Vingança e exorcismo escrita por P B Souza


Capítulo 2
Fim DE TURNÊ




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O helicóptero encostou no heliporto em cima da minha casa, eu pulei para fora dele, a cabeça abaixada. Meu penteado já era, mas não preciso estar tão bonito, porque bonito eu sempre estou, esse é meu estado natural!

O mordomo, Julius, veio correndo assim que eu saí de perto do helicóptero.

— Bem-vindo de volta, senhor. — Ele disse, com aquela voz polida, mas eu estava rouco e por isso não o respondi.

Tirei o terno que usei na entrevista que dei há pouco tempo, entreguei para que Julius cuidasse dele, lavasse a seco ou a molhado, realmente não me importava com isso.

— Quero ostras. — Eu disse, me lembrando da entrevista, onde Jim Carson e eu conversamos sobre frutos do mar, e ele falou de ostras, eu disse que hoje ia jantar ostras. Ninguém tinha como saber se eu tinha comido ostras ou não, tudo bem, talvez tenham como saber, mas eu disse que iria comer, esse comprometimento com minha própria consciência não podia ser rompido, e por isso, mesmo que ninguém soubesse eu tinha que comer ostras.

Na hora da janta eu pretendo tirar uma foto do prato, colocar no Instagram, vai ter uns nove milhões de likes, fácil.

Eu tinha acabado de fazer meu último show, na madrugada até as oito da manhã, ninguém faz shows de sete horas de duração, só eu! Ninguém é bom como eu. Por isso elas me adoram. Então fui pra Miami naquele show de perguntas estúpido, eu nunca gostei de assistir televisão, muita bobagem, mas o cachê era bom e meu agente disse que ia ser bom para a moral, achei um absurdo desde o momento que recebi o roteiro com as perguntas que Jim Carson faria e os momentos em que eu deveria rir e interromper ele com uma coisinha engraçada ou outra para dizer... nossa, eu simplesmente ignorei o roteiro.

Cheguei nas escadas e desci seus degraus pulando de dois em dois, e quando cheguei na sala eu me joguei no sofá, livre. Quando a turnê acaba pode-se ter um pouco de tranquilidade, aquela entrevista foi minha última aparição pública. Depois disso só daqui um ou dois meses... vai depender do meu agente, eu bem sei.

Essa semana ia ser tranquila, chamar umas vadias e fazer uma orgia na segunda-feira para terça, terça-feira os jornais vão falar sobre isso porque uma das vadias vai dar com a língua nos dentes. Quinta-feira eu vou comprar uns baseados para ficar loucão com meus manos, mas isso ninguém pode saber.

E no sábado outra orgia, com foto depois do sexo para o insta. As novinhas adoram isso, e ainda consigo sair nos jornais online de fofoca.

É incrível o que o dinheiro faz com você, eu sempre me considerei bom, mas o dinheiro fez por mim algo que ninguém poderia fazer. O dinheiro acendeu um holofote que faz tudo ao meu redor parecer ruim e escuro, e só eu tenho espaço para brilhar! Brilhar no bom sentido, não como aquele vampiro gay.

Jogado no sofá eu podia sentir o cheiro saindo da camisa pelas axilas, eu, para ser sincero, não me incomodo com meu próprio odor, mas me acostumei com essa vida “pé no saco”, e por isso fui tomar banho, tirando a roupa no caminho, pensando em quantas garotas iam dar tudo que tinham só para me ver, umas se cortariam com gilete para poder me tocar, outras ameaçariam se matar tentando me chantagear a deixa-las me tocar. E eu deixaria, só é preciso... ser gata.

Eu sou rico, é verdade, mas não sou tão metido assim, eu podia ser muito mais metido e esnobe, mas não sou! Eu sou como sempre fui antes da fama e do dinheiro, só que agora os jornais realçam as coisas que eu faço, e sou julgado por elas, os tabloides dão atenção e se eu for grosso com uma criança, bem, então eu sou processado. Mas sabe o que é engraçado? A hipocrisia das coisas! Isso é engraçado! Porque até cinco anos atrás eu não era famoso assim, e Deus sabe o tanto de menininha que eu peguei, o tanto de pivete que eu fiz chorar e o tanto de mané que eu espanquei até minha mão doer, e ninguém nunca se importou com isso! São interesseiros, são cobras sanguessugas essas pessoas, tem tanta gente aprontando por aí, mas elas focam em quem tem dinheiro. É por isso que estamos na merda, a sociedade está na merda!

