O Cavaleiro de Sangue escrita por Reyna Voronova


Capítulo 3
Capítulo 3: Rumo a Biancennus


Notas iniciais do capítulo

Antes de lerem o capítulo, achei interessante dizer como os nomes são pronunciados. Colocarei só os nomes mais importantes.

Martos - MÁR-tos
Debron - de-BRÓN
Adao - a-DAL
Trebaněscu - tre-ba-NÊS-cu
Anvervion - an-ver-VIÓN (o R é pronunciado como na língua inglesa)
Adovaal - a-do-VAL (o -vaal tem um A longo)
Biancennus - bian-KE-nus
Parsin - par-SIN
Petrey - pe-TREY (R pronunciado como na língua inglesa)
Resci - RÉS-ki
Gorsce - GÓRS-ke
Peosttus - PIÓS-tus



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Capítulo 3

Rumo a Biancennus


Eu não tinha nenhuma ideia do que iria fazer para escapar da caravana quando chegasse ao nosso destino final. A partir do momento em que eu meu pai me dissera que eu iria partir para lá na caravana, eu não pensei no que iria fazer. Estava tão absorto na ideia de poder deixar Trebaněscu que não havia pensado em como iria fazer para sumir em meio a Biancennus. Toda aquela súbita oportunidade fizera eu me esquecer de me despedir de minha mãe e de meu pai para sempre. Jamais voltaria a vê-los, se minha ideia se concretizasse, e eu havia perdido a última chance de poder lhes dizer adeus. Mas eu dissera ao meu pai que o faria orgulhoso e cumpriria aquela promessa. Sentia todo o vigor do meu corpo e da minha juventude se voltando para poder tornar aquela fala realidade.

Andávamos havia algumas horas, e, apesar das árvores que margeavam aquele trecho da estrada, os primeiros traços da manhã já nasciam no horizonte. Já sentia dores por todo corpo, já que eu não era acostumado a andar a cavalo, e era sempre assim quando eu partia em eventuais caravanas.

Durante a viagem, parei para conhecer melhor os outros homens que viajavam conosco. Havia um parno, Parsin, um careca de meia idade com cara de poucos amigos que montava um garanhão negro como o que o meu irmão cavalgava. Havia um outro com traços davrílicos. Tinha o rosto maltratado pelo tempo, lábios finos e cabelos loiros que rareavam na cabeça. Seu nome era Petrey e ele olhava-me com tanto desdém que nem sequer tentava fingir outra coisa. Havia também uma mulher, Marsinae. Pelos seus traços, parecia ser háltra, e ela era de longe a mais ameaçadora, até mais que Petrey. O davrílico ainda olhava para nós, ainda que sua expressão fosse de puro desgosto, mas Marsinae parecia nem notar que estávamos ali. Havia outros homens também, mas a maioria era guarda da caravana.

Quando paramos pela primeira vez para descansar, na noite da madrugada seguinte, estávamos terrivelmente cansados. Já havíamos saído da paisagem de bosques ao redor da estrada para as pampas, um lugar que oferecia menos perigo de animais selvagens, mas mais perigos de ladrões. Entretanto, os guardas estavam todos a postos com armas na cintura e iriam fazer vigília, alternando turnos entre si.

Fizemos uma fogueira e alimentamos os animais, para depois nos alimentar das provisões que trazíamos. Comemos da carne seca que os donos da caravana trouxeram e partilharam conosco, e eu e Adao partilhamos vegetais para uma sopa. Na hora de dormir, vi que Marsinae ficou na carruagem que transportava algumas mercadorias. Parsin foi o primeiro a dormir. Logo depois, Adao decidiu dormir, e por fim eu também me rendi ao sono. Petrey fora o único que não vi dormindo.

Acordei com Petrey me cutucando com o pé falando que iríamos partir. Seu sotaque era engraçado, falando as vogais bem abertas como se estivesse com o nariz entupido, falando um R que parecia enrolado na língua e tendendo a acentuar todas as últimas sílabas das palavras. Por exemplo, ele me chamava não de Martos, com estresse na primeira sílaba, mas de “Mardósh”, com ênfase na última. Soube algum tempo depois que aquela era a variante davrílica do meu nome, assim como a variante háltra de Petrey era Patce.

