O Legado de Avalon II: A Profecia do Condestável escrita por Goldfield


Capítulo 1
Prólogo




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O Legado de Avalon

Livro II: A Profecia do Condestável

 

Que auréola te cerca?
É a espada que, volteando,
Faz que o ar alto perca
Seu azul negro e brando.

Mas que espada é que, erguida,
Faz esse halo no céu?
É Excalibur, a ungida,
Que o Rei Artur te deu.

(Fernando Pessoa)

Prólogo

O céu do fim de tarde assumia o tom cobre da ferrugem, consumindo aos poucos o aço azul da espada do dia.

O cavalo se agitou, seu dono acalmando-o num leve manuseio das rédeas. O animal parecia estar tão ansioso quanto ele em relação à aproximação do inimigo. O sentimento, na verdade, tomara todo aquele exército. Ainda que ele, o comandante, confiasse em sua estratégia; e que seus subordinados, cavaleiros fieis e de honra, demonstrassem seguir suas ordens até o fim do mundo – nem que tivessem de lutar nos confins do Oriente, na terra do Preste João, à sombra de gigantes; era impossível não sentir ao menos uma ponta de receio. O destino de toda uma nação estava em jogo. A batalha que se desenrolaria ali, ao lusco-fusco, decidiria a sina de Portugal.

Erguendo a cabeça e fazendo com isso sua cota de malha retinir de leve, Nuno observou os estandartes de suas tropas esvoaçarem ao vento que atingia o topo da colina, servindo como verdadeiro mensageiro da aproximação dos soldados de Castela. Admirou os símbolos costurados nos panos, perdendo-se em seus desenhos e detalhes como uma breve fuga daquela espera angustiante.

A maioria das flâmulas retratava o imponente escudo de Portugal: era delimitado por um contorno vermelho contendo onze pequenos castelos dourados ao longo de sua extensão, como se fossem fortalezas reais dispostas em círculo em torno da área que serviam proteger. A educação de Nuno nos ofícios da cavalaria incluíra extensas aulas de heráldica, e aprendera que os castelos representavam o reino mouro do Algarve, conquistado no passado pelo rei Afonso III. No interior do contorno vermelho, numa região branca que remetia a um campo de neve, via-se cinco escudos menores, azuis, dispostos em forma de cruz. Representavam tanta a fé do povo lusitano em Nosso Senhor Jesus Cristo quanto as próprias cinco chagas do Salvador – que o primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques, adotara como símbolo ao ter uma visão do próprio Cristo antes da batalha de Ourique, em que fora triunfante. Olhando-se com atenção, era possível ainda identificar cinco besantes, como eram chamados aqueles pequenos círculos brancos, dentro de cada um dos escudetes azuis.

Agora, aquele emblema serviria para lembrar ao leviano rei de Castela sua traição a tudo que era certo, a forma mesquinha com que tentava usurpar o trono de Portugal – e com certeza seria punido pelo Espírito Santo, através das armas dos bravos portugueses, por aquele ato.

Suspirando enquanto estendia o olhar por suas tropas, Nuno lembrou-se da origem daquela conflagração. Dois anos antes, no Ano do Nosso Senhor de 1383, morrera o rei Dom Fernando de Portugal. Não tivera filhos homens que pudessem herdar a coroa, e de acordo com as leis esta passou a Dona Beatriz, sua única filha. A questão era que D. Beatriz era casada com D. João I, rei de Castela, e por direito de casamento reivindicara para si o Reino de Portugal. Este, que no passado já fora separado de Castela pelo bravo Afonso Henriques, agora sofria a ameaça de ser conquistado novamente pelos vizinhos e ter sua independência perdida.

