O Legado de Avalon II: A Profecia do Condestável escrita por Goldfield


Capítulo 2
Capítulo 1: A chácara de Merlin de mimimis maravilhosos




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Capítulo 1

A chácara de Merlin de mimimis maravilhosos

Abriu os olhos, e a intensidade da luz entrando pela janela do quarto informou-o que o sol já estava alto. Sentou-se com pressa na cama, chegando à conclusão de estar atrasado para a escola.

Levou três segundos até se lembrar que era sábado.

Agora calmo, Aurélio permaneceu sentado por bons instantes, ouvindo os passarinhos do lado de fora. Estava apenas de bermuda, a bainha da Excalibur presa por uma alça ao tórax sem camisa. Merlin já devia estar de pé, e o café pronto. Como o garoto não queria receber uma reprimenda do mago por acordar tarde, em mais um de seus manjados discursos sobre aproveitamento do tempo e os benefícios do clima matinal, acabou por levantar.

Pulou da cama até o guarda-roupa, abrindo uma gaveta em busca de uma camiseta para vestir. Enquanto procurava, sentia o ar fresco da chácara bater-lhe às costas ao entrar pela janela – e ficou feliz novamente por aquela ser a única janela da casa que permanecia sem tela de proteção contra mosquitos. Os pernilongos ali eram verdadeira praga, e Merlin fizera questão de vedar todas as aberturas para o lado de fora, ainda que isso botasse à prova sua claustrofobia – pois se recusava a usar inseticida, que mataria os bichos e com isso violaria o ciclo natural das coisas. Ficando a se coçar quase toda manhã devido à investida dos insetos, o mago vivia repetindo que jamais se acostumaria "a certas dificuldades de morar num país tropical".

Aquilo, no entanto, não se mostrava um problema a Aurélio. Os pernilongos entravam por sua janela zumbindo como uma verdadeira esquadrilha de caças da Segunda Guerra Mundial – porém lhe eram inofensivos. O poder de regeneração da bainha mágica fazia com que as picadas desaparecessem tão logo surgiam, privando-o da coceira e das eventuais feridas. Quando adquirira aquele artefato para proteger-se da ameaça de Morgana, jamais poderia imaginar que ele também se mostrasse tão eficaz repelente de insetos.

Vestiu uma camiseta azul sem mangas e calçou os chinelos que deixara ao lado da cama. A porta do quarto se encontrava semiaberta, permitindo-lhe ouvir ruídos vindos de outro cômodo da casa – provavelmente da cozinha. Antes de seguir até ela para o café, porém, havia algo que sentia necessidade de fazer – e Merlin teria de esperar.

Num rápido impulso, abaixou-se para ligar o interruptor do computador. A máquina entrou em inicialização, enquanto o adolescente se sentava folgado na cadeira de rodinhas frente a ela.

A demora da máquina só aumentou a ansiedade de Aurélio. Passava por aquele ritual angustiante toda manhã, sendo que nos dias de semana o fazia antes de ir para a escola. A insistência não o cansava – e mesmo já se sentindo burro por isso, não abandonava a esperança. Se eu não houvesse tido esperança durante tudo o que passei ano passado, não teria conseguido sair vivo, não é mesmo?— refletia sempre que a mesma voz de desistência, fina e irritante, começava a querer tagarelar dentro de sua cabeça.

O computador concluiu a inicialização e ele abriu o navegador de Internet. Cliques rápidos com o mouse e senhas digitadas em igual velocidade – Aurélio vinha usando muito o PC desde que havia se mudado – levaram-no à caixa de entrada de sua conta de e-mail.

No centro da tela, a lista de mensagens. No topo, havia algumas novas, representadas por um envelope dourado fechado e o assunto grafado em negrito, enviadas por nomes familiares como "Gabriel" e "Bruno". Ignorou-as, porém, rolando a barra ao lado da página para baixo até uma grande sequência de e-mails já lidos, representados por envelopes brancos abertos sem a mínima graça. Bufando, releu o remetente da mensagem mais nova, no topo da lista, que se repetia em todas as demais mensagens a seguir: "Gui". Ainda que aquele e-mail em questão fosse o último que recebera... a data era de sete meses atrás.