Levante-me apressadamente e montei no cavalo, pronto para partir. Percebi no segundo dia de viagem que Petrey e Marsinae estavam na carruagem, Petrey comandando os cavalos e Marsinae como acompanhante. Imaginei que fossem casados, devido à proximidade que notara entre os dois enquanto cavalgávamos. Parsin voltou a montar seu garanhão negro, e ora cavalgava bem atrás de nós, ora acelerava seu cavalo a ponto de liderar a caravana. Imaginei que ele fazia isso para observar a estrada, vigiando se alguém nos seguia por trás ou se havia bandidos ou outros empecilhos à frente.

Paramos para dormir à noite, numa paisagem limpa de árvores, mas menos plana que a anterior. Aquele local em que estávamos era como se a cidade de Trebaněscu estivesse totalmente nua de edifícios, muralhas e estradas. A capital do Alto Império Rênsio se situava num lugar cheio de ondulações. O próprio Palácio Branco residia sobre uma delas, a Colina do Imperador.

Naquela noite, os caravaneiros pareciam estar menos frios, chegando a trocar algumas palavras comigo. Um dos guardas — um rapaz háltro-davrílico, já que ostentava cabelos dourados e olhos castanhos — resolveu conversar comigo. Chamava-se de maneira bem incomum, já que tinha um nome háltro e um nome de família davrílico, Sisco Dalazcvion. Ao ver sua aparência mista, perguntei-lhe se ele havia morado na Anvéria, e ele respondeu-me:

— Nasci na Anvéria, mas vim enquanto criança para a Eldônia. Não me lembro de nada daquele lugar, apenas o que me contaram. Só sei que há regiões lá em que a neve é eterna, e que há pessoas que moram nas placas de gelo no extremo norte.

— Em que cidade nasceu? — perguntei. Não conhecia nenhuma cidade anvere.

— Em Anvervionezc, a capital. É um lugar com neve durante metade do ano. A outra metade não neva, mas é igualmente fria. Prefiro Biancennus. Tem um clima agradável durante todo ano, com eventuais neves no inverno, mas nada de congelar os ossos como na Anvéria. — Ele se abraçou, como se falar daquele lugar gelado lhe trouxesse o frio de volta e, por isso, precisasse se aquecer.

Depois disso, comemos e dormimos, para acordarmos antes de o sol nascer no dia seguinte. Seguimos essa rotina durante cinco dias, e nessa primeira semana de viagem, descobri muito mais sobre os caravaneiros. Pela primeira vez realmente troquei palavras com Petrey, no terceiro dia. Ele não parecia ostentar o mesmo olhar de desdém como nos primeiros dias. Perguntei-lhe sobre a Anvéria.

Mardósh não pergunta isso para Siscró?

— Sisco? — Eu já estava aprendendo a lidar com seu sotaque davrílico. — Sim, mas ele não viveu muito tempo na Anvéria.

— Hmpf. Anvéria terra gelada. Apenas isso. — Parecia que ele não sabia falar muito do idioma háltro. Talvez aquilo explicasse sua falta de palavras. — Vim na Eldônia para casar. Marsiné minha esposa. — Como eu suspeitara de início, Marsinae e Petrey eram casados e donos da caravana. Para lidar com aquele homem que pouco falava háltro, Marsinae provavelmente era fluente em davrílico. — Clima melhor aqui. Pessoas melhores. Mas não falo háltro bem.

— Quer voltar à Anvéria?

— Nunca. Apenas aprender háltro.

— Posso ajudá-lo, se quiser.

No quinto dia, paramos em uma pequena cidade, Resci. Era uma cidadezinha simples com moradores igualmente simples. As casas mais nobres ainda não tinham toda a pompa que as residências nobres de Trebaněscu possuíam. A taverna não tinham cervejas muito boas, e os colchões dos quartos da única estalagem eram de palha. O aspecto da cidade não era tortuoso como em Trebaněscu, mas possuía umas poucas ruas, todas de terra, ao invés das ruas pavimentadas da capital. O lugar mais movimentado da cidade era a praça principal, que funcionava também como mercado, onde a única estalagem e a única taverna se localizavam e onde também se localizava a residência do conde.