Quando eu saí do banho foi como se todos esses pensamentos descessem pelo ralo junto da água. Meu negócio era cantar e ser gostoso, não ser esperto. Embora eu fosse esperto também.

Peguei o celular da pia do banheiro e desembacei o espelho com a mão, olhando meu reflexo distorcido no vidro, sorri enquanto abria o aplicativo a câmera e tirava uma foto pegando do meu rosto até o começo dos pelos pubianos, os músculos do abdômen forçados, mas o sorriso escondia a força, a foto meio indescritível era ótima por isso, sua falta de precisão devido o vidro embaçado era o que eu procurava. Enviei para cinco garotas da agenda, uma delas eu nunca falei antes, ela, com toda certeza, ficaria surpresa – e eu sabia que a foto não vazaria, todas as cinco já tinham passado pelo meu agente, e as cinco vieram até meu conhecimento através de amigos, aquela foto era nada menos que um jeito de deixa-las assanhadas.

Deixei o celular de lado enquanto me vestia e o aparelho apitava com as respostas às fotos, cuecas boxer, calça de moletom larga, uma regata branca do meu time de infância, assinada por Pete Peterson, melhor da liga de baseball, como eu gosto desse cara, aquela partida em especial... para sempre guardada na memória, eu me lembro de quebrar a porca de porcelana que enchia há três anos para ir naquele jogo e meu pai ainda brigar comigo por querer comprar a regata do time, ainda era novo na época, a regata que comprei foi uma branca lisa e sem desenho algum, mais barato, e consegui que Pete assinasse, na época a roupa era maior do que eu, chegava nos meus joelhos, agora a regata era quase que pequena. Não que eu reclamasse, mas eu até gostava, camisas brancas e apertadas ressaltam o trabalho do peitoral! E eu não fico malhando à toa não é mesmo?

Voltei para a sala, mas o cheiro de comida me fez ir jantar logo em seguida.

Foi um jantar rápido, como estava de férias eu poderia comer pizza e Mc Donald sem ninguém reclamar, eu poderia beber água gelada e perder a voz, eu poderia até ficar doente na cama sem me preocupar em entrevistas e shows e encontros!

Durante a janta eu consegui comer duas ostras, mas nossa, isso é nojento. Fui à cozinha e fiz meu lanche, sempre tinha salsichas e pães e hambúrgueres e picles, eu sempre tinha um X-Burger caso não quisesse o que pedi.

Quando terminei de comer meu lanche – muito – feliz eu senti um estranho frio, mas o termostato estava mantendo a casa aquecida, lá fora estava frio, ainda não nevava, mas era inverno.

Retornei à sala, ver TV.

Depois de um tempo assistindo minha série favorita por streaming eu fui para o quarto, eu tinha minha TV lá, mas preferia a da sala por causa da acústica.

Estava subindo a escada quando ouvi a porta se fechando lá em cima. Eu parei no meio da escada, tentei aguçar meus sentidos e ouvir melhor, dei mais um passo e a madeira embaixo do meu pé rangeu, eu poderia ter suado frio e imaginado coisas, mas no mesmo instante o rosto de Julius apareceu no topo da escada.

— Senhor... — Julius me olhou confuso e eu voltei a subir. — O quarto está pronto, já vai dormir?

Por um segundo tinha me esquecido, Julius sempre sobe para garantir que o quarto está arrumado e do jeito que eu gosto, mas eu só costumo subir mais tarde.

— Cansado. — Respondei passando por ele, e Julius anuiu com um sorriso típico dele. — A propósito, não me acorda amanhã não. Tá.

— Sim senhor!

Ele respondeu, então voltou a descer as escadas e eu a subi-las.

Estava realmente cansado, e acho que por isso estava indo dormir tão cedo, não era nem onze horas.

Passei pelo hall, a mesa no centro tinha um incenso queimando, a porta do meu quarto estava fechada, o cheiro era forte ali, mas no quarto estaria suave e aquilo me acalmaria. Quando abri a porta do meu quarto e entrei eu senti o cheiro enfraquecendo conforme fechava a porta atrás de mim.