Empurrou com as duas mãos a borda da escrivaninha em que se situava o computador, com isso lançando-se para trás sobre a cadeira de rodinhas. O móvel levou-o através do quarto até quase bater de costas contra a parede do outro lado – Aurélio freando-o a tempo com os pés no chão.

Naquele mês se completaria um ano desde sua luta com Morgana e Mordred em São Thomé das Letras, na qual perdera Excalibur, conseguira a bainha e Merlin fora desprovido de seus poderes – tendo todos sido salvos pela bem-vinda intervenção da Iara, ou melhor, da Dama do Lago. Desde então, escondido ali em Mirabela, norte de Minas, vinha se correspondendo com os amigos do Rio por e-mail – principalmente com Gui, matando todo dia as saudades e tentando com ela desvendar a enigmática profecia que a Dama do Lago lhes dera...

Até ela sumir, do nada.

Fora realmente de um dia para o outro. Nos primeiros meses em que estava ali, ele e Guilhermina começaram a trocar mensagens eletrônicas todos os dias. Quando não tinham assunto algum, falavam do tempo – coisa que até ajudou Aurélio num trabalho de Geografia em que o professor pedira que os alunos comparassem o clima de Mirabela com o de outro lugar no Brasil, e ele escolheu o Rio. Conversavam sobre tudo, desde a profecia e as coisas que tinham vivido juntos na aventura, passando por fofocas como a namorada que Gabriel tinha arranjado e o Bruno ter sido proibido de jogar online pela mãe... até mesmo sobre ele próprio e Gui.

Eles estavam sim tendo algo – que aparentava só crescer com a distância. Desde o beijo junto à lagoa, via seu sentimento pela amiga crescer – e ela demonstrava o mesmo, pelos coraçõezinhos nas mensagens, o jeito carinhoso de escrever, a preocupação com que ficava se ele deixasse de entrar na Internet algum dia por falta de sinal ou de luz. Aurélio nunca tivera por uma garota algo tão forte, aqueles pensamentos que antes julgara tão bobos nos outros meninos e que agora não saíam mais de sua cabeça. Ele queria pedir Gui em namoro, por mais que tivesse conhecimento de todas as dificuldades que teriam em se ver.

No momento em que julgava estar quase com coragem suficiente para mandar o pedido por e-mail, mesmo sabendo o quão melhor eram feitas coisas daquele tipo pessoalmente... Numa tarde depois da escola, quando como de costume chegou eufórico à chácara para verificar a caixa de e-mails, ela não havia respondido à sua mensagem da noite anterior.

No outro dia, também nada. E no outro, e no outro...

Sete meses depois, como o garoto amargava naquela manhã de sábado, ela continuava sem dar sinal de vida.

E, também continuamente, ficava tentando imaginar o porquê.

Num mundo em que a Internet praticamente superara a própria magia – se o próprio Merlin admitia, não havia como duvidar – e tornava tão fácil as pessoas se comunicarem, era difícil imaginar Gui sumindo do mapa, ao menos para Aurélio; mas fora exatamente isso que ela conseguira fazer. Ela não tinha perfis em quaisquer redes sociais – e Aurélio até mesmo criara contas em algumas delas só para procurá-la. Existia o recurso de telefonar para ela pelo celular, ou mandar algo via messenger, porém ela jamais atendia – ou porque mudara o número sem avisá-lo, ou simplesmente porque deliberadamente o ignorava. Pensara até em mandar-lhe uma carta, mas julgando que ela não lhe respondia pelos meios mais fáceis, certamente não o faria pelo mais difícil.

Isso fazia Aurélio sentir-se tremendamente mal. Não só pela frustração de sua paixão não correspondida. Também se achava culpado. Vivia questionando se dissera algo errado em alguma mensagem, se alguma atitude sua decepcionara a amiga a ponto de ela cortar relações. Tal neura o fizera, duas ou três vezes, reler de cima a baixo todos os e-mails que a ela enviara, sem encontrar nada que pudesse achar ofensivo. Ela, em suas mensagens, também não mostrara indício algum de que pudesse sumir tão repentinamente. E ela morava no Rio de Janeiro, pelo amor de Deus! Se ficasse sem Internet em casa ou sinal de celular, não seria difícil ir a uma lan-house ou a algum lugar em que o telefone pegasse!