Pudemos finalmente beber cerveja e dormir em camas confortáveis naquela noite. Quando estávamos bebendo, Petrey me acompanhou. Durante nosso percurso até Resci, cavalguei ao seu lado para lhe ensinar algumas palavras e corrigir alguns de seus erros. Por exemplo, corrigi a falta de alguns verbos e de artigos. Aparentemente o anvere não tinha um verbo para determinar estado nem artigos. Quando chegamos a Resci, Petrey já falava bem melhor algumas frases simples, sem soar muito estranho aos nossos ouvidos. No entanto, ele ainda mantinha um sotaque que o delatava como falante nativo de davrílico, como o R enrolado.

Bebemos cerveja, e descobri através de Petrey que os anveres preferiam bebidas como conhaque, que eram mais fortes, ou até mesmo chás, para esquentar no frio. Algum tempo depois, Parsin sentou-se conosco. Creio que se juntou a nós mais por causa da presença de Petrey do que da minha. Ele também pediu uma cerveja e, por educação, pôs-se a conversar comigo.

— Está ajudando Petrey a falar háltro?

— Sim — respondi-lhe.

— Hum. — Ele bebeu um gole de sua cerveja. — Está fazendo um bom trabalho.

— Você é parno — Senti-me tentado a perguntar: — Fala parno?

— Sei um pouco, mas nada de mais. — E bebeu um último e longo gole, esvaziando o conteúdo da caneca. — Deseja estudar parno, não é?

— Eu gostaria, mas o parno está extinto.

— Não na Academia. Dizem que aquele lugar surgiu apenas para estudarem parno.

— Ouvi dizer. — As palavras para dizerem que eu pretendia ir para a Academia quase saltaram da minha boca. Todavia, eu tinha de manter em mente que meu irmão me acompanhava, e ele jamais poderia saber de meus planos. — Vai beber outra cerveja?

— Se você estiver se oferecendo para pagar, sim. Se não, vou para a cama. — Antes que eu tirasse uma moeda do bolso para lhe pagar outra bebida, ele se levantou e foi embora, dando um tapinha nas costas de Petrey.

Nós dois bebemos mais uma cerveja e depois fomos aos nossos quartos, para dormir. Eu deitei na cama, totalmente dolorido e cansado por conta da viagem. Minha simples vida como comerciante não me permitia cavalgar o dia inteiro sem sentir dores como Parsin, que parecia ter nascido já no dorso de um cavalo. Assim que pus a cabeça no travesseiro, apaguei.

Algumas horas mais tarde, porém, um barulho que parecia vir de dentro do meu quarto me acordou. O barulho de uma porta se abrindo e fechando. Clac, o som da porta sendo trancada me fez abrir os olhos e levantar num sobressalto. Diante de mim, uma luz de uma vela bruxuleava, e eu pude ver à luz da tímida chama um rosto familiar.

— Você disse que queria aprender parno, não é mesmo, garoto? — a voz de Parsin sussurrou na escuridão para mim.

A mistura de temor, sono e de não saber como agir me fez simplesmente acenar com a cabeça.

— Pude ver pelo seu tom de voz que pretende ir para a Academia — ele continuou no mesmo sussurro que começara. — Posso ajudá-lo nisso. Também estou indo para lá.

— Não é um dos caravaneiros? — perguntei numa voz alta demais, e Parsin colocou o dedo na frente da boca me pedindo mais silêncio.

— Sou apenas um homem que pagou a Petrey e Marsinae para me deixar viajar com eles. Mas em Biancennus, sou um Acadêmico. Carrego algo de muito valor para a Academia, e por isso resolvi viajar escoltado pela caravana, com medo de possíveis... atrasos. E também sei reconhecer um jovem promissor para dizer as línguas. O jeito com que tem ensinado Petrey a falar háltro me diz que você tem dom para as línguas, e vejo que você absorveu muita coisa do anvere sem ouvir uma palavra nessa língua. — Aquilo era verdade. Apenas notando os erros de Petrey, já havia percebido muitos detalhes daquele idioma. — Venha comigo para a Academia. Se vier, posso lhe garantir que farei de você um Acadêmico.

— E quanto ao meu irmão?