O povo lusitano entrou em desespero. Clamando para que uma solução fosse encontrada, viu boa parte dos nobres do reino se unirem à sua causa. Estes passaram a apoiar que outro D. João, no caso português, fosse coroado rei de Portugal. Ocupava a posição de mestre da Ordem de Avis, e também tinha direito pelo sangue: era filho bastardo de D. Pedro, pai do falecido D. Fernando, e com isso meio-irmão deste. Mesmo ilegítimo, era uma opção preferível a entregar o reino a um soberano estrangeiro. Como era de se esperar, D. João de Castela viu-se afrontado pela decisão portuguesa e invadiu o reino com suas tropas para fazer valer seu direito à coroa. Fora esse estado de coisas que levara Nuno a agora estar ali, comandando o exército lusitano junto a D. João de Avis contra os invasores. Uma posição que, alguns anos antes, imaginara jamais conseguir assumir.

Observou o contorno da serra, seu verde tornando-se mais e mais enegrecido conforme chegava a noite. O sol, sábio, escondia-se atrás dos montes para não ter de testemunhar o sangrento combate que se daria naquela colina. Nas proximidades estava situada a pequena vila de Aljubarrota, habitada por gente de valor; e Nuno tinha ciência de que a localidade ficaria conhecida, nos séculos por vir, pela vitória de Portugal tentando se manter livre ou pelo grande fracasso de seus esforços com a conquista por Castela.

Já dera combate aos castelhanos antes, nos Atoleiros; porém a escaramuça fora bem menor do que aquela em que agora se envolvia. Na primeira batalha, eles haviam vencido uma parte do exército de Castela – este inclusive contando com a adesão de seu meio-irmão, Pedro Álvares Pereira, o qual Nuno tinha a esperança de não ter de voltar a enfrentar. Agora o rei inimigo direcionara toda sua força contra eles, na tentativa de esmagar de uma vez os portugueses. O senhor de Avis, legítimo soberano de Portugal, confiara a Nuno a tarefa de vencer novamente. Fora justamente para isso que o nomeara Condestável: garantir a moral e eficiência de suas tropas. Contava com as bênçãos de Deus para poder cumprir sua obrigação. Se seu sangue caísse ali, significaria também o sangue de toda uma nação.

Baixou os olhos da serra e retornou-os ao exército. Os lanceiros, com suas longas hastes erguidas, assemelhavam-se a uma extensa linha de porcos-espinhos. Eram parte vital de seu contingente, já que formavam o cordão capaz de deter a cavalaria dos terríveis franceses, aliados de Castela. A arquearia também seria uma estratégia da qual faria uso, recurso para atingir os inimigos e reduzir seus números à distância, atraindo-os para um terreno em que ficariam mais lentos, antes que eles pudessem enfrentá-los frente a frente.

O arco longo era uma grande criação, e Nuno agradecia todos os dias em suas orações por poder dispor de um grupo de trezentos arqueiros com ele armados enviados diretamente pela Inglaterra, aliada de Portugal. Chegavam notícias e mais notícias do enfrentamento de Inglaterra e França em suas próprias terras, e a rivalidade dos dois países também se demonstrava ali, em que cada um apoiava um lado na disputa pela coroa portuguesa.

Uma quietude nervosa dominava os soldados lusitanos, quebrada apenas por cavaleiros tossindo e o relinchar das montarias. Com todos os preparativos já feitos, aguardavam que o exército de Castela surgisse aos pés da colina, depois de terminar de contorná-la vindo do norte. Os inimigos demonstravam ter caído perfeitamente no plano de Nuno, que desejava que a batalha se iniciasse ao sul e não ao norte da elevação, limitada por riachos a leste e a oeste – posição em que as forças portuguesas tirariam vantagem do terreno. O Condestável acalmou mais uma vez seu cavalo, imerso em suas reflexões, quando viu e ouviu uma agitação junto às linhas de frente. Teve um breve mau pressentimento, eliminado ao identificar um de seus batedores, também a cavalo, abrindo caminho entre os compatriotas para informar-lhe a posição do exército inimigo. O cavaleiro vinha esbaforido, com os cabelos ensopados sob o elmo colados à testa. Detendo a montaria diante de seu superior, relatou sem demora o que descobrira:

— Os castelhanos já dobraram o sopé. Estão entrando na colina e vindo direto para nós.