O pior era o silêncio dos amigos a respeito. Trocava mensagens ao menos uma vez por semana com Gabriel e Bruno, e eles tocavam em todo tipo de assunto, exceto o que diabos acontecia com Guilhermina. Ele já lhes perguntara explicitamente, com palavras claras – e eles simplesmente ignoraram. Se Gui houvesse se adoentado, até morrido – coisa em que Aurélio evitava ao máximo pensar – com certeza eles teriam contado. Era algo diferente que ocorria, de muito estranho. E, seja lá o que fosse, ninguém estava disposto a lhe esclarecer.

Fechando a página de e-mails sem nem sequer verificar os novos enviados pelos dois amigos, depois de arrastar de volta a cadeira até o computador, o adolescente ficou algum tempo sentado olhando de forma vaga o monitor, a mente perdida em distantes pensamentos. Era triste concluir que, não importava se fosse o último descendente legítimo do Rei Arthur, o rei de Roma ou o garoto mais descolado do universo, estava sujeito às mesmas decepções que qualquer outro jovem da sua idade estaria. Corria o risco de levar foras de garotas ou ser iludido por alguém em que colocasse esperança demais mesmo tendo uma espada mágica lendária ou uma bainha que o impedia de se ferir por fora – porém ineficaz para as feridas de dentro. Sempre que essa reflexão se desenrolava em sua consciência, Aurélio sentia-se tremendamente vulnerável.

A Távola Redonda que formara com os distantes amigos no Rio de Janeiro não era, afinal, tão firme assim.

Bufando, Aurélio levantou-se da cadeira e finalmente dirigiu-se para fora do quarto. Com os passos dos chinelos soltando um eco plástico pelo corredor, rumou até a cozinha. Encontrou a mesa de toalha xadrez dispondo de uma jarra de leite, um pote de açúcar, outro de achocolatado e três pacotes de bolacha de morango – somente um deles aberto. Merlin preparara tudo e saíra, sem antes esvaziar até a metade a embalagem em questão, contendo sua guloseima favorita em mil e quinhentos anos de existência. Aurélio perguntou-se quantas mais pessoas na Idade Média iam gostar de bolachas recheadas de morango se tivessem vivido o suficiente para provar uma.

Aurélio sentou-se e preparou um copo de leite com chocolate. Enquanto mexia a bebida com a colher, desejou que o redemoinho no centro do copo misturando leite e flocos marrons pudesse sugar todos os seus problemas embora, imaginando se não existiria uma magia de "Redemoinho Místico de Leite de Cabra" ou coisa parecida. Mesmo se existisse, não poderia ser feita, visto que Merlin continuava sem sua energia arcana. Uma pena.

Tomando a bebida junto com três ou quatro bolachas tiradas de outro pacote, o garoto levantou-se. Sua próxima ação planejada era ir escovar os dentes, porém decidiu antes dar bom dia a Merlin. Como sempre, ele passava a maior parte do dia do lado de fora, à sombra das frondosas árvores da chácara, renovando seu velho vínculo com a natureza.

Mesmo mantendo todo o respeito e admiração que possuía pelo grão-druida, no fundo Aurélio também sentia pena dele. Fora desprovido de seus poderes para que Morgana abandonasse a forma bestial a que estava presa e restaurasse seu corpo de volta, permanecendo agora à solta para causar o mal e tentar novamente usurpar o legado de seu meio-irmão.

Era assustador conviver com a realidade de que a feiticeira ou seus lacaios poderiam reaparecer a qualquer momento para mais uma vez atacar Aurélio. Por isso mesmo o garoto evitava pensar muito sobre, apegando-se à proteção da bainha da Excalibur e procurando ao máximo ter uma vida normal – coisa que jamais conseguiria se permanecesse o tempo todo considerando o perigo que corria. Nas poucas conversas que tinha com Merlin sobre o assunto, concordavam que a ausência do rastro de Morgana por quase um ano inteiro indicava que a feiticeira, talvez mais afetada do que parecera pela feroz luta com a Dama do Lago, tramava algo às escondidas – para levar a cabo num momento oportuno. Por isso mesmo tinham de estar preparados para quando ela ressurgisse – embora Aurélio se sentisse mais preocupado com as provas da escola e a inexplicável ausência de comunicação com Gui do que propriamente o poder de Morgana...