— Podemos dar um jeito nisso. Podemos seguir por uma estrada no meio do vale, desviando nosso caminho. Sei que a caravana irá contornar o vale, o que é mais seguro, mas mais devagar. Se pegarmos o atalho no vale, chegaremos mais rápido a Biancennus, com um ou dois dias de vantagem, se formos bem rápido, e isso me dará tempo de te esconder do seu irmão e do resto da caravana. Levarei você à Academia, e lá, apenas os Acadêmicos e os Iniciados podem entrar. Portanto, se algum deles tentar entrar lá para procurar-nos, será barrado. Você aceita?

— Promete que irá me levar à Academia?

— Não duvide da palavra de um Acadêmico. E fique preparado. Daqui a dois dias de viagem, iremos tomar o desvio, enquanto todos estiverem dormindo.

Na manhã seguinte, saímos de Resci. Minhas costas pinicavam por causa do colchão de palha e doíam por causa da cavalgada. Minhas pernas também começavam a arder por conta da sela, mas isso só foi a partir da tarde. Continuei a conversar com Petrey, mas com um olho atento em Parsin.

A paisagem já estava ficando menos ondulada; montanhas começavam a aparecer à nossa direita, enquanto à nossa esquerda eu sabia que as pradarias se estenderiam até o litoral. Estávamos finalmente contornando o Vale Gorsce. Passar pelo meio dele poderia ser uma boa alternativa se não fosse o rio Gorsce, que dava nome ao local e que corria no meio do vale. Passar por lá com um pequeno grupo de viajantes era uma alternativa muito utilizada, mas trafegar com uma caravana cheia de animais poderia se tornar arriscado dependendo da época do ano, por isso muitos caravaneiros resolviam contornar o vale.

Quando a noite caiu, comecei a ficar tenso. Paramos nas planícies para finalmente descansarmos. Mais uma vez comemos carne e sopa. Troquei mais palavras com Petrey — as últimas — e então fomos dormir. Vi Parsin dirigindo um olhar sério para mim antes de se deitar.

Naquela noite, não consegui pegar no sono. Minha ansiedade para finalmente ter êxito no plano e, ao mesmo tempo, meu medo de que ele falhasse não me deixaram fechar os olhos. Às vezes abria os olhos e enxergava Sisco, o vigia daquele primeiro turno, polindo sua espada. Após um tempo, ele se levantou, acordou Parsin e foi dormir. Eu sabia que era chegada a hora. Aquele era o único momento que eu e Parsin teríamos para sairmos sem sermos detectados pelos outros viajantes, se tudo corresse como ele havia planejado.

Ele não me acordou imediatamente. Esperou cerca de vinte minutos, então veio até mim para me acordar, mas eu já estava de olhos abertos.

— Levante-se, pegue o que precisar, prepare seu cavalo e vamos embora — ele ordenou, levantando-se logo em seguida para cuidar do seu cavalo.

Eu lhe obedeci e levantei-me, indo imediatamente ao meu cavalo. Meus poucos pertences estavam bem seguros com ele. Preparei a sela e lhe dei um pouco de feno. Não tínhamos estoque de comida para os animais, portanto tratei de alimentá-lo ali, pois sabia que teríamos que fazer paradas constantes para lhes dar comida. Olhei para o um Adao adormecido, deitado com cobertores sobre si. Minhas emoções se dividiram. Uma parte de mim sentiu pena de deixá-lo sem dizer para onde eu ia e com que propósito. Outra parte estava mais que contente por se livrar daquele estorvo em minha vida. Eu não sabia decidir qual daqueles sentimentos era mais forte; consequentemente, eu não sabia decidir o que sentir naquele momento.

— Estou pronto — disse a Parsin, que terminava de preparar seu garanhão negro.

— Então vamos embora. — Montou no cavalo, e eu o imitei.

Cavalgamos seguindo pelo caminho inverso que havíamos percorrido até então. Olhei para trás e vi os caravaneiros acordando com o som dos galopes. Ouvi-os gritarem alguma coisa, mas não sabia se era dirigida a nós ou entre eles. De qualquer forma, alguns dos guardas montaram e foram ao nosso encalço, já brandindo espadas ou retesando seus arcos, mirando em nós. Esporeei o meu cavalo para fazê-lo ir mais rápido.

— Parsin, eles estão atrás de nós — avisei.

