro, Rosalie olhou novamente na direção da janela, acenando para Emmett de maneira sútil. Imediatamente, meneou a cabeça se sentindo tola. Não havia motivos para ele acenar de volta, sempre havia deixado claro que era uma intrusa.

Após tomar certa distância da casa deles, olhou a mochila de Olívia no banco ao seu lado. Novamente, um pensamento lhe ocorreu sobre o objeto.

— Você gosta dessa mochila, Ollie? — dessa vez criou coragem de perguntar. Lembrando-se de sua infância, onde todas as coisas nas cores rosa e lilás lhe atraía como nenhuma outra.

Sentada no assento posicionado com visão entre os bancos da frente, ela conseguia ver Rosalie dirigindo.

— Foi o papai quem deu ela pra mim.

A resposta levou Rosalie ponderar.

— Você gosta dela por ter sido o seu papai quem te deu, entendi. Eu estava pensando, se não gostaria de ter uma em outra cor. Uma que você desejasse muito. Seria legal, não seria?

— Ahã. Uma de unicórnio ou da Barbie? — falou, mesmo achando difícil de conseguir.

— Você gostaria de escolher sua própria mochila de unicórnio?

— Sim. Gostaria muito. Mas eu não quero que o papai fique triste.

— Tenho certeza que ele não vai ficar.

Uma verificada no painel do carro lhe deu a confirmação que precisava. Havia tempo de sobra para uma mudança no trajeto até a escola.

— O que acha se passássemos na loja de departamentos para ver o que encontramos por lá?

— Legal!

Decidida, Rosalie mudou a rota.

— Vamos ver o que encontramos, então.

Definitivamente adorou assistir a criança empolgada contando sobre como imaginava sua mochila nova.

[…]

Após o carro sumir de vista, Emmett recolheu a carteira na mesinha de cabeceira, sua mão esbarrou no porta-retratos com a foto de Sarah, a mesma que sempre levava de um lado a outro, a fotografia onde Sarah aparecia de cabelos trançados.  Ele se lembrou de Olívia, recordou as tranças que Rosalie fez nos cabelos dela noutro dia, iguais as da mãe. E a lembrança mais recente, Olívia acenando de dentro do carro, se mostrando animada por ele corresponder. Naquele momento, tomou uma decisão.

Com o porta-retratos na mão, saiu para o corredor e então entrou no quarto de Olívia. Cada pedacinho trazia uma lembrança da mulher a quem tanto amou. Ele se aproximou da mesinha de cabeira e deixou o porta-retratos ali. Exatamente onde deveria ter estado por todo esse tempo.

Lembrou-se de haver, em algum lugar na casa, um álbum de fotografias de Olívia, retiradas na época que Cheryl ainda cuidava dela, só precisava descobrir onde.

Abriu o pequeno guarda-roupa, amargamente reconhecendo que a muito Olívia vinha precisando de roupas novas e também de calçados.

O barulho de uma cerra elétrica no jardim de algum vizinho, lembrou a ele que precisava ir trabalhar. Deu uma última olhada no porta-retratos e saiu para o corredor deixando a porta do quarto aberta.

[…]

Rosalie saiu da loja de departamentos, de mãos dadas com Olívia, depois de passarem alguns poucos minutos escolhendo a mochila perfeita. Olívia segurava a sacola que carregava sua mochila lilás e cor-de-rosa de unicórnios, sem esconder a alegria.

Entraram no carro e Rosalie a ajudou com a troca de material de uma para a outra, hesitando ao encontrar o cobertorzinho.

— O que acha de deixá-lo comigo hoje? Eu poderia lavar ele para você.

Olívia agarrou o cobertorzinho, se encolhendo no banco. A alegria em ter a mochila dos sonhos, desapareceu de seu rosto no mesmo instante.

— Não, né?! — admitiu Rosalie. — Ele é perfeito assim como é.

Olívia pareceu gostar do que disse.

— Vamos guardá-lo na mochila nova então?

Um movimentar sutil de cabeça demonstrou que Olívia concordava. Ela facilmente passou para as mãos de Rosalie seu precioso tesouro. Rosalie teve certeza de que era especial na vida da menina, pois, de todas as pessoas que ela conhecia, foi a única a quem permitiu tocar o cobertorzinho.

— Vamos deixar guardadinho bem aqui. — Fechou o zíper e sorriu para Olívia, que a surpreendeu com um forte abraço. Foi só quando a menina se afastou que percebeu que ainda precisava fazer mais uma coisa.

Vasculhou o porta-luvas em busca de uma caneta. Anotou seu número de telefone celular e também o telefone fixo da casa do avô e pôs na mochila nova junto ao número do pai da menina.

— Para o caso de precisar me encontrar — lembrou quando Olívia olhou com curiosidade.  — Você pode ligar em qualquer um deles, sempre que quiser.

Estava com cinco minutos de atraso, quando deixou Olívia finalmente na escola. Acabou voltando à rua onde Emmett mora, numa tentativa de descobrir sobre a Sra. Smith.

Não pôde deixar de olhar na casa dele ao passar por ela, ainda que soubesse que já não havia ninguém em casa.