Merlin estava relaxando sob uma goiabeira, a meio caminho da entrada da chácara. Esticara ali, em meio à grama, uma esteira colorida daquelas que se levam à praia, e, deitado sobre ela com os braços cruzados embaixo da nuca, olhava fixamente as folhas das árvores acima, agitadas de leve pelo vento.

O mago conservava desde os eventos em São Thomé das Letras a aparência do vendedor de antiguidades que por anos Aurélio conhecera apenas como "Senhor Campbell", a longa e clássica barba branca reduzida a um bigode que dela só mantinha o tom de cor. Os olhos estavam revestidos pelo conhecido par de óculos redondos; e de sua costumeira vestimenta só trajava, àquele momento, a camisa branca de botões, as calças de cordão e as sandálias – tendo tirado o colete, a boina e a gravata devido ao sofrimento que lhe causavam no calor. Ali ele mais se assemelhava a um fazendeiro aposentado, de provável origem italiana, do que ao maior mago de todos os tempos. Essa contradição sempre gerava em Aurélio ainda outra, deixando-o incerto se a aparência curiosa de Merlin lhe era motivo de riso ou de incômodo – nesse último caso, por reforçar estar ele agora sem poderes.

— Bom dia – o idoso saudou-o sem se levantar e muito menos voltar a cabeça para ele.

— Bom dia – o adolescente retribuiu meio desanimado. – O senhor quer ajuda em alguma tarefa? Queria fazer tudo agora cedo, já que à tarde combinei ir com os meninos à lan-house...

Sempre havia o que ser feito na chácara: limpar a casa, juntar folhas caídas, aguar a horta, podar as plantas. Merlin tinha muito esmero para com seu jardim, e exigia do pupilo o mesmo. Mas ter de gastar algum tempo nesses trabalhos não era o verdadeiro incômodo para Aurélio; e sim saber que o mago, provavelmente, manifestaria mais algum comentário de desaprovação por ele pretender ir jogar na cidade com a turma da escola depois do almoço.

— Oh, a lan-house de novo? – mantendo-se na mesma posição, sua voz unia tédio e desagrado. – Presumo que passará novamente a tarde toda nela, certo? Você e seus jogos eletrônicos... Arthur tinha um vício imponderado por torneios. Gerações e mais gerações depois, você cria a mesma fixação por batalhas virtuais...

— Bem, ao menos nos games ninguém corre o risco de ser decapitado por uma espada ou ter quinhentos ossos quebrados por uma lança de justa! – foi a coisa mais coerente que Aurélio encontrou para responder. Aprendera na escola que o corpo humano não tinha mais que duzentos e poucos ossos; porém descobrira igualmente, por vivência, que o exagero tornava mais fortes as coisas que as pessoas diziam.

Num grunhido, Merlin ergueu o tronco sobre a esteira e sentou-se, levando Aurélio a crer estar encrencado. Acomodando-se de lado para o garoto, o mago manteve as mãos sobre os joelhos durante alguns instantes, olhar vago como se revisitasse velhas lembranças na mente, para então falar:

— O que direi soará estranho, no entanto eu até preferia que você estivesse envolvido em atividades que colocassem em risco seu pescoço e seus ossos. Precisa treinar mais, Aurélio. Morgana e suas forças podem contra-atacar a qualquer momento, e você não irá querer ter o mesmo desempenho que em São Thomé. Tivemos muita sorte naquela ocasião. Não podemos contar com isso na próxima.

— Eu sei, Merlin, mas praticar espada durante todo o meio da semana, cinco dias, já não é suficiente? Eu peço só o fim de semana para poder relaxar tanto da escola quanto dos treinos! E tenho melhorado todos esses meses. Antes não conseguia bloquear praticamente nenhum ataque seu. Agora consigo aguentar bastante tempo. Minutos, até.

— A questão não é aguentar minutos, nem horas – Merlin bufou. – Só estará pronto ao conseguir me derrubar e desarmar. É assim que se decide um combate com homens como Mordred, Aurélio. Já o encarou e sabe como é. Agora ele tem Excalibur, e será mais difícil ainda. Além disso, sei que as suas saídas para a cidade durante a semana, de tardezinha, são quase sempre para jogar também. Tem gasto toda a mesada que te dou na lan-house. Pergunto-me até que ponto está realmente dedicado a suceder Arthur, preparando-se para isso, ao invés de desperdiçar o tempo em diversões supérfluas...