Parsin apenas olhou para trás, o pano de um turbante que usava na cabeça esvoaçando, e disse:

— Vamos deixá-los se aproximarem.

Fiquei pasmo. Aquilo seria suicídio. Eu tinha apenas minha faca, e, até onde eu imaginava, Parsin não trazia nenhuma arma consigo. Se deixássemos os guardas se aproximarem, iríamos morrer.

— Isso é loucura! — berrei contra o vento. — Temos de acelerar! Vamos tentar atravessar a margem do rio.

— Eles irão atravessar também, ou pior: vão atirar flechas contra nós.

— Vão atirar ou já estão atirando? — perguntei sarcasticamente, sentindo algumas flechas passarem rentes a mim.

Parsin limitou-se a esporear seu cavalo para fazê-lo ir mais rápido. Fiz o mesmo com o meu, temendo que ele pudesse perder o fôlego e se cansar. Porém, minha montaria aguentou bem a pressão e manteve-se seguindo Parsin.

Pude ver as marcas de uma estrada que se desviava da nossa. Ela parecia ser pouco usada, já que a grama crescia nela. Parsin tomou aquele caminho, e eu soube que aquele era o nosso atalho. Segui-o, assim como os guardas. Aquele atalho era perigoso não apenas por causa do rio, mas também porque cruzava as montanhas. Carregar uma caravana pelas montanhas era apostar na sorte. Os animais poderiam pisar em falso e cair ladeira abaixo, trazendo um prejuízo enorme aos caravaneiros. Contudo, cavalos bem treinados eram aptos a passar por ali, e eu pude sentir a confiança em minha montaria quando começamos a subir pela estrada que rodeava a montanha.

— Eles ainda estão nos seguindo? — perguntou Parsin, olhando para mim.

Olhei para trás e vi-os tomando o nosso atalho.

— Sim — respondi, sem afrouxar o ritmo.

Akrevaas sadosin — Parsin disse, provavelmente em parno.

Naquele momento, eu não soube o que acontecera com exatidão depois que Parsin falara aquelas palavras. Parsin recitou todo um texto enquanto cavalgávamos, subindo cada vez mais a montanha. Na época, não entendi uma palavra do texto que ele proferia. Eu só tive a certeza de uma coisa naquele instante: que Parsin dizia as línguas, e que nossos perseguidores estavam sendo atrasados por conta daquilo. Por fim, não consegui ver o que lhes sucedera, pois estávamos muito distantes.

Já estávamos descendo a montanha quando Parsin subitamente desacelerou o cavalo para que seguisse em passo ordinário. Fiz o mesmo apenas para não ultrapassá-lo, mas não entendi por que seguíamos numa velocidade tão reduzida. Estávamos bem à frente, mas os cavaleiros poderiam nos alcançar a qualquer momento, principalmente se andássemos tão devagar como naquele momento. Percebendo no meu rosto minhas dúvidas, Parsin declarou:

— Eles não estão nos seguindo, garoto. Contei-lhes uma história para que dessem meia-volta. — Ele sorriu maliciosamente com aquilo. — No entanto, acho que errei alguma coisa, pois um caiu morto. — Um súbito medo cresceu em mim. E se o homem que ele matara fosse, na verdade, meu irmão? Era fato de que eu detestava Adao, mas não queria vê-lo morto. Ele era desprezível, mas ainda partilhávamos o mesmo sangue. Imaginei que, se ele não possuísse o mesmo sangue que eu nas veias, eu pudesse tê-lo simplesmente ignorado.

— O que você fez? — tentei soar natural, mas o pânico atingiu minha voz depois que ele disse que matou um dos perseguidores.

— Você saberá quando se tornar um iniciado na Academia. Você não iria entender se eu lhe explicasse agora.

— Explique de maneira que eu possa entender.

— Digamos que a sua existência é como um texto. Um texto sem falhas, com todas as palavras perfeitamente ligadas umas às outras como numa corrente. O que aconteceria se eu mudasse uma dessas palavras de lugar, trocasse ou removesse uma dessas palavras ou alterasse o conteúdo desse mesmo texto?

— Não será o mesmo texto — respondi sem entender aonde ele queria chegar com aquela conversa.

