O Garoto ao Piano escrita por Clarinna


Capítulo 1
Violentamente Comovente


Notas iniciais do capítulo

Aconselho muito ouvirem Beethoven - Silence ao lerem... Alias, aconselho todas as musicas citadas. Boa leitura!
Beijos, Clarinna.



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Era uma tarde agradável de inicio de setembro, não fazia um frio de rachar os lábios ou um calor de soar as mãos segurando um livro. O clima atual era o que eu costumava chamar de perfeito, porque você poderia colocar um vestido, mas ainda precisaria de um casaco de lã. Esse era o clima que combinava com ele.

Estava parada à sombra de uma grande arvore de ipê azul, que com a chegada da primavera havia florescido magnificamente e tornado a fachada crua e monótona muito mais atraente, que era simplesmente pintada de branca e bege com o brasão do colégio em alguns pontos específicos – brasão que continha às cores vermelha e branca, as mesmas dos uniformes, que harmoniosamente combinavam com ele.

Os fones em meus ouvidos tocavam a trilha sonora dele, a que eu gostava de ouvir para observa-lo quando não arriscava ficar tão perto – Hear me Cry, pelo pianista Thomas C. Sanchez.

Uma musica que me fez chorar nas primeiras vezes que ouvi, mas que fui capaz de superar. Bem, pelo menos em publico, pois eu não poderia não senti-la. E, quando o olhava, eu era capaz de senti-la muito melhor, como se cada nota me tocasse. Eu não tocava piano, não vou mentir, mas realmente gostaria.

A brisa que trazia o cheiro das flores também balançava minha saia do uniforme, e a de todas as outras garotas que saiam em grupos de uma porta dupla do prédio para o grande pátio onde passavam pela saída, onde passavam por mim agora, falando alto e rindo, sem prestar atenção nos detalhes minúsculos, formidáveis que eu enxergava.

Meu cabelo também acompanhava o vento, e eu tinha que afasta-lo dos meus olhos por várias vezes, em que tampou meu campo de visão que se focava em um único e interessantíssimo ponto. Nele.

E porque uma garota como eu estava parada sob a sombra de uma arvore, escutando a musica mais triste de sua vida enquanto seu cabelo fazia uma dança desajeitada, quando todas as outras seguiam caminho para suas residências, acompanhadas de outras garotas ou garotos?

Sim, era por causa dele.

Já não havia tantas pessoas no pátio, agora restavam apenas alguns estudantes do grêmio estudantil (que permaneciam um pouco mais depois das aulas) e os professores que voltavam para casa a pé. Além destes, estávamos nós dois, como parte do cenário digno de uma fotografia adorável.

Sob a árvore, eu estava longe o suficiente para que ele não pudesse perceber que eu o observava, mas perto o suficiente para ser capaz de enxergar seus detalhes, como os pequenos pontinhos marrons em sua pele pálida, que começavam em sua orelha e desciam pelo pescoço, onde sumiam na gola da camisa.

Ele também estava com seus fones de ouvido, e uma curiosidade quase descomunal me possuía para saber o que ele estava escutando – talvez rock, ou MPB que também combinava com ele. Quem sabe um clássico? Ele tinha nas mãos um livro, que depois de me contorcer um pouco pude ler o nome, “No Presente” de Marcio El-Jaick. Também me perguntei se ele estava gostando do livro, se era realmente tão bom quanto parecia – a capa era bege com uma borboleta e algumas flores brancas, e a lombada azul, era um livro muito delicado. Ele parecia entretido, pois não desviava os olhos e piscava pouco. Parecia até não estar respirando de longe, mas tenho certeza que poderia ver sua camisa se movendo com a respiração se me aproximasse.

Mas me aproximar não era minha intenção – em verdade era sim, mas eu não me sentia capaz de chegar tão perto e manter-me respirando ao mesmo tempo. Observa-lo ao longe, por hora, era algo delicioso, uma forma agradabilíssima de passar/perder tempo. No entanto, desejava que ele levantasse a cabeça para que eu pudesse ver seus olhos, que tons de castanho haviam possuído em um momento tão sublime como aquele, do qual nem ele parecia ter se dado conta da beleza. Ou talvez somente eu tivesse me dado conta.