O quarto era grande, por isso tinha temperatura controlada, como quase todos os cômodos da casa. Me deitei e me cobri, apenas um edredom fino, não estava frio no quarto.

Tirei as calças e a camisa, deslizei a mão pelo meu peito brincando com os pelos no centro, olhava para cima, o teto branco e vazio.

Desci a mão pela minha barriga até que estivesse em cima da minha cueca, apertei com pouca força, tirei a última peça de roupa e joguei tudo ao lado, livre. Antes da fama eu não gostava do meu corpo, mas a academia, os treinos, os esteroides, os suplementos... depois de tudo isso, é impossível não gostar do meu corpo!

Fechei os olhos, de barriga para cima, respirando com tranquilidade eu sentia o peso das horas cantando finalmente chegar. Não demorou muito para que eu adormecesse, e acordasse.

O cheiro me fez torcer o nariz, e agora eu já estava virado de lado, embolado no edredom. Tentei ignorar o odor – carniça –, mas não consegui, depois de me virar na cama por quase cinco minutos eu joguei o edredom para o lado, a cama de casal era enorme e o edredom não caiu.

Passei a mão pelo sensor dos abajures e eles se acenderam, minha sombra foi lançada contra o chão conforme eu me levantava. Eu girei pelo cômodo, o sofá ao lado da estante de livros que nunca li, a televisão na parede, a porta do closet, a porta da sacada, a porta de entrada do quarto, a cama, os dois criados-mudos, não tinha nada ali que pudesse estar fedendo, em especial fedesse carniça.

Então fui até a porta da sacada, na extremidade oposta à da porta de entrada do quarto. Quando eu abri o vento gelado fez todo o meu corpo tremer, os pelos se eriçarem, e eu rangi os dentes uma única vez. Olhei para o chão, nenhum animal morto, mas o cheiro não vinha dali e o vento gelado da noite não trazia odor se não do orvalho.

Fechei aquela porta e fui para a extremidade oposta, abri a porta e o cheiro de incenso ainda era perceptível no hall do corredor. Ainda estava nu, mas não me preocupei. Quando me virei para voltar para a cama senti o cheiro novamente, a porta se fechou atrás de mim e eu não lembrei de tê-la empurrado. Foi só então que eu percebi que estava de joelhos no chão, a vista embaçada.

Abri a boca e as ostras que jantei voltaram por onde entraram, o gosto ruim daquela refeição estava pior ainda com o ácido do estômago.

E quando levantei a cabeça eu pude ver a silhueta na sacada, um corpo feminino e nu, ainda jovem, me olhando. Mas então, em um piscar de olhos, eu estava na sacada, tremendo de frio e voltando para dentro, sem saber de onde vinha aquele fedor de carniça...

Assim que entrei e fechei a porta eu senti o cheiro aumentar, e decidi ir até a porta de entrada do quarto ver se o cheiro vinha do corredor, mas nem precisei ir tão longe, quando cheguei no pé da cama eu pude ver a poça de... O que é isso no tapete?

Não tive tempo de me responder, acordei.

Gelado e descoberto com o edredom jogado no chão, duro e melado de um prazer que não tive, na verdade, eu estava aterrorizado, cansado e sentindo-me enjoado de uma ressaca da qual não bebi.

Estiquei o braço para o criado-mudo e peguei lenços, limpei minha barriga e a virilha e o pênis, confuso, não tinha me masturbado, fazia tempo que não me masturbava, fazia tempo que não precisava.

Então a barriga de um nó e eu me senti prestes a vomitar de novo, olhei para o chão, o edredom estava em cima do vomito, e eu tive nojo por um momento, mas em seguida me sentei na cama e tentei organizar a mente, entender melhor o que estava acontecendo.

Me estiquei e puxei o edredom com cuidado, mas não tinha vomito algum ali embaixo, eu não tinha vomitado! Mas estava com frio. Ali dentro estava frio.

O controle de temperatura do quarto ficava do outro lado, na entrada do closet, o meu controle remoto tinha quebrado, pisei em cima dele e precisava comprar outro, ou pegar outro, mas estava sem a uns dias e tinha me esquecido de pedir outro para Julius.