Aurélio odiava Merlin chamar as coisas que ele gostava de "supérfluas". Quando não sabia ainda o que a palavra significava, remetia-a a "superfluor" – alguma pasta de dente revolucionária capaz de dizimar as cáries. Agora sabia que na verdade era sinônimo de inútil, sem utilidade.

Que coisa! Só por ele ser descendente do Rei Arthur, não podia se divertir? Ter amigos? Paquerar, como todos da sua idade faziam? Toda vez que seu mentor falava daquela maneira, sentia-se novamente preso pelo sentimento de superproteção que o mago, e o falecido avô, tanto já haviam demonstrado. Queria muito que este último, aliás, ainda estivesse ali. Por certo seria capaz de ao menos compreendê-lo um pouco melhor.

— Eu não estou deixando de treinar, estou? – o adolescente rebateu. – Toda tarde estou aqui fora esperando para duelar, ou lá dentro para suas lições de "o que o rei de Camelot deve aprender". Tenho direito de me divertir um pouco depois que elas acabam, não tenho?

— Não importa o quanto uma pessoa treine, e sim a dedicação que ela coloca nisso – o mago ponderou. – Estar à forja dia e noite não garante habilidade verdadeira a um ferreiro, e sim o quanto de intenção de se aprimorar ele coloca a cada batida contra a bigorna. Não estou vendo você se centrar realmente no que é preciso. Está com a cabeça desviada para jogos em rede... e para aquela garota no Rio de Janeiro.

O machucado que a bainha não conseguia curar latejou. Agora Aurélio ficara realmente nervoso:

— Quanto mais você quer que eu treine? O que mais você quer que eu faça, Merlin? Deixe de ser eu mesmo?

A rotina de aprendizado obrigatório fornecida pelo guardião de Aurélio era mesmo pesada. Durante o meio da semana – um dia sim, um dia não – treinavam luta com espadas. Merlin esculpira dois sabres de madeira, e com eles se digladiavam por horas – até perto do entardecer. O mestre exigira que o aprendiz treinasse sem a proteção da bainha mágica, para que tivesse a sensação mais próxima possível do que era um combate verdadeiro.

As surras que Aurélio levava eram frequentes, os golpes dados pelo mago doendo mesmo com as armas sendo falsas, e cada um aparentava ter a intenção de fazê-lo corrigir sua postura, ficar mais atento aos movimentos do adversário. Aos poucos o adolescente compreendia como atacar e como se defender, mas ainda assim nunca conseguira derrubar o professor. Ao invés disso ficava em guarda por bastante tempo, somente repelindo os ataques, até se cansar e acabar vencido por um erro tolo. Nos últimos dias, todas as lutas terminaram dessa mesma maneira.

Entre os dias de prática com espada, também se alternando em sim e não, Merlin dava outras aulas a Aurélio, dentro da casa – e felizmente essas não envolviam esforço físico, já que geralmente no dia seguinte a um treino de combate o garoto ficava todo dolorido. Essas outras instruções se dividiam em três matérias diferentes, uma a cada dia: "História da Inglaterra" – que Merlin achava importantíssimo o pupilo conhecer devido às suas raízes; "Mitos Celtas", para estar preparado em relação aos feitiços e criaturas monstruosas que Morgana poderia invocar contra si, sempre havendo algum estudo complementar a respeito de folclore brasileiro devido à feiticeira também fazer uso dele; e "Estudos sobre Camelot", mais centrada na lenda do Rei Arthur em si, seus personagens e desdobramentos, justamente para que Aurélio não voltasse a ficar surpreso ao encontrar um cavaleiro lendário ou divindade dos bosques fazendo uma caminhadinha matinal por aí.

Não é preciso dizer que as matérias intelectuais eram bem melhores ao garoto do que treinar com as espadas de madeira, porém possuía também nelas certas dificuldades. "História da Inglaterra" era uma pedra – mas do tipo sem espada a ser arrancada: havia coisa demais para guardar, e tudo era ensinado por Merlin num nível de complexidade bem maior do que a matéria História que tinha na escola – talvez estando num nível de faculdade. Eram tantos termos e nomes parecidos que Aurélio sempre trocava os reis "Henrique" e confundia "Magna Carta" com "Bill of Rights".