O sol tocava seu cabelo como uma mão carinhosa, fazendo com que o castanho claro se tornasse mais claro ainda, e as mechas desajeitadamente ajeitadas luziam de forma que a vontade de acaricia-las se tornava quase indomável.

Mas, por quanto tempo eu permaneceria ali quando quase todos já haviam ido embora? Uma garota solitária encarando um rapaz que nem se quer a notara após minutos de meticulosa observação.

Decidi-me por deixa-lo, e para não hesitar me virei de uma só vez para o caminho contrário e esperei alguns segundos, imóvel como que esperando alguma reação do universo a minha brusca resistência, mas como de meu feitio estupidamente apaixonado, eu dei uma ultima olhadela. Para minha surpresa, ele não estava mais sentado no banco sob a sombra dos ipês amarelos.

Em seu lugar, descansava o livro que outrora estava em suas mãos. Onde estava ele? Por onde havia desaparecido, e por quê? Vir-me-ei de volta, sem saber como proceder à ausência abrupta do jovem que segundos antes eu apreciara.

Lá estava seu livro, inocente e inerte, agora parte solitária do cenário sem o seu senhor. Olhei para os lados rapidamente, com medo de que o livro desaparecesse como em um passe de mágica, e não tirei os olhos dele enquanto questionava-me se deveria ir até lá e apanha-lo. Mas, uma vez com ele em minha posse, o que faria? Procuraria o rapaz? Guardaria-o até o dia seguinte? Fosse lá para pegá-lo, seria surpreendida pela volta de seu dono distraído?

Respirei fundo, contei segundos lentos para me certificar que ninguém estivesse vindo de dentro do prédio e, quando me senti segura o suficiente, iniciei uma caminhada rápida até o outro lado do pátio, onde o banco estava.

Parei a sua frente e outra vez olhei para os lados num gesto de desconfiança, à vista de que não vinha ninguém por nenhum dos lados, fitei a capa do livro iluminada pelo sol e estendi a mão para toca-la. Estava quente, e provavelmente começaria a se deformar como aconteciam com os livros que ficavam muito tempo ao sol. Porque, de forma tão descuidada, ele havia deixado aquele livro ali a própria sorte? Apanhei-o e tomei a liberdade de abri-lo, e das suas paginas voou um pedaço de papel amarelo que parou alguns metros de distancia dos meus pés. Afobada pela descoberta e temerosa de que o vento o soprasse para longe, rapidamente peguei-o do chão e, aliviada, apertei tanto o livro quanto o papel ao peito.

Imagine perder o papel, o que seria de mim? Não poderia entrega-lo, pois ele acharia que o furtei. Mas de qualquer forma, o que eu faria agora, que havia um livro e um bilhete em minha posse, e nenhum garoto de pele pálida com constelações no pescoço?

Segurei o papel delicadamente, os dedos cobriam o escrito nele. Questionei-me se deveria lê-lo, e então me dei conta que não importava, pois o rapaz sequer me conhecia, até então. Antes de ler o conteúdo do post it, deduzi algo que deveria já me ser obvio, mas tão extraordinário que passei segundos encarando o chão coberto por flores azuis e amarelas provavelmente com a expressão mais estúpida do universo.

Eu era a única no pátio, junto com ele, e assim que ameacei partir ele sumiu, deixando para trás o livro que apenas eu veria. O abandono do “No Presente” parecia completamente proposital, pois a leitura dele era antes tão concentrada e parecia estar interessadíssimo em cada palavra, porque deixaria tal objeto de apreciação?

Talvez porque soubesse que eu o apanharia? Jurava estar tão bem escondida sob a árvore! Iria ter que encontrar um novo lugar para me camuflar. Mas como, se pelo o que tudo indicava agora ele tinha consciência de minha existência? Enfim, sem alternativa, respirei fundo e tirei os dedos que impediam a leitura do papel. A letra era claramente masculina, mas não era feia e aos garranchos, era legível e até mesmo agradável aos olhos. Para minha surpresa, não era um bilhete, era algo parecido com uma anotação, um lembrete dele para ele mesmo.

