Sonhos de Grãos de Areia escrita por LaviniaCrist


Capítulo 4
Cumprimento


Notas iniciais do capítulo

Eu aconselho para lerem enquanto ouvem a música Rhapsody de Rachmaninoff (tem o link dela nas notas finais).



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A noite estava bem mais silenciosa do que o normal, sendo possível ouvir os grãos de areia que o vento levava chocarem-se contra o vidro da janela. O céu parecia pintado de negro, com o brilho da lua e das estrelas sendo ofuscado por uma densa névoa de poeira, uma tempestade do deserto. Observando a tudo, o Kazekage, Rasa, lutava desesperadamente contra o sono.

Os dias cansativos no trabalho, a vida atribulada em casa, o cumprimento de todos os deveres fazia com que Rasa escolhesse passar horas acordado, sozinho em sua sala, do que se deitar e tentar dormir.

O motivo para isso era bem simples e fácil de entender: a culpa sempre o torturava mais quando ele deitava na cama e olhava para o vazio deixado pela esposa.

Não era somente o sentimento de culpa que andava o incomodando nos últimos dias. Havia também uma dúvida que conseguia corromper todos os seus julgamentos em relação ao seu filho mais novo: ele quem matou a esposa quando sentenciou-a a gerar um receptáculo para o Shukaku ou Gaara já nascera com a vontade de matar, herdada pela besta dentro de si.

— Ou foi destino? — ele murmurou para si mesmo, como se tentasse responder às próprias perguntas.

— Divagando sobre o destino de novo? — esta voz melodiosa e calma pertencia a uma pessoa que saiu de sua vida anos atrás, não seria possível que Karura estivesse ali.

O Kazekage se levantou apressadamente, olhando na direção de que vinha a voz. Ele sentiu as pernas bambearem e pela primeira vez, em muitos anos, sentiu o coração ficar descompassado.

— K-Kar-rura?

— Não adianta tentar se fazer de surpreso ou desentendido... — apesar de tentar parecer irritada, colocando as mãos na cintura, ela só conseguia ficar ainda mais adorável — Precisamos ir logo — ao final da fala, ela sorriu e virou-se de costas, em direção à porta.

— Você veio me buscar? — foi tudo o que a mente de Rasa conseguiu dar como explicação para aquilo.

— Vim! Sozinho é que você não vai, não é mesmo? — ela riu, uma risada deliciosamente espontânea.

Ele deu alguns passos na direção dela e parou.

Aquilo não poderia ser real, não poderia estar acontecendo! Ele era um homem centrado, objetivo, com a mente e a razão no lugar!

Mas que se dane tudo isso...

Se a esposa estava vindo pessoalmente busca-lo, que direito ele teria de recusar? Ela veio tirá-lo daquele inferno de vida, do meio daqueles problemas, do meio da existência vazia que tudo havia se tornado para ele...

Eu aceito ir!

E assim foi.

Ambos andaram lado a lado pelo corredor. Rasa fez questão de andarem bem próximos um do outro, de mãos dadas, coisa que jamais fez antes e sempre se ressentiu.

Ele esperava ser levado para fora, talvez em direção aquela nuvem densa de areia que circundava toda Sunagakure, ou quem sabe ela pediria para que ele usasse o pó de ouro para flutuarem e observarem as estrelas... Só não esperava ser levado até a sala de jantar da própria casa.

Apesar de não ser um homem extravagante, ele se imaginava morto em um campo de batalha defendendo sua aldeia, até mesmo em uma luta contra o próprio filho, mas jamais se imaginou morto em sua sala de jantar.

Patético...

 Aceitar que havia morrido e a esposa teria vindo busca-lo foi fácil, mas o Kazekage jamais aceitaria que todo o valor de sua vida fosse rebaixado por morrer ali, entre as cadeiras e a mesa...

Aquele pensamento tortuoso se manteve até que outras duas presenças, pequenas, finalmente foram notadas naquele mesmo lugar.