O coração de Nuno, firme na Fé e na obediência ao seu rei, aprendera a conservar a calma necessária naquele tipo de situação. Respondeu num aceno com a cabeça, fitando brevemente os demais cavaleiros junto a si. Tudo estava preparado, não havia mais ordens diretas a dar antes que o combate se iniciasse. Todas as fileiras sabiam o que fazer e de que maneira o fariam. Para conservar sua solidez no comando, fácil de se esvair quando um homem na guerra ouve os primeiros gritos dos companheiros tombando e o retinir das espadas se batendo, precisaria agora recorrer ao Altíssimo. Sem delongas, informou:

— Vou rezar por nossa vitória. Retornarei antes que os castelhanos estejam à visão. Informe Sua Majestade, caso pergunte.

Alguns dos nobres ao seu redor esboçaram expressões preocupadas, como bem sabia. Perguntavam-se como um comandante poderia se ausentar de sua tropa momentos antes de o inimigo chegar, ameaçando deixá-la à mercê da desordem e do medo. Tinha pleno conhecimento de que muitos ali condenavam sua dedicação excessiva à religião, murmurando às suas costas ser ele alguém mais apto a se tornar frade ou padre do que um cavaleiro competente – a começar pelo fato de só ter se casado por imposição do pai, já que sua real vontade era permanecer casto o resto da vida.

Não lhes dava ouvidos, entretanto. Tinha consigo que só a Fé os levaria ao triunfo, por mais que aqueles cegos insistissem em não ver. Poderia até Viriato, o lendário português que resistira anos contra os conquistadores romanos na Idade Antiga, liderar ali o exército lusitano que, sem estarem com Deus, não obteriam sucesso algum.

Ele ia rezar. Sabia que a Providência amarraria as patas dos cavalos de Castela, se preciso fosse, para que pudesse voltar antes que o confronto começasse.

X – X – X

Os aproximadamente sete milhares e meio de soldados portugueses, dispostos na colina, ao longe aparentavam o dobro ou o triplo do contingente, os estandartes mesmo reduzidos pela distância conservando a imponência de um exército que prometia lutar até o fim. Conforme se afastava das tropas em seu cavalo, Nuno procurava algum lugar na colina em que pudesse realizar em paz sua prece.

O topo do monte possuía arvoredos esparsos; as copas das árvores, muito próximas, juntando-se para aparentemente esconder segredos entre seus galhos. Enquanto galopava pela relva, dando as costas aos soldados para ganhar momentaneamente a impressão de inexistir qualquer expectativa de batalha naquele local, guiou a montaria até um conjunto de árvores mais extenso, semelhante a pequeno bosque. Os últimos passarinhos piavam nos ramos das oliveiras, enquanto o laranja-ferrugem do firmamento mais e mais se convertia no azul-negro noturno.

Penetrando na sombra oferecida pelas copas, o Condestável amansou o cavalo, fazendo-o trotar mais lentamente. Em meio aos troncos e arbustos, sentiu intenso frescor, aliviando um pouco a quentura daquele dia de verão. Sentiu vontade de tirar o traje de cavalaria, porém não o fez por saber que teria de voltar rápido aos seus soldados – além do que, não desejava retirar o camisão vermelho, por cima de sua armadura, com o desenho de uma cruz prateada florenciada nas pontas – símbolo dos Pereira, sua família.

Avançando um pouco mais, descobriu que a reconfortante impressão era oriunda não só das plantas, mas também de uma pequena lagoa existente no centro do arvoredo. Envolvida por pedras arredondadas e algumas faixas de lama, sua água resplandecia sob os últimos raios de sol atravessando as frestas entre as folhas acima, como se o líquido emitisse luz própria, cada uma de suas gotas constituindo um pequenino astro-rei.