— Exatamente. Logo, não será o mesmo você. O que eu fiz foi acessar os textos daqueles perseguidores e alterá-los de modo que eles desistissem de ir atrás de nós. No entanto, creio que modifiquei algo no texto de um deles que ocasionou algo que eu não havia previsto, já que ele caiu morto. Não era meu propósito. Lamento. Vi que ficou assustado.

— Tudo bem — eu respondi, ainda meio cético. — É a isso que terei acesso na Academia? A poder... falar como você falou ali atrás?

— Sim, garoto. Se você se tornar um iniciado, terá acesso aos segredos que permeiam a língua parna.

Meus olhos brilharam diante daquelas palavras. Eu ainda não tinha certeza do que Parsin havia feito. Aquela conversa sobre textos soava muito metafórica para mim. Mas fosse lá o que ele tinha feito, eu queria ter aquele poder para mim. Impedir que me perseguissem simplesmente recitando um discurso, ou até ter poder sobre a vida de alguém. Naquela época, eu imaginava que dizer as línguas era fácil como respirar. Contudo, eu soube algum tempo depois que dizer as línguas é como treinar um cão. Você até pode lhe dar os comandos para algum truque, mas não se pode garantir que ele irá se comportar da maneira esperada.

— Vamos seguir caminho, garoto — Parsin disse-me, seguindo pela trilha da montanha. — Temos ainda mais seis ou cinco dias de viagem. E não se preocupe tanto com os caravaneiros. Duvido que eles voltem para nos procurar. O máximo que farão será nos procurar quando chegarem a Biancennus.

Nós cruzamos o vale. Tivemos que fazer os cavalos atravessarem o rio, o que demandou bastante tempo, mas tudo correu bem. Nenhum animal nem cavaleiro se feriram na travessia. Depois cavalgamos um dia inteiro até chegarmos ao povoado de Gorsce, onde arranjamos feno para os cavalos e um teto sobre nossas cabeças.

Não era lá um castelo, muito menos era confortável, mas nos protegeria do vento e de bandidos. Naquela noite, dormimos num estábulo de um dos moradores e comemos a simples comida que uma das mulheres que lá moravam nos ofereceu. Era uma sopa que parecia ser pura água, já que quase não havia vegetais. Na manhã seguinte, levantamo-nos cedo, agradecemos pela hospitalidade e partimos, seguindo a leste rumo a Biancennus.

Cavalgamos por novas paisagens, agora mares de morros. Ali se situava a cidade de Peosttus, também conhecida como a Cidade Roxa. Nós nos dirigimos para lá no segundo dia para, mais uma vez, alimentarmos os cavalos e arranjarmos um lugar seguro para dormir.

Era uma cidade fria, íngreme e chuvosa, de muralhas roxas irregulares, já que elas seguiam o relevo da região. Os lugares que se situavam num declive, por exemplo, tinham uma muralha mais baixa que os lugares nas regiões mais altas. No entanto, era um lugar agradável. As ruas eram pavimentadas, limpas e havia guardas trajando roxo e branco — as cores de Peosttus e de Trebaněscu, respectivamente — patrulhando a cidade. Quando chegamos lá, Parsin perguntou a um deles onde se localizavam as estalagens da cidade. O guarda, ao perceber a figura de Parsin, abaixou a cabeça longamente num sinal de respeito.

— Senhores. — Fez uma mesura a Parsin e a mim. Não entendi o porquê de me incluir. — As melhores estalagens estão nas ruas próximas à Torre Roxa. Creio que lá poderão alimentar seus cavalos, inclusive.

— Eu agradeço, meu bom homem — respondeu Parsin, e seguimos pela cidade.

Começamos a subir uma série de ruas, e percebi que estávamos na parte mais pobre da cidade, que também era a mais baixa. As casas lá não eram muito diferentes das de Trebaněscu. Ao olhar aquilo, pensei que só há uma maneira de ser pobre, mas há diversas maneiras de ser rico. Aquela teoria foi confirmada quando subimos as íngremes ruas para os bairros mais nobres. Diferente das casas de pedra clara da capital, os ricos de Peosttus preferiam edifícios estreitos e bem altos, de pedra escura, e coloridos de cores igualmente escuras. A moda do lugar era, claro, a cor roxa, apesar de que vi torres vermelho-sangue, marrons e azuis. No entanto, não havia nenhuma preta ou de alguma cor clara.

