O Cavaleiro de Sangue escrita por Reyna Voronova


Capítulo 1
Capítulo 1: Infância Demoníaca




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Capítulo 1

Infância Demoníaca


Meu nome é um prenúncio de sangue e morte, um trovão num céu cinzento, uma onda gigante numa tempestade marítima. Chamam-me Debron, Deus da Traição e da Discórdia, Cavaleiro de Sangue. Poucos têm a coragem de me venerar, e menos ainda são aqueles que ousam me difamar.

Contudo, nem sempre foi assim. Não me chamavam Debron, não era conhecido, sequer era um deus. Fui um simples mortal que nasceu e viveu boa parte de sua vida no Alto Império Rênsio. Nasci na região da Háltra, mais especificamente em Trebaněscu, a capital não apenas da região, mas de todo o império. Isso indica que cresci rodeado de grandeza e não é segredo admitir que desde cedo eu fora influenciado por ela. Sendo um filho de simples comerciantes que ganhavam a vida vendendo tecidos no mercado local, a ambição de poder estar por dentro das muralhas do palácio me era tentadora desde criança.

Meu nome, agora esquecido para sempre, era Martos Altarus, filho de Alănea e Martceo Altarus. Tive outros dois irmãos mais velhos, Fèlitce e Adao, pessoas desprezíveis que eu aturava apenas pela minha ligação de sangue e pelos sobrenomes em comum. Eles sempre foram ótimos em troçar de mim e me fazerem pagar pela sua desobediência como um bode expiatório.

Minha infância não foi a melhor que eu poderia ter, mas também não foi a pior, apesar da dificuldade financeira dos meus pais e da dificuldade de lidar com meus próprios irmãos. Nunca tive muitos amigos porque desde criança eu sempre fora um reflexo daquilo que sou hoje: traidor, vingativo e gostava de causar discórdia entre meus semelhantes apenas para me divertir em vê-los reagindo.

Talvez fosse por isso que meus irmãos me desprezassem. Sabiam melhor que ninguém da minha natureza maliciosa e tentavam me punir para que eu tentasse tomar outro rumo. Mas um homem que tanto tenta curvar o tronco de uma árvore nem sempre conseguirá entortá-la, e eles não conseguiram. Sempre fui visto como um garoto qualquer, mas com intenções maldosas. Era comum ouvir os pais de meus colegas de brincadeiras de rua ralhar com eles em tom provocador e amedrontado:

— Pare de brincar com esse tal Martos, o filho do vendedor de tecidos! Ao que me parece, está endiabrado! Nem mesmo os irmãos conseguem retirar-lhe o diabo do corpo!

Eu, é claro, ria às gargalhadas quando contavam-me tais histórias. Não havia me alertado para os perigos de uma reputação ruim, principalmente numa cidade tão grande quanto Trebaněscu, mas que criança teria se preocupado com isso?

Lembro-me de estar brincando perto do mercado certa vez e, nessa ocasião, preguei uma peça em meus colegas. Sugeri a eles que fôssemos continuar a brincadeira mais ao longe, sem sermos vistos pelos olhares cautelosos demais de nossos pais. Eles, como crianças tolas que eram, obviamente aceitaram.

Fomos até perto do Palácio Branco, o lar da família imperial Anvervion. Os Anvervion não eram háltros como nós, mas sim davrílicos. Não ostentavam os mesmos traços escuros de nossos olhos e cabelos nem a cultura háltra da boa fala, mas eram brutos de cabelos loiros e olhos azuis. Isso fazia com que muitos de nós odiássemos aquele povo que roubara nossa terra de nosso próprio povo e também o temesse. As crianças na época ouviam constantemente histórias sobre aquele povo gélido que vivia entre as florestas nevadas da Anvéria e aprendiam a temê-las. Meus amigos não eram exceção; eu, talvez, a fosse, porque nunca temera os davrílicos nem os Anvervion. E fora por aquele motivo que eu os levara para tão perto do palácio.

Quando chegamos lá, todos começaram a protestar.

— Por que nos trouxe aqui, Martos? — disse um deles, ironicamente um rapaz de traços davrílicos. — O Palácio Branco me assusta. Dizem que os Anvervion são feiticeiros que falam a língua dos parnos. — Os parnos eram uma outra etnia, muito diferente de nós, háltros, e ainda mais diferente dos davrílicos. Ainda naquela época, possuíam uma reputação de feiticeiros por falarem uma língua estranha e supostamente mística.

— Que mentira, Alco — zombou uma das garotas, Sinesci. — Eles não falam parno, eles falam davrílico, e o davrílico não tem nada de errado. Sua mãe é davrílica!