Agradecido por aquele presente da natureza antes da árdua batalha, Nuno desceu do cavalo, amarrando-o a uma árvore próxima. Depositou cuidadosamente seu escudo, também com o emblema de sua cruz familiar, no solo fofo junto à lagoa, e caminhou até ela inspirando o ar revigorante daquele inesperado oásis. Ajoelhou-se à beira d'água, retirou as manoplas e, com as mãos nuas, uniu-as em concha para apanhar um pouco do líquido e jogá-lo ao rosto. Repetiu o gesto mais uma vez, e então levou as mãos à boca para também saciar a sede. Aquela água era cristalina, talvez a mais pura que já encontrara.

Um vislumbre do Paraíso como aquele, um lugar tão maravilhoso, jamais poderia cair nas mãos de Castela. O pensamento deu-lhe ainda mais determinação para lutar. Engoliu mais alguma quantidade daquela bebida tão fresca, e quando ergueu os olhos no intuito de também levantar as pernas para se levantar... estacou na posição em que estava, o instinto fazendo-o conservar-se ajoelhado diante de figura tão admirável.

A mulher, de pé numa pedra do lado oposto da lagoa, brilhava assim como a água. Sua túnica branca sem qualquer mancha ou imperfeição, cobrindo-lhe o corpo dos ombros aos calcanhares, resplendecia como uma nuvem no céu banhada pelo sol. Descalça, tinha os braços, expostos a partir dos cotovelos, decorados por ricas joias como anéis e braceletes – somente alguns deles, juntos, aparentando valer mais que todo o tesouro que o reino possuía. A pele era branca, mas não tão clara – possuía um levíssimo tom mais escuro, oliva, como se bronzeada com timidez.

O lindo rosto de olhos verdes encarava Nuno num sorriso, os cabelos castanhos encaracolados desenrolando-se para baixo de seu pescoço, alguns fios roçando os ombros. No alto da sua cabeça existia algo como um diadema dourado, encrustado de pedras preciosas. Uma coroa para aquele ser maravilhoso que sem dúvida era uma rainha. Mulher repleta de mágica, de aura divina – ao mesmo tempo em que, pela aparência física e trejeitos, remetia a uma autêntica dama portuguesa.

— Nuno... – ela chamou-o, e o coração do cavaleiro bateu mais forte, como se aceso por violenta chama.

Ele já a conhecia. Tivera a primeira visão daquela senhora um ano antes, ao se afastar do exército para rezar antes da batalha nos Atoleiros. Não se assustara nem da primeira vez em que a encontrara – confiava que havia sido enviada por uma força maior para auxiliar a ele e aos demais portugueses. Naquela primeira ocasião, a dama prometera a vitória dos lusitanos contra Castela – e assim ocorrera. Quando Nuno se retirara para a prece naquela tarde, no fundo tinha a esperança de vê-la novamente, junto a uma lagoa assim como da primeira vez. E lá estava ela, em todo seu esplendor. Bastou pousar o olhar sobre sua figura para o Condestável ter certeza de que voltariam a triunfar sobre o inimigo.

— Senhora... – disse timidamente, as mãos se unindo de forma involuntária em posição de súplica. – A que devo tal honra? Eu, um simples mortal, mas que tem fé e deseja proteger seu povo?

— Nuno Álvares Pereira, Condestável de Portugal – a pronúncia de seu título pela leve e ao mesmo tempo retumbante voz da jovem fez o cavaleiro estremecer. – Chega o momento decisivo para sua nação. A batalha que decidirá o destino do mundo por três séculos. Caso conduza suas forças à vitória, um futuro brilhante aguarda Portugal. Seus bravos homens desbravarão terras jamais antes vistas, encontrarão riquezas sem comparação. A questão é: estará apto a liderar os lusitanos em combate assim que o sol se esconder de todo, nobre Nuno?

Tremendo, o comandante teve incrível vontade de baixar os olhos para a água, tomado pelo peso de encarar uma entidade tão poderosa, porém manteve-os erguidos, como meio de igualmente reforçar sua resposta:

— Estou apto, senhora. Estou apto, e sinto-me digno. Nós venceremos Castela nesta colina. O rei João amargará sua pior derrota.