— Já podemos acordar ele? — Kankuro disse animado, correndo pelo cômodo e segurando um embrulho verde nas mãos.

— Diz que sim, diz que sim... — Temari também parecia animada, mas ela segurava um urso de pelúcia e se mantinha de frente para os pais.

— Podem, mas sem gritaria — a voz de Karura conseguia se tornar ainda mais melodiosa quando ela falava com os filhos, o que fez um leve sorriso se esboçar nas feições do marido.

As crianças saíram correndo, depois de deixar o que levavam nas mãos sobre a mesa. Reparando ao redor, Rasa finalmente notou a decoração simples de uma festa de aniversário, com direito a até mesmo um bolo enfeitado.

— É aniversário de...

— Gaara — a mulher respondeu antes mesmo da pergunta ser propriamente feita — Eu não vou pedir para que você decore a data do aniversário dele, mas...

Gravar aquela data foi fácil, pois o Kazekage nunca encarou como o aniversário do filho, mas sim como o dia em que se tornou viúvo.

— Por favor, fique feliz pelo nosso filho comemorar mais um ano de vida — ela completou, com um sorriso alegre e contagiante, como se soubesse o peso daquela data.

— Vou tentar — foi tudo o que Rasa conseguiu responder, sentindo o gosto amargo de culpa novamente.

Ainda mantendo o sorriso, Karura se aproximou dele e afagou os cabelos com a cor opaca devido ao estresse. Aquele carinho foi algo que fez falta por anos, ele queria aproveitar aquele gesto afetuoso por mais tempo, mas assim que as crianças retornaram ele foi cessado.

— Feliz aniversário! — todos, com exceção de Rasa e Gaara, disseram alegres e ao mesmo tempo, enquanto a criança de cabelos vermelhos caminhava em direção aos pais.

O pequeno não disse absolutamente nada, apenas se deixou ser pego no colo pela mãe e colocado de pé em uma das cadeiras, de frente para o bolo. Ele não parecia contente como todos, talvez devido ao sono interrompido para que ele estivesse ali.

Aquela era uma das poucas - se não a única - vez que Rasa se sentiu totalmente a vontade e tranquilo com todos os filhos perto. Talvez fosse devido ao ambiente descontraído, talvez por já nem entender mais o que estaria acontecendo ou, talvez, porque pela primeira vez notou o quão parecido ele e o caçula eram.

Os dois estavam calados e apesar da alegria, não sorriam abertamente.

— Os cumprimentos... — mesmo parecendo um tanto tímido, Gaara fez questão de se pronunciar quando todos olhavam para ele.

— O que, querido? — a mãe indagou sem entender bem o motivo, enquanto os irmãos encaravam-no curioso.

— O papai não vai me dar os cumprimentos? — mesmo que a pergunta fosse para Rasa, o filho não olhava diretamente para ele, fazendo com que pela terceira vez o gosto amargo da culpa tomasse conta da boca do Kazekage.

— E por que eu te daria meus cumprimentos, Gaara? — ele tentou, se empenhou, mas não conseguiu sorrir para tentar recuperar o clima contente.

— Porque Kazekages são formais, então eles dão os cumprimentos... — dessa vez, o ruivo olhou diretamente para o mais velho.

Eu sou... formal?

Aquela pequena frase parecia mais uma piada do que uma resposta cabível, já que as gargalhadas de Rasa não puderam ser contidas. Todos aqueles anos o filho via seus diálogos curtos como formalidade e não abandono? Como aquele ser que sempre foi encarado como um monstro poderia ter pensamentos tão infantis e inocentes!?

— Meus cumprimentos, Gaara. — quando finalmente recuperado da crise de risos, Rasa falou em tom formal, apesar de levar uma das mãos até os fios vermelhos e tentar reproduzir o carinho que tinha recebido da esposa momentos antes.

A criança sorriu e virou-se de frente para o bolo mais uma vez, um tanto corado.

O canto de uma música de aniversário se iniciou pela voz melodiosa de Karura, sendo acompanhada por Kankuro e Temari. Eles também batiam palmas em ritmo a melodia. Quando deu por si, até mesmo Rasa estava cantarolando.