— Mas ela não fala feitiçarias — ele respondeu num ar sério. — Seja como for, não gosto deles.

— Também não gosto dos davrílicos — eu disse, interrompendo a conversa de Alco e Sinesci. — Mas não tenho medo deles. Bem, se vocês estão com tanto medo assim, podem correr de volta para o colo das suas mães.

Todos se entreolharam. Ninguém iria correr de volta para o mercado, para a segurança de seus pais. Eram covardes para enfrentar o desafio que eu propusera, mas eram ainda mais covardes para fugir. Mesmo com medo, todos assentiram, e nós voltamos à brincadeira de esconder.

Contudo, meu plano ainda iniciava-se. Eu não pretendera ser a pessoa que contaria até cem de olhos fechados, mas sim um dos que se escondem. E eu planejara me esconder numa árvore bem alta cujos galhos ultrapassavam os altos muros do palácio. Certamente nenhum deles me veria, estando eu escondido pela volumosa copa da árvore, e os outros teriam de me procurar ou nos arredores ou dentro do próprio castelo. Imaginei que seria engraçado vê-los perguntando pelos guardas se algum garoto havia entrado no castelo, tentando esconder o medo que sentiam dos davrílicos e da família imperial Anvervion.

Sinesci se voluntariou a contar, e todos aceitaram. Estávamos em cinco incluindo Sinesci, e assim que ela se pôs a contar com os olhos fechados e voltada em direção a outra árvore próxima à que eu escolhera, todos começaram a correr, e eu comecei a minha escalada.

Como eu era um rapaz pequeno, de pouco mais de seis anos, não tive muitos problemas em subi-la inicialmente. Era uma árvore cheia de galhos, protuberâncias e sulcos em que eu poderia apoiar meus pés e mãos. Porém, cometi o erro de olhar para baixo após alguns segundos de escalada que pareceram horas. Sinesci ainda estava contando, mas já estava na casa dos sessenta, e eu tinha apenas cerca de quarenta segundos para alcançar uma posição que me escondesse dela. Tentei acelerar a subida, perdendo completamente o medo, que agora dera lugar à pura travessura. Até hoje creio que me considero travesso. Não como uma criança, claro, mas como um deus, e os deuses são excelentes em fazer travessuras com os humanos.

Consegui um bom lugar escondido num dos mais altos galhos da árvore. A copa e galhos cheios de folhas e flores escondiam-me bem pelas laterais e, atrás de mim, pude ver os jardins do palácio há metros de distância. Não era realmente possível invadir o palácio apenas subindo aquela árvore e pulando. Acredito que nem mesmo um assassino habilidoso conseguiria fazê-lo. Porém, meus colegas eram burros o suficiente para acreditarem nessa possibilidade. A única maneira de me detectar era olhando diretamente para cima, mas eu duvidava que Sinesci fosse esperta a esse ponto. Provavelmente iria sair correndo pelos arredores assim que terminasse de contar até cem.

E foi o que fez. Num grito de “Lá vou eu!”, ela disparou-se a correr, sem sequer duvidar de meu esconderijo tão perto e ao mesmo tempo tão distante de seus olhos e de seu toque. Afinal, para ela ganhar o jogo, não bastava ela me detectar; ela também deveria me tocar. Entretanto, eu duvidava de que ela fosse capaz de subir a árvore, duvidava até mesmo se ela iria querer subi-la.

Ela demorou alguns minutos breves até encontrar o primeiro garoto, Adovaal, um rapaz de pele bronzeada, o que tornava sua ascendência parna visível, além do nome. Adovaal e Sinesci passaram a procurar pelos outros, ainda sem suspeitar do meu esconderijo. Voltaram a correr de onde haviam saído e, minutos mais tarde, trouxeram Alco, que praguejava contra sua própria incompetência em esconder-se devidamente. Soltei uma risadinha silenciosa diante daquilo, sabendo que eu estava muito mais protegido diante dele.

Os três rodaram um pouco mais e, a partir daquele momento, comecei a ficar preocupado, já que eles estavam rodando muito próximos à minha árvore. Felizmente essa preocupação passou logo, já que os três estavam certos de que não havia ninguém naquelas redondezas e voltaram para o mesmo lugar de antes.

Demorou até que trouxessem o último, Tavos, um rapaz verdadeiramente háltro de cabelos e olhos escuros, bastante pálido e magro. Alguns até acreditavam que ele estava doente por causa da sua magreza, mas o fato é que ele era um rapaz bem ágil, longe de ser o garoto débil que todos imaginavam. Provavelmente fora sua agilidade que lhe garantira um esconderijo estável, já que tinha sido o penúltimo a ser encontrado.