O sorriso da jovem, até então retraído, alargou-se. Ela continuava fitando-o nos olhos, como se ele fosse seu igual. Nuno jamais teria sido capaz de descrever em palavras a honra que sentiu por tal gesto.

— Ouça, bravo guerreiro. É chegada a hora de assumir certos direitos que possui por sangue, embora até então não os tenha conhecido. Muitos antes de você tiveram pretensão a esse legado, porém não foram dignos o bastante para reavê-lo; outros também virão, após sua morte, com a mesma permissão a ele, mas igualmente não a concretizarão. Serás um dentre poucos, Nuno. Faça bom uso desta herança. Use-a, enquanto for vivo, para combater o mal, conservar a liberdade de sua pátria. Use-a, meu querido Nuno, para inscrever seu nome na História.

E, assim dizendo, a dama saltou nas águas da lagoa, nela desaparecendo completamente – dando a entender que a pequena formação era muito mais profunda do que aparentava.

Durante alguns instantes de silêncio, o Condestável continuou ajoelhado, certo de que sua benfeitora voltaria. As ondas provocadas na superfície da lagoa pelo mergulho da mulher brilhavam como rastros circulares de cometa num céu noturno, e se dissiparam completamente antes que ela retornasse. Sem se abalar pela suposta solidão, Nuno aguardou... e, subitamente, algo emergiu no centro da fonte, aspergindo o cavaleiro com aquela água que julgava sagrada.

Era apenas a mão direita da senhora, o resto de seu corpo permanecendo submerso no líquido. O punho segurava firmemente o cabo de uma espada – e encará-la foi, para o Condestável, como se o sol houvesse recuado do poente num só impulso, voltando para o meio do céu. A lâmina brilhava feito fogo, possuindo em sua extensão inscrições em alguma língua desconhecida, de ambos os lados. Os caracteres misteriosos refulgiam como recém-forjados, um dos lados brilhando mais que o outro – tal qual passasse algum tipo de mensagem.

A guarda da arma era de metal simples, parecendo oriunda do mais singelo ferreiro – seu único luxo sendo o rubi encrustado na parte de baixo do cabo, como símbolo de um orgulho há muito esquecido. Apesar da simplicidade, a luz que banhava o conjunto do sabre fazia-o aparentar não ser daquele mundo – e sim fabricada pelos próprios deuses pagãos que, mesmo tendo sua religião vencida por aquela que a Nuno era a verdadeira, agora se viam dispostos a auxiliar um cristão na defesa de sua pátria.

— E-eu não sei o que falar... – balbuciou o Condestável. – Serei eu mesmo digno de brandir esse prodígio? Uma arma tão maravilhosa?

— És digno, Nuno – a senhora reafirmou, sua voz soando perfeita mesmo com sua cabeça embaixo d'água, como se proviesse do próprio ar. – E com ela o incumbirei, para o futuro, da mais nobre missão. Depois que os invasores castelhanos estiverem vencidos e sua nação segura, usará esta espada para encontrar algo há muito perdido, uma relíquia escondida dos homens para ser protegida; mas que precisa, agora, ser recuperada. Você cresceu ouvindo sobre ela, Nuno. Sei que, ainda menino, desejava ser o nobre cavaleiro Galahad bem mais do que apenas nas brincadeiras. Agora terá o privilégio de empreender a mesma jornada que ele um dia concluiu.

Os olhos do Condestável brilharam mais pela emoção do que pelo reflexo da espada luminosa. Desde criança, era mesmo fascinado pelas histórias dos Cavaleiros da Távola Redonda, principalmente os feitos de Galahad, com base no qual moldara o próprio caráter. Tornara-se cavaleiro na esperança de um dia possuir ao menos um quinto da pureza que o lendário guerreiro de Arthur tivera. Muitos diziam que tudo não passava de mitos, porém o encontro com aquela senhora fazia-o crer o contrário. E o tal artefato... estaria ela falando do... não, não podia ser!