Ele fechou os olhos pensando em todas as vezes que aquela data foi desperdiçada com tristeza, enquanto ele se lamentava pela morte da esposa, quando poderia ser aproveitada com a alegria que preenchia aquela sala...

Impossivel!

Ele permaneceu de olhos fechados, agora sem cantarolar ou sorrir.

Sem Karura nada disso vai ter o mesmo valor... Nada!

O pensamento egoísta parecia tê-lo deixado cego. Ele se concentrava em enumerar todas as infelicidades de não ter a esposa por perto ao invés de aproveitar aquele momento.

Quando deu por si, notando que estava estragando aquele pedacinho de alegria, abriu os olhos e encarou a grande janela do escritório novamente. A noite silenciosa, fria e triste.

— Karura? — ele olhou em sua volta — Karura, me perdoa, eu... E-eu... Por favor, me leva de novo com você, prometo que eu vou aproveitar dessa vez! — pela quarta vez, sentiu o gosto amargo de culpa naquela noite.

Ele se manteve sentado, tentando ignorar o ardor nos olhos e a vontade de deixar as lagrimas escorrerem pelo rosto. Aquela pequena chance de aproveitar a companhia da esposa mais uma vez, de finalmente ter uma família, havia se esvaído enquanto ele guardava rancor...

Quanto mais eu preciso pagar?

Apesar de se perguntar, sabia que jamais iria ter uma resposta.

Passou-se o tempo e ele permanecia ali, sentado, se remoendo por estragar tudo mais uma vez e tentando guardar cada detalhe daquele sonho consigo.

Ouviram-se leves batidas na porta.

No mesmo momento, ele se levantou e encarou a pessoa de pé, chegando a sorrir. Mesma altura, mesmo cabelo... Mas os olhos... Aqueles não eram os olhos azuis que se assemelhavam a joias, eram apenas os olhos castanhos de seu cunhado.

— O que quer? — ele retomou a face apática e sentou-se novamente.

— Vim informar que a maioria das pessoas já foram evacuadas, já podemos dar continuidade ao planejado — Yashamaru disse calmamente, se mantendo no mesmo local.

— Tem certeza que quer continuar? Você não precisa fazer isso se não quiser... — mesmo que sob pressão dos conselheiros, Rasa tinha expectativas baixas demais sobre o filho e sabia no que tudo aquilo resultaria.

— Mas eu quero.

O Kazekage encarou o subordinado novamente.

Falhei como marido, falharei como líder de Suna e falhei como pai, porque eu não consegui amar o meu filho, mas tentei exigir que os outros amassem.

— Não me surpreendo em você querer — a voz saiu fria.

Pela quinta vez naquela noite Rasa sentiu o gosto amargo da culpa, enquanto observava o cunhado ir de encontro à Gaara, para espedaçar o coração daquela criança e matar o pouco de amor que ainda restava ali, cumprindo o dever que lhe foi ordenado.

Quanto tudo se deu fim, o monstro dentro de Gaara foi libertado e Rasa já havia se afogado naquele gosto amargo de culpa e ressentimento.

Enquanto ajudava as poucas pessoas que ainda estavam na cidade a fugirem, três frases ecoavam na mente do Kazekage:

Por ter criado este monstro dentro do meu filho, dou a mim mesmo os meus cumprimentos. Por ter estragado a vida dele, dou a mim mesmo os meus cumprimentos. Por ter sido um péssimo pai, dou a mim mesmo os meus cumprimentos.

 


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Notas finais do capítulo

Link da música: https://www.youtube.com/watch?v=RgtEUr_n9vM
Espero que tenham gostado!
Sugestões, dicas, críticas e observações são muito bem-vindas.
Quem se interessar em ler mais de minha autoria enquanto não posto o próximo capítulo, tenho outras fanfics: Gaara Chibi, Crime das Flores e Guia Gejimayu: como viver em tempos de paz!



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