Agora só restava eu. Todos começaram a procurar ao redor do local em que nos encontrávamos, ainda sem suspeitar da minha localização. Após cinco minutos de busca incessante, Sinesci parou e queixou-se:

— Procurei em todos os lugares na Colina do Imperador e nas redondezas, mas Martos não está lá. — Ela bufou, cansada de tanto correr.

— E se Martos conseguiu entrar no palácio de algum jeito? — Adovaal sugeriu.

— Acho difícil. O máximo que ele pode ter feito é ter subido aquela árvore — Tavos apontou para a árvore onde eu estava escondido, e meu coração deu um salto. Além de ser habilidoso com o corpo, também o era com a mente.

— Vamos procurar lá! — Sinesci animou-se.

E assim foram. Àquela altura, eu já sabia que meu esconderijo estava estragado, mas ainda havia meu plano reserva, portanto consolei-me um pouco.

Os quatro meninos olharam para cima, e Alco conseguiu me ver em meio às folhas, apontando vigorosamente um dedo em minha direção.

— Lá está ele!

Observando tudo aquilo, soube que meu plano inicial estava perdido, mas ainda assim soltei uma risadinha de escárnio, sabendo que nem Sinesci nem Alco subiriam. Sinesci, por ser uma garota, dificilmente subiria, e Alco era orgulhoso demais para se sujeitar a tal tarefa. No fundo, eu imaginava que ele era apenas um covarde medroso. Todavia, eu não havia me preparado para o que aconteceria a seguir.

— Eu subo — Tavos se ofereceu e, antes que alguém protestasse ou dissesse algo mais, ele pôs-se a subir a árvore, deixando os outros três e a mim boquiabertos.

Assim como eu, Tavos começou bem a subida, movendo-se agilmente entre os sulcos e os galhos. Porém, caiu no mesmo erro que eu caíra: olhou para baixo quando estava na metade do caminho. Diferente de mim, o pânico que assolou seu rosto era visível. Nunca havia pensado em Tavos como um garoto medroso ou covarde e nunca pensaria. Mesmo depois daquele episódio, pude perceber o quão corajoso era, a ponto de colocar seus medos à prova para ajudar alguém. Isso me fez sentir terrivelmente culpado pelo que ocorreu logo em seguida: Tavos caiu.

A minha risada de escárnio tornou-se um semblante de verdadeira preocupação. Era bem verdade que eu queria pregar uma peça nos quatro, mas não queria machucá-los. No máximo uns arranhões em Alco ou Sinesci, que era uma garota terrivelmente irritante em certos momentos, mas jamais desejara mal a Tavos ou a Adovaal, e jamais desejara um ferimento grave como aquele aos quatro.

Tavos, por sorte, teve a grama para amortecer a sua queda, e um dos guardas do imperador, fazendo a patrulha naquele exato instante, viu o que ocorrera e fora nos ajudar. Encolhi-me na árvore, tentando fazer com que o guarda não me notasse, mas foi em vão. Não queria ter sido visto, porque sabia que a culpa recairia sobre mim se o fosse. Notei a voz do guarda carregada de desgosto quando ele me pediu para descer da árvore. Ele mandou todos nós quatro de volta para casa, fazendo breves perguntas sobre o garoto que se ferira antes, que agora era carregado inconsciente pelo guarda. Perguntou-nos seu nome, o nome de seus pais e o que faziam. Alco, Aldovaal e Sinesci responderam prontamente, enquanto eu me calei em meio à minha vergonha e remorso.

Tavos ficou inconsciente por alguns dias. Quis visitá-lo para pedir-lhe desculpas, mas Aldovaal me aconselhou a não fazê-lo. Nos dias seguintes, ouvi os sussurros de alguns vendedores no mercado direcionados a mim:

— Dizem que esse é o garoto que feriu o filho de Rìveo. Eu disse à minha filha para não brincar com esse rapaz. Ele tem os demônios vídicos presos ao corpo! — disse uma mulher vendedora de carnes, espantada com a minha maldade. E foi com aquele comentário que descobri algo que me intrigara. Nunca havia ouvido falar de demônios vídicos. Na verdade, nunca conhecera muito bem os vídicos. Sabia que era um povo de pele escura e sem cabelos, e apenas isso. Os háltros e davrílicos nunca gostaram dos vídicos, portanto não trocavam muitas informações sobre eles, a não ser que fossem informações repletas de ódio e zombaria.

Obviamente, as histórias circularam, e minha família soube do acontecido. Meus