Piano às 14h30min

3° andar, sala 6

 

Olhei o relógio de pulso, marcava 14h35. Hesitei por um momento, tentando situar-me naquelas palavras, e pensei comigo que talvez o jovem houvesse desaparecido de tal forma estabanada porque tinha um compromisso, e um compromisso que envolvia musica! Melhor ainda, um piano! Estava extasiada com essa hipótese, e até cheguei a me distrair colocando uma mãos sobre o fone na orelha direita – que agora tocava Summertime Sadness numa versão tocada no piano –, mas logo voltei ao foco.

Ele fazia aula de piano? Ensinava piano? Tinha um encontro com um piano? Fantástico!

Devolvi o papel à primeira pagina do livro e o fechei, sem saber bem qual seria o próximo passo em seguida da vaga descoberta. Após alguns segundos de profunda reflexão e, admito muita estupidez de minha parte, lembrei-me da sala de musica do colégio – lugar que eu havia visitado poucas vezes anos atrás, antes de... Abandonar.

A sala de musica coincidentemente – e eu gostaria de escrever a palavra “boboca” em minha testa por não ter ligado as duas coisas no momento em que li aquelas palavras – era a sala 6 e se localizava no 3° andar. Lá se achavam alguns instrumentos musicais, até mesmo violino e bateria, mas o que mais gerava interesse era o piano e os violões. Também se realizava aulas desses instrumentos para os que tinham interesse, mas não àquele horário. Há muito não entrava naquele lugar, e desde então não pretendia voltar. Bem, até aquele momento.

Segurei o livro com as duas mãos de forma decidida, quando na verdade eu era uma libriana que passava meia hora para escolher uma cor de esmalte se alguém não me apressasse, e também ficaria ali sentada matutando minha decisão por meia hora ou mais se não se tratasse dele.

A grande curiosidade e o sentimento pelo rapaz fascinante eram mais fortes do que minha capacidade de pensar dez vezes antes de uma decisão, e até mais fortes do que a resistência que eu mostrava para com a sala de musica há anos, o que surpreendia até a mim mesma. Tal força que me levou a colocar o livro debaixo do braço e dar passos decididos de volta ao prédio das mesmas cores da fachada, passar pela porta dupla, os corredores vazios e subir as escadas com um pouco mais de cautela, mas sem hesitar. Sem olhar para os lados em momento algum, o que me deixaria orgulhosa de mim mesma no final, se desse certo. Mas afinal, o que haveria de dar certo?

Essa confiança, digna de um batom vermelho rubro, foi desaparecendo quando cheguei ao corredor que levava às salas de artes, jornalismo, teatro, dança, e por fim musica, tudo no 3° e queridíssimo andar. Depois de tudo, só havia voltado àquele andar para participar do jornal da escola, escrevendo crônicas juvenis toda a semana, paixão e hobbie que eu igualmente havia abandonado por conta deles.

Enfim, aquele assunto não convinha ao momento. Estava tensionada quando parei no corredor e encarei as paredes, cheias de desenhos de alunos talentosos, pinturas feitas pelos próprios professores de artes e palavras que referenciavam a cultura que supostamente adquiríamos participando daquelas oficinas. Em meus ouvidos, agora, havia uma melodia de Chopin. A famosíssima Nocturne Opus 9 No. 2 , que combinava perfeitamente com aquele momento de hesitação e curiosidade.

Mas estava alto o bastante para que eu não ouvisse nem o sinal da troca de aulas se ele tocasse naquele momento, desse modo logo puxei os fones como quem arranca duas veias pulsantes. Foi então, que para minha total surpresa, alivio e satisfação, eu continuei ouvindo uma melodia que não vinha dos meus fones.

Eu reconheceria de longe, era Beethoven! Parei imóvel, notando que a musica localizava-se só a alguns metros de mim, e não me sentia mais perturbada, não havia mais a aflição de quem procura por algo desconhecido. “Silence” era uma melodia extraordinária que tinha um poder colossal até sobre a alma mais vulgar, quem quer que a estivesse tocando fazia isso com maestria, sem errar se quer uma nota.

Mantinha-se alto o bastante para que eu sentisse-me tocada pelas notas e para que soubesse que o pianista também estava sentindo cada uma delas e tocando-as intensamente, e não obstante, ele tocava para que eu encarasse o mundo da melhor forma possível: como uma obra, um quadro violentamente comovente.

Quando já não me bastava apenas ouvir, iniciei uma caminhada lenta em direção ao som magnífico que me atraia como um cheiro, como uma trilha de pedras preciosas que me guiaram até uma porta entreaberta de onde a melodia soava tão alto que eu quase podia ver as notas musicais saindo, dançando encantadoramente, querendo encontrar uma alma tão receptiva quanto a minha.

Estava extasiada, mas ao mesmo tempo temerosa de me aproximar e interromper tal momento de deleite ao qual o pianista deveria estar se entregando. Sem contar que seria um pecado, absurdo interrompe-lo no meio de uma melodia como aquela.

Empurrei a porta da sala lentamente, e mesmo que ela tenha feito um ruído baixo, a musica de Beethoven não permitiu que um som tão insignificante a prejudicasse. Eu não me sentia verdadeiramente surpresa por saber que o pianista era o rapaz que eu observara tantas vezes antes, talvez completamente encantada fosse a reação certa.

Ele estava de frente para mim, sentado com postura ereta de frente para o piano, e enquanto tocava ele acompanhava a musica com movimentos leves de cabeça, com os olhos fechados – alias, aquele era o melhor jeito de ouvir essa melodia, de senti-la.

Seu rosto era tão belo quando estava tranquilo que, se tivesse coragem de me aproximar mais, eu o tocaria. O sol que vinha da grande janela aberta na parede direita também parecia querer toca-lo, e conseguia fazer isso muito melhor que eu. Iluminava até o piano negro, que se impunha sobre todos os outros instrumentos na sala ampla.

Atrevi-me a adentrar mais a sala, em passos cuidadosos, e quando já estava a poucos metros do piano eu me refreei, porque enfim havia notado que aquela cena não deveria ser tocada. Deveria ser apreciada, como um quadro belíssimo, como quando você olha algo e chega um momento em que precisa se lembrar do simples ato de respirar. Além disso, deveria ser ouvida, e para isso, enfim, fechei meus olhos.

Foi então que entendi o verdadeiro significado de ser tocada pela melodia, porque mesmo que falasse sobre isso outrora, nunca havia experimentado algo assim antes, algo tão... Vivo, caloroso. Uma troca, entre mim e o garoto ao piano, que eu esperava que ainda não tivesse consciência de minha presença. Seu livro ainda estava em minha posse, segurado frouxamente na mão esquerda.

Aquilo poderia durar para sempre, e eu nem notaria, mas cessou após algumas notas delicadas, em segundos, e quando não havia mais som ou calor que ligasse nós dois eu abri meus olhos. Senti uma lagrima quente descer por minha bochecha, mas não me movi, porque havia lindos e enigmáticos olhos castanhos me encarando do outro lado da sala, sentado como um maestro no banco do piano, sem nenhuma sombra de surpresa.

Foi então que me perguntei se ele sabia sobre mim tanto quanto eu sabia sobre ele. Se ele sabia que eu o observava sempre que se fazia chance, que eu conhecia detalhes que ninguém, talvez nem mesmo ele, conhecia. Que eu buscava e ansiava por informações, como se ele fosse um grande caso, ou uma melodia a ser composta. Que eu ouvia Beethoven, e que eu pegaria seu livro e saberia como chegar até a sala 6 do 3° andar, e mais importante: que eu sentia a musica.

Talvez soubesse até mesmo que não toco piano porque meus pais acham perda de tempo, como qualquer outro dos meus hobbies, como escrever, pintar, e que eles queriam que eu fizesse algo melhor como passar em medicina não para salvar vidas, mas para que eles dissessem quem eu sou.

Talvez ele soubesse que não importa no que eu me forme, não serei apenas medica, apenas um titulo. Serei alguém de sonhos frustrados, que não falaria com um jovem de pele pálida e constelações no pescoço se ele não abandonasse “No Presente” ao sol, perto do ipê amarelo onde se senta, onde o observo sob o ipê azul.

E o livro em minhas mãos, eu descobriria logo que tinha haver comigo, como o bilhete deixado dentro dele, como o piano negro, como o rapaz que levantaria do piano e secaria uma lagrima solitária em meu rosto.

Sim, ele sabia. Porque sob o ipê amarelo, fingindo ler seu livro, ele me espiava sob o ipê azul, ouvindo melodias e fazendo da vida uma obra, violentamente comovente.


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