"Mitos Celtas" era de longe seu estudo favorito, mas a nomenclatura também era uma dor de cabeça, devido à pronúncia do celta ser muito diferente do português e de praticamente não existirem vogais. Assim, o garoto memorizara existir uma velhinha azul baixinha de um olho só que trazia o inverno ao mundo; ou um herói irlandês ruivo que iniciara sua carreira matando um cachorrão, mas morrera cedo – porém não guardava o nome de ninguém. Por vezes achava inclusive que Merlin estava espirrando, durante as aulas, quando pronunciava algum deles – reação que sempre o deixava zangado.

Por fim, "Estudos sobre Camelot", mesmo sendo a mais importante, era também a Aurélio a mais difícil. Além dos muitos nomes, vários iguais ou parecidos – como dois Bors, além de "Morgana" e "Morgause" – Merlin contava tudo por seu ponto de vista de ter testemunhado boa parte dos acontecimentos, o que deixava as histórias – apesar de bonitas – longas demais. O garoto vinha aprendendo muito, sim, com as explicações – no entanto queria como nunca que o professor pulasse partes melosas como a de Tristão e Isolda, indo logo para os fatos mais importantes da vida de Arthur.

O fato de ter de estudar tudo isso, em conjunto com as matérias normais que via na escola, exigia bastante de Aurélio – e ele nunca faltara a alguma das aulas de seu protetor, mesmo nos dias em que estivesse cansado ou desanimado. Por tudo isso, achava que Merlin estava exagerando. Sim, era fato que o dinheiro para eles vinha difícil, fruto das peças de artesanato que o mago começara a esculpir em madeira e argila e vendia na cidade; mas então teria de parar de se divertir com os amigos? Longe do Rio e também excluído de sua turma em Mirabela, acabaria pirando. O herdeiro de Camelot viraria um rei louco, bem pior do que Mordred ou Morgana poderiam ser.

OK, talvez não tanto assim...

— Seu avô lhe disse que não seria fácil carregar tanta responsabilidade, bem sei disso... – Merlin suspirou, erguendo os olhos novamente para as árvores como se nelas pudesse ter algum vislumbre da essência do velho Genaro. – Só peço que confie mais no que estou fazendo por você, Aurélio. É para seu bem. Você é capaz e está de certo modo destinado a realizar obras maravilhosas, conquistar grandes feitos... mas tem de acreditar na sua capacidade, e não encarar tudo como uma obrigação, uma estrada já pronta que vai apenas percorrer olhando a paisagem. O "fazer por fazer". Seu caminho tem uma direção, porém você é quem deve abri-lo, jovem.

Depois de uma breve pausa, levantou-se da esteira e continuou a dizer, olhando-o:

— Varra a casa e tire o pó para mim. Logo mais peço o almoço no restaurante, já que sei que detesta minha comida. Depois que comermos, você pode sim ir à lan-house jogar com seus amigos. Mas não volte tarde, certo? Também não gosto de você se expondo demais ao sair da chácara...

Aurélio concordou com a cabeça, sentindo-se muito mais leve. Deu meia-volta e retornou à casa, já procurando a vassoura e a pá para encerrar o quanto antes a tarefa. Lá no fundo, mas bem lá no fundo mesmo... ele sabia que Merlin tinha razão. E ia tentar, a partir da semana seguinte, focar-se mais no treinamento para estar pronto quando a maldita Morgana ousasse dar de novo as caras.

Ao encontrar os utensílios para começar a varrer, um pensamento ao mesmo tempo atordoou-o e o motivou a continuar firme em seu objetivo...

Ele ia se dedicar ao seu futuro da mesma forma que acreditava que Gui, desaparecendo por sua própria escolha, deveria ter se dedicado a ele. Será que, durante os primeiros meses em que haviam trocado e-mails, ela simplesmente o fizera de maneira automática, por "obrigação" para com ele, assim como enxergava o treinamento de Merlin? Teria sempre o enganado, mentido para ele ao fingir que realmente se importava; e, cansada disso, desapareceu?

Mesmo querendo saber a resposta, calou a pergunta. Não se remoeria mais – pelo contrário, passaria ao invés disso a agir. Ele mostraria ser melhor do que Guilhermina. Assim, revelaria ser digno de carregar o legado de Arthur...

E, ao mesmo tempo, preencher o vazio em seu interior.

X – X – X

Seus pés doíam pela caminhada. E há muito ele não sabia o que era isso.