Parou em frente a casa com duendes no jardim, saltou do carro e caminhou até a porta. Parecia não haver ninguém em casa, mas decidiu arriscar mesmo assim. Um gato cinza cruzou o jardim desaparecendo nos arbustos.

Ela tocou a campainha. Levou algum tempo até ouvir barulho de passos no assoalho e então a porta sendo aberta.

Um rosto enrugado e cabelos grisalhos surgiram no vão onde uma pequena corrente mantinha a porta entreaberta.

— Sra. Smith?

— O que quer na minha casa? — a vizinha de Emmett exigiu bastante incomodada com sua visita. 

— Só queria saber o que aconteceu? Olívia e eu esperamos a senhora para abrir a casa ontem, e a senhora não apareceu. Estivemos aqui, e também não obtivemos respostas.

A mulher soltou o pequeno gancho que prendia a corrente. Deu um passo para trás apresentando dificuldade em andar. Rosalie logo notou a bengala em sua mão e um dos pés numa bota ortopédica.

— A senhora se machucou?! — Deu um passo a frente tentando ajudá-la se movimentar na própria sala. A mulher negou sua ajuda impelindo-a para longe com o braço. — Desculpe — Rosalie recuou. Olhou de maneira discreta no entorno da sala se surpreendendo com a quantidade de objetos que havia na casa, porém, tudo muito limpo.

— Você não é bem-vinda nesta casa — avisou, virando de costas para Rosalie.

— Eu não esperava que fosse.

— Pois, bem! Diga o quer e vá embora!

— A senhora tem muitas coisas aqui. Muitos objetos.

A Sra. Smith se virou com a bengala erguida, feito uma espada apontando desafiadoramente para o peito de Rosalie.

— Diga logo o que quer e vá embora!

— Fiquei preocupada que algo grave pudesse ter acontecido.

— Não me venha com essa. — Se virou de costas novamente. — Eu não gosto de você e você não gosta de mim. Admita que o que queria era bisbilhotar na minha casa.

— É claro que não. Por que eu faria algo assim?

— Me diga você — a outra desafiou.

Rosalie olhou outra vez no pé machucado dela.

— O que houve com o pé da senhora?

— Machuquei, não está vendo?

A resposta grosseira deixou Rosalie desconcertada.

— Sim, mas, como aconteceu? — insistiu, um momento depois.

— Não tem importância agora. Não estive lá para abrir a porta porque precisei ir ao hospital. Satisfeita agora?

Rosalie viu as várias fotografias no console da lareira. Quando percebeu, estava fazendo uma nova pergunta.

— A senhora é casada?

— Viúva.

Ao tentar se aproximar das fotografias, esbarrou nos móveis que se acumulavam de forma exagerada. Sabia que estava sendo curiosa, até mesmo intrometida, mas não resistiu em buscar saber mais.

— A senhora tem filhos?

— Trabalhei demais durante minha vida, não me sobrou tempo para isso. Crianças dão muito trabalho.

— Não gosta de crianças, não é mesmo?! — Rosalie deduziu. — Por que aceita ficar com Olívia depois da escola, já que não gosta de crianças?

 — O pai dela paga para isso, então eu aceito. O dinheiro não é muito, mas ajuda com as despesas. Quando a idade chega, é necessário cada vez mais remédios.

Rosalie teve a impressão que ela gastava mais dinheiro com coisas inúteis que realmente com remédios como fazia questão de dizer.

Havia uma sequência de fotografias de uma criança, uma garotinha de cabelos castanho-claros, desde bebê até mais ou menos os dez anos de idade. Rosalie se viu imaginando quem seria a criança e por que não havia fotografias dela a partir dessa idade? Pensou que a Sra. Smith estivesse escondendo sua verdadeira história.

Estava prestes a pegar uma fotografia, quando a bengala da Sra. Smith foi posta em seu caminho. Um aviso velado para não se intrometer onde não deveria.

— Já fez perguntas demais. Agora vá embora!

— Tudo bem. Só entregue à chave da casa a mim.

— De que casa?

— Do pai de Olívia.

— Não tenho autorização para tal.

— Olívia precisa entrar em casa quando chega da escola.

— Ela vai entrar.

— Como?

A mulher levantou outra vez a bengala, cutucando a lateral do corpo de Rosalie de forma desafiadora.

— Dê o fora daqui — Seguiu cutucando Rosalie até ela estar do lado de fora de sua casa.

— Aquele lá nunca irá olhar para você, vive preso ao fantasma da falecida mulher.

Rosalie tropeçou ao pisar na varanda.

— Sra. Smith — advertiu ela.  — A senhora... — A porta bateu a centímetros de seu nariz com um baque forte deixando-a espantada, pensando na sorte que teve em não ter sido atingida. — Que grosseria! — queixou-se. Refazendo o trajeto de volta ao carro estacionado na frente da casa.

A Sra. Smith observou ela se afastar, espiando por uma brecha na janela.

Rosalie levou consigo o pensamento de que a vizinha de Emmett não havia lhe contado sua verdadeira história.

 


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