Me levantei da cama, senti a sola dos pés doendo, a barriga embrulhada querendo jogar tudo para fora, a excitação já tinha passado, agora o membro mole balançava a cada passo, batendo na coxa esquerda e direita.

Cheguei ao controle na parede e girei o botão, mas já estava onde deveria estar, já devia estar quente, Julius tinha deixado ligado, ainda estava ligado.

Dei dois tapas na placa frontal do controle na parede e girei o botão para trás e para frente, o frio era insuportável, mas a dor na barriga me fez empurrar a porta do closet, as roupas pareciam assustadoras no escuro, como braços de árvores querendo me abraçar, foi um pequeno vislumbre que me fez lembrar das fãs nas entradas dos shows, querendo me agarrar, querendo me tocar... então os sensores ascenderam as luzes no outro segundo, eu abria outra porta e cai de joelhos no chão, me agarrei na privada e vomitei enquanto fechava os olhos, o vomito subindo pela minha garganta, aquele gosto azedo e amargo, eu senti meu corpo esquentando conforme vomitava, engasgava e o ar faltava, vomito escorria pelas narinas, e eu tentava respirar, afobado, afogado... quando o último fio de saliva escorreu pelos meus lábios eu me sentei no chão e encostei na parede, respirei fundo aproveitando o ar, mas o fedor de carniça ainda era forte, mesmo assim, era ar, a falta dele realmente era horrível. Levantei e virei, lavei a boca no lavatório ao lado e escovei os dentes.

Que horror de noite!

Pelo menos estava quente de novo.

Abaixei para enxaguar a boca e quando me levantei o espelho não tinha meu reflexo nele! Olhei para trás, girei nos calcanhares, e quanto mais girava mais me perdia, as paredes se desfaziam e eu estava em pé no vazio com um espelho quadrado e sem moldura, flutuando na minha frente, mas eu não era refletido ali, até que eu girasse de novo, então vi no espelho uma mancha negra que expandiu, o vidro se quebrou e sumiu no espaço, tudo era branco, eu recuei e tropecei em algo que não existia e eu cai. Gritei!

Mas o teto pareceu estar a centímetros da minha cara, eu caí na minha cama, quente demais para ficar nela. Senti o cheiro de carniça, o calor, as paredes pareciam ondular como asfalto em uma rua no verão.

Eu queria acordar.

Eu só queria que aquilo acabasse, eu só queria voltar a cantar depois das férias.

Então a silhueta feminina saiu do closet, era uma criança, não mais que dezesseis ou dezessete anos, os peitos quase inexistentes e uma bunda seca, ela me contava tudo, eu podia ver tudo, eu não a reconheci na hora, toda aquela história, os pedidos aos pais, o tempo juntando dinheiro, então o show.

Como poderia reconhecer ela? Era só mais uma menina que eu recusei! Só mais uma fã decepcionada. Eu nem fiz nada demais, eu só a neguei!

Eu tinha tantas fãs, que famoso espera morrer pelas mãos de seu fã? John Lennon poderia falar sobre isso!

Eu jamais teria esperado por isso. Ela não estava ali, não estava no quarto, ela não tinha invadido minha casa!

Ela tinha me invadido. Ela estava em mim.

Ela estava morta!

Ela estava tentando me matar.

E eu não ia deixar!

Ela queria que eu a deixasse entrar, queria meu corpo porque eu não quis o dela! Era louca.

Eu ouvi a porta do quarto se abrindo, Julius provavelmente tinha ouvido o grito quando eu caí da cama, mas eu estava muito preocupado com a garota dentro de mim, querendo... eu provavelmente fiquei louco.

— Boa sor...

Falei para ela, então senti aquela dor... não pude terminar a frase, Julius olhou preocupado para mim. Eu teria gritado, a dor não foi no meu corpo, foi além, partiu minha alma, me quebrou. E eu não podia mais cantar, não podia mais falar, não podia, nunca mais.

Ela estava me destruindo, me matando, me atacando, quebrando pedaços de quem eu era... não parece possível, mas ela estava me possuindo aos poucos, quebrando quem eu era, me desfazendo, me levando a loucura e me desmontando e apagando... E no final eu só não... eu tenho que lutar!


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