Vingança e exorcismo escrita por P B Souza


Capítulo 1
ÚLTIMAS LEMBRANÇAS




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Quando eu acordei já não dava para fazer mais nada, embora eu tenha tentado. Eu nem chamaria aquilo de acordar, talvez fosse um despertar. Quando aconteceu eu era imatura e insegura, não tinha noção das coisas, e estava com ódio. Mas agora eu sei que o que eu fiz foi transcender a situação para poder evoluir.

Dias antes de transcender aconteceu algo comigo, eu nunca tinha estado tão triste, e quando falo “triste” não quero dizer uma simples tristeza, minutos atrás eu tinha sido humilhada, humilhada e maltratada e ridicularizada... eu admito, naquele momento eu perdi meu chão e quis, muito, matar todos ali. Mas eu não fiz isso.

Como eu era burra, ingênua, imatura. Cheguei mesmo a acreditar... não, se esse tempo aqui me serviu de algo foi para entender, eu sempre soube! Sempre! Mas preferi mentir para mim mesma, e agora não tem mais volta, mas estou prestes a tomar outra decisão, uma que jamais poderá ser desfeita.

Naquela mesma noite eu decidi me matar. Não valeria a pena continuar vivendo se minha razão de viver tinha, tão descaradamente, me desprezado. Mas ao invés de morrer, como eu planejei, ao olhar para baixo, pelo beiral do terraço do prédio onde eu morava, eu ouvi uma voz me chamando. Era Kyle Peterson, ele era esquisito, feio, magro, usava sombra de olho, pintava as unhas de preto e ouvia músicas estranhas e nojentas. Ele também era doente, ou pelo menos eu julgava-o assim. Ele era a escória do prédio, ninguém gostava dele e das roupas pretas com metal. Eu podia odiá-lo por estar ali e ter me impedido de pular, mas já estava odiando muitas pessoas naquele dia, incluindo a mim mesma, então perguntei o que ele fazia ali, e ele disse que ia ali, no terraço, para pensar. Eu teria duvidado, mas ele era estranho e confuso e eu nunca tinha ido ao terraço, então não saberia dizer se era verdade ou não que ele vinha ao terraço para pensar, tal como alegava.

A gente conversou por quase duas horas, sobre o que tinha acontecido com ele, sobre como ele estava encrencado com a polícia, e eu expliquei como minha situação era muito pior que a dele, contei praticamente tudo, não porque eu queria, mas porque o energético com vodca não me deixou muitas escolhas, e o Kyle era legal, até aquela mão na minha cintura era legal. Eu só percebi, tarde demais, que a mão dele estava passando no meu peito, no meu ombro, no meu braço... Como eu pude ser tão idiota e cega? Eu me perguntei isso por muito tempo depois que aconteceu, mas chega uma hora que você se cansa de perguntar a mesma coisa, e aí decide agir... é incrível o que podemos fazer depois de transcender. Mas não se preocupem, vocês terão essa oportunidade, todos temos. Mas não recomendo.

Quando percebi já era tarde demais para fugir, aquela língua dentro da minha boca, o gosto seco de cinzas de cigarro, os lábios descascados contra meus lábios, foi um longo beijo. Quando terminou ele puxou a mão do meu braço, e eu senti, ele não estava me segurando para um beijo, ele estava me beijando para me distrair, e então uma pequena bolinha vermelha surgiu onde minha veia ficava, o sangue brilhando com o luar.

— Você...

— Você vai curtir, gatinha. Isso é muito louco.

Ele me respondeu, e eu comecei a sentir meu sangue fervendo, eu me lembro de sentir meu sangue esquentar enquanto a visão ficava turva e eu me colocava de pé, enquanto tudo parecia balançar, como quando eu estava no barco no Mar Morto com meu pai, naquela viagem do ano retrasado, foi uma boa viagem.

Foi difícil não cair, mas eu consegui, então comecei a andar para os limites do prédio, onde eu poderia subir no arco-íris... eu até vi uma fada.

— Menina, você vai cair.

Ele me agarrou de novo e a droga no meu sangue pareceu fraquejar por dois segundos e eu vi, se desse um passo a mais eu morreria, como eu tinha planejado no começo.

Kyle foi gentil, eu acreditei naquele instante, então minha vista ficou turva, minhas pernas fraquejaram e eu só consegui ver ele falando alguma coisa, sua boca mexendo sem sentido algum, não entendi uma única palavra... transcendi. No outro dia todo mundo sabia, ele não tinha sido gentil. Minha mãe foi quem chegou à conclusão que Kyle não era gentil, que ele era um tarado abusador. E quando a autopsia chegou todas as teorias da minha mãe se foram, ele não tinha me estuprado, até eu achei isso estranho, porque eu não consigo me lembrar dessa parte do ocorrido, me falaram que eu bloqueei isso, um evento chocante demais, muitos bloqueiam quando transcendem.

A causa da morte foi overdose.

Kyle foi preso por um curto período de tempo, eu vi tudo, é uma das vantagens, você pode ver tudo. Ele disse que nunca quis me matar, ele disse que impediu que eu me jogasse do terraço, ele contou toda a verdade, a mãe dele chorou muito, a minha mãe chorou muito, meu pai quebrou a mão socando o carro, de raiva, mas Kyle não tinha pai. No final ele foi internado, psicologicamente instável, disseram.

Eu percebi que é um mundo um tanto injusto onde vocês vivem, a verdade é facilmente esquecida, ou simplesmente ignorada. Isso me fez ver que eu não poderia resolver nada se estivesse viva.

Então cada dia que passei aqui foi um dia de lição até a decisão final.

Quando você transcende a vida humana muitas coisas se tornam simples, na verdade todas as coisas se tornam simples, o que se torna complicado é o novo e desconhecido, as novas leis, as regras, o jogo... você precisa aprender tudo de novo.

Eu demorei dois anos para aprender, felizmente nosso tempo é diferente, e dois anos foi tão rápido como um dia, já que passamos aqui toda a eternidade.

Depois de transcender eu conheci Viviane, uma adorável boa alma que tratou de explicar tudo, ela era uma das muitas almas que vagavam por ali, tratando de ajudar os ‘recém-chegados’ a se habituarem ao novo ambiente. Eu contei minha história, e disse o que eu queria fazer, e ela me explicou o que aquilo faria comigo, os riscos, o preço a pagar, mas a única coisa que eu vejo é o ódio.

Parada na frente dos portões trancados da mansão eu sinto o ódio fervendo o sangue que eu não tenho mais, como a droga o ferveu antes, eu sinto a culpa de ter sido tão ingênua e estúpida em pensar que ele se importaria, e eu sinto à vontade de me vingar e pela primeira vez eu sei que tenho o poder de me vingar, eu posso me vingar. Não existem portões, paredes, muros ou portas que podem me deter. Nenhum segurança para me segurar agora.

Eu morri por ele, agora ele vai morrer por mim.


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