Por fim, passamos diante de uma enorme praça. Era tão grande quanto o Palácio Branco e tão espaçosa quanto uma extensa pradaria. Como já anoitecia e chovia, não havia ninguém naquele lugar, apenas uma solitária estátua de uma figura da qual não consegui enxergar detalhes em meio à escuridão. Imaginei que nas manhãs de clima agradável, aquela praça deveria funcionar também como um mercado. Aquilo me deixou surpreso e um pouco envergonhado. Em Trebaněscu, a capital do Alto Império, não tínhamos um mercado tão grande quanto àquele.

Ao longe, pude ver extensas escadarias levando a uma alta torre. Supus que fosse a Torre Roxa, a residência dos condes de Peosttus. Não consegui ver muitos dos seus detalhes, apenas notei com curiosidade de que ela não era defendida por muralhas como o Palácio Branco da capital. Acredito que talvez não fosse interessante gastar dinheiro cercando a residência de simples condes e condessas. Era mais vantajoso colocar guardas para vigiar a entrada à torre, e, no momento que pensei nisso, vi a figura de dez guardas, cinco de cada lado da escadaria, corroborando minha teoria.

Queria que nos aproximássemos da Torre Roxa, porém, Parsin virou à esquerda, tirando-me da minha contemplação da praça e da torre. Cavalgamos um pouco mais, nos contorcendo pela cidade em ruas escorregadias de chuva. Minhas roupas e meu cabelo já estavam todos molhados, bem como as roupas e o turbante de Parsin. Entretanto, ele não parecia se importar com aquilo.

Chegamos finalmente a uma estalagem com um estábulo, onde guardamos os cavalos que havíamos roubado da caravana. Não pude evitar pensar em meu irmão e no que ele estaria achando de mim depois de tudo aquilo. Será que me procuraria uma vez que chegássemos a Biacennus? Iria me deixar por minha conta e risco lá? Iria contar aos nossos pais, se é que meu pai ainda estivesse vivo? Muitos se curvariam de medo diante de pensamentos traiçoeiros como aqueles, mas minha ambição sempre me manteve forte, mais forte do que qualquer outro sentimento que eu pudesse ter. Minha cobiça avivava meus outros sentidos se aquilo me fosse benéfico de algum modo. O medo naquele momento não me trazia nenhum benefício, e quando me imaginei dizendo as línguas como Parsin, aqueles pensamentos sobre minha família desvaneceram-se como vapor d’água.

Dormimos e, na manhã seguinte, partimos de Peosttus. Na partida, pude ver com mais detalhes a Torre Roxa. Era enorme. Parecia o fio de uma espada de lâmina roxa cortando os céus. Fiquei maravilhado com aquele lugar. Nem imaginava que o que me esperaria em Biancennus fosse ainda mais grandioso. Na verdade, eu esperava de Biancennus um lugar frutífero para meus desejos, mas não esperava que a magnificência de Peosttus pudesse ser superada ou até mesmo equiparada. Estava enganado.

Durante os dias seguintes, paramos apenas no meio da estrada. Passamos por florestas, montanhas, planícies, depressões, cordilheiras e cânions. Este último, por sua vez, foi um momento marcante de nossa viagem. Era um lugar de beleza inimaginável, com um dos rios que abastecia Biancennus correndo na direção da cidade, e eu e Parsin cavalgávamos nas escarpas que margeavam o Rèntceo, que serpenteava lá embaixo. Pude notar Parsin rindo de felicidade quando me viu espantado com a beleza daquele lugar.

Fora naquele lugar, também, que resolvi perguntar-lhe sobre o valioso objeto que carregava. Ele me dissera no dia que fora me encontrar no meu quarto em Resci que carregava algo de muito valor para a Academia. Não sabia o que era, mas tinha certeza de que não era nada grande demais que não pudesse ser carregado apenas por ele.

— Parsin, você disse que levava algo de valor para a Academia — eu comecei. — O que é?

— Nada que você possa entender a essa altura, garoto — ele me respondeu num tom casual, sem rancor ou irritação. Eu me impressionava com sua paciência. Outra pessoa talvez achasse aquela pergunta intrusiva demais.

— Pode me explicar de modo que eu possa entender?