Livre do tremor, Nuno iniciou um gesto solene: levantando-se, retirou da bainha sua espada, afiada pelo alfageme de Santarém que não havia ainda sido pago pelo serviço – o ferreiro insistindo que o Condestável só lhe acertasse as contas no futuro, quando fosse ainda mais importante e precisasse de algum serviço seu. O sabre, de punho leve e aberturas na lâmina para aparelhar espadas inimigas em combate, foi fincado por Nuno no chão lamacento como um marco. Mesmo abrindo mão da arma, manteria a dívida para com o alfageme – em nome de sua honra.

Em seguida, caminhando calmamente, o Condestável adentrou a lagoa, a água aos poucos lhe subindo até perto da cintura conforme se dirigia ao centro da fonte. Ignorou a mágica que permitia à senhora deslocar-se pelo líquido como se este estivesse em bem maior quantidade que a real, já que ela se mantinha submersa, segurando a espada, como se o fundo estivesse a metros e metros abaixo.

Detendo-se diante da fascinante lâmina, Nuno permaneceu admirando-a por alguns instantes, quase hipnotizado... até que, estendendo a mão direita com o máximo de reverência, tomou-a para si – o artefato luminoso agora em seu poder assemelhando-se a uma tocha de fogo intenso que eliminava as trevas ao redor.

X – X – X

Humphrey começava a ficar impaciente – e era possível perceber, pelos rostos de seus compatriotas, que eles já sentiam o mesmo. Os portugueses tinham pleno conhecimento de que o regimento de arquearia formado por eles, cerca de trezentos ingleses, era um dos maiores trunfos que possuíam contra o exército de Castela – porém essa vantagem corria o risco de ser perdida por conta da "carolice" do comandante lusitano. Nem mesmo numa cruzada parecia verossímil um líder importante para a moral da tropa como o tal Condestável sair para rezar com a força inimiga prestes a surgir. O mais intrigante era que a maioria dos combatentes lusitanos, nas fileiras vizinhas, apoiava a atitude do comandante. Talvez Portugal, em si, fosse um país dado a carolices.

Quando já começava a imaginar se seu país ofereceria resgate aos castelhanos caso ele e os companheiros fossem feitos prisioneiros naquela batalha – isso na melhor das previsões, já que era meio inocente esperar misericórdia de alguém que tinha os franceses como aliados – uma agitação tomou o contingente português.

Erguendo a cabeça por sobre os elmos e desviando o olhar de estandartes, Humphrey viu, assim como os outros, o Condestável retornar galopando pelo alto da colina, inconfundível com seu camisão e escudo vermelhos tendo a cruz prateada no centro. No céu, a noite praticamente já caía, o tom rubro da despedida solar cedendo lugar às primeiras estrelas, que seriam testemunhas se a estratégia daquele astuto português daria certo ou não. Por algum motivo, ele conseguia observar o comandante das tropas com relativa clareza mesmo em meio à penumbra... mas logo compreendeu a razão – a qual, mesmo óbvia, insistiu em passar momentaneamente despercebida por causa de sua aparente mágica.

O Condestável retornava com uma espada erguida numa das mãos, e dela provinha luz própria, como se acesa com chamas invisíveis de cujo aspecto só se mostrava o clarão. Os soldados lusitanos o saudaram com crescente clamor, enquanto a vanguarda do exército começava a avançar para o sul, onde as forças castelhanas já se encontravam a curta distância.

Antes que o comandante desaparecesse no meio de suas tropas, Humphrey, tendo o olhar fixo na arma que ele brandia e sentindo o sangue ferver ao notar antigos caracteres celtas que na lâmina se destacavam, não via lógica na conclusão que obteve, porém tinha de aceitá-la como verdadeira. Ouvira a descrição dela apenas nas histórias que lhe contavam quando mais jovem, e agora era como se as antigas canções dos bardos se concretizassem, dando-lhes o crédito que muitos incrédulos ao longo do tempo insistiram em não reconhecer...

O líder das tropas portuguesas partia para o combate com a própria Excalibur em mãos, a espada com a qual o Rei Arthur forjara sua terra natal.


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