Tentando desligar-se do incômodo, distraía o olhar com as casas de arquitetura colonial alemã ao longo da rua, lembrando-se dos períodos em que vivera com a mãe na Alemanha e de como vira a paisagem mudar de cabanas de madeira ao rígido concreto dos prédios ao longo dos séculos. Era curioso encontrar a paisagem europeia reproduzida ali, nos trópicos; e percebeu que seria agradável explorar as peculiaridades daquele lugar, tão logo se estabelecessem.

Trazia um grande estojo de violão às costas preso a um de seus ombros por uma alça, disfarce para esconder a Excalibur em seu interior. O peso o incomodava, assim como a analogia de ser um músico – remetendo ao acordo que fizera com o odioso bardo Taliesin – porém a discrição se mostrava necessária para que não fossem perseguidos pelas autoridades mortais. Ele poderia suportar melhor a situação se a tia, passos à frente, não andasse tão rápido; esquecendo-se que em sua situação a cabeça poderia despencar-lhe do pescoço a qualquer momento. Literalmente.

Já era um ano convivendo com Tia Gause, o tipo de parente distante que jamais se imagina que um dia dará oportunidade para ser conhecido melhor – mas, no caso de Mordred, ele estava tendo tempo.

Ela o acolhera em São Thomé das Letras após as desventuras envolvendo sua mãe, desde então se mudando juntos de um lugar a outro – de Belém a Porto Alegre, passando por quase todas as capitais daquele país maluco e quente – até chegarem ali, onde a tia prometera que finalmente reencontrariam Morgana. Quando o rapaz insistia por respostas a respeito do que a mãe tramava, e a razão de ter se escondido, a irmã só se limitava a réplicas do tipo "Na hora certa saberá" e "É para nosso bem". Mordred costumava ter muita dó da tia, tanto pelo que os filhos dela – seus primos – haviam lhe feito, quanto por sua condição de morta-viva; mas a teimosia dela em não revelar nada fazia com que também sentisse raiva.

Ainda mais sabendo que, sem a bainha mágica, já envelhecera um ano todo sem obter progresso algum na destruição do herdeiro...

Tia Gause acelerou por mais três ou quatro quarteirões, desviando de turistas e moradores vestindo trajes típicos pela calçada com discretos ajustes da cabeça, impedindo que tombasse muito para algum lado e perdesse o equilíbrio sobre o pescoço. Mordred continuou a acompanhá-la bufando, tentando determinar de fato em que fria estava se envolvendo com aquela doida... quando ela finalmente se deteve diante da porta de madeira de um pequeno prédio de apartamentos, mais parecendo um galpão convertido para tal – e não possuindo o mesmo estilo germânico das construções próximas.

— Sobrinho querido... – ela chamou, antes de encontrá-lo passos atrás no meio da multidão que se aglomerava pela calçada. – Chegamos.

Ele entrou primeiro, impaciente, quase botando abaixo a entrada. O porteiro não se assustou – parecendo acostumado, de trás de seu balcão com radinho ligado, bigodes grossos e óculos quadrados, a visitantes estranhos aos inquilinos mais ainda.

Mordred e a tia subiram vários lances de escada enquanto dúvidas atormentavam o jovem feito fios de espada sobre sua pele agora vulnerável. O que a mãe realmente pretendia? Por que não esboçara o mínimo contato com o filho durante todos aqueles meses, nem uma mísera indicação de que estava bem? Teria sido seriamente ferida pela maldita Nimueh? Ou arquitetava algo tão grande que simplesmente falar sobre o plano o colocaria em risco?

Finalmente atingiram o quarto andar, Tia Gause conduzindo-o através do corredor sujo e escuro até a porta do apartamento 11, que aparentava ocupar os dois últimos pisos inteiros do prédio. Não precisaram bater: o obstáculo se abriu sozinho com um sutil movimento da maçaneta, a magia responsável camuflada como o vento – e o ambiente do outro lado, repleto de estantes de livros cujo topo tocava o teto, móveis antigos e armários semiabertos repletos de frascos e garrafas com substâncias das mais diversas cores, revelou-se frente a eles... a figura de uma mulher de longos cabelos negros e vestido do mesmo tom cobrindo-a até os pés dominando o recinto feito ordem imposta ao caos.

— Mãe.


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