Ele hesitou durante algum momento e respondeu:

— Não, não desta vez. Suponho que nem eu entenda muito bem sobre o que se trata.

— Mas é um objeto?

Ele parou e pensou, a dúvida clara em seu semblante.

— Em parte.

E depois seguimos, em silêncio, em direção de Biancennus. Estávamos cruzando um planalto no momento em que vi as muralhas brancas como nuvens. Era fim de tarde, mas aquele lugar parecia irradiar um brilho próprio. Era a cidade que brilhava ou meus olhos que reluziam de admiração por aquele lugar? Pude notar duas grandes construções, duas cúpulas, uma azul, a outra branca como as muralhas. Parsin aproximou-se de mim e me explicou:

— Bem-vindo a Biancennus, garoto, a antiga capital do Reino da Rênsia. Aquele edifício branco é a Fortaleza dos Reis, mas o edifício que lhe interessará mais é aquele. — Apontou para a cúpula azul. — A Academia. Agora vamos logo. Imagino que você esteja ansioso para adentrar as muralhas. — Esporeou seu cavalo, e eu fiz o mesmo.

Continuamos nosso caminho, saindo do planalto e voltando às planícies, até por fim pararmos diante daquelas magníficas muralhas. Os guardas permitiram a nossa entrada, e nós trotamos rumo a Biancennus.

Aquela cidade era viva, viva como nenhuma outra que eu tivesse visto. Havia muitas árvores, praças coloridas de flores e de crianças brincando, as ruas pavimentadas, os edifícios lindamente decorados. Aquele lugar parecia ser um sonho vivo. Percorremos mais alguns lugares antes de chegar à Academia. Eu sequer prestava atenção em controlar o cavalo, porque ficava observando tudo ao meu redor. Olhava aquelas construções simples, de pedra e madeira, mas as admirava.

Passar diante da Fortaleza dos Reis também me deixou maravilhado. Tal como em Peosttus, havia uma enorme praça com uma escadaria que levava à residência de mármore do conde de Biancennus. No entanto, aquela praça não era tão grande quanto à de Peosttus, mas era igualmente linda, com uma estátua de um cavaleiro no meio de uma fonte. Já a fortaleza era composta de uma enorme cúpula com duas torres de cada lado. Havia outras quatro torres menores que rodeavam a pomposa cúpula. Na entrada, havia diversas colunas, com guardas dispostos entre os espaçamentos entre uma coluna e outra. Apesar de eu não ter visto a Torre Roxa de perto, tive certeza de que a Fortaleza dos Reis era maior e mais imponente.

Cavalgamos um pouco mais até chegarmos à Academia. Tivemos de largar nossos cavalos, pois teríamos que subir escadas. O edifício principal da Academia era, assim como a Forteleza, uma cúpula rodeada por seis torres, duas grandes de cada lado e quatro pequenas rodeando a abóbada central. À frente, havia um enorme jardim, tão grande quanto a praça de Peosttus, como os que eu havia visto assim que entramos na cidade: cheio de árvores, flores coloridas e cercas-vivas. Havia trilhas que cortavam o jardim, e nós tomamos uma delas, uma enorme reta em direção aos portões.

— Fique ao meu lado — disse Parsin.

Havia alguns homens e mulheres nos jardins, alguns caminhando despreocupadamente, outros cuidando das árvores e plantas que haviam ali e alguns até mesmo liam e estudavam, deitados ou sentados sobre a grama. Reparei que todos os homens eram carecas como Parsin, e as mulheres mantinham o cabelo curto como seria normal a um homem. Muitos se vestiam de cinza, mas havia um ou outro que trajava azul claro. Os homens trajavam botas, calças e batinas de suas respectivas cores, enquanto as mulheres usavam vestidos sem decotes que se assemelhavam bastante com as roupas masculinas, mas com detalhes femininos. Nenhum deles reparou em mim, mas pude perceber que Parsin acenava para um ou outro que o cumprimentava enquanto caminhávamos.

Quando chegamos lá — eu já cansado de andar e cavalgar —, Parsin parou diante da entrada, onde dois homens de armadura permitiu a nossa entrada. Parsin abriu as portas do prédio principal, e quando o fez, disse-me, olhando-me com um sorriso nos lábios:

— Seja bem-vindo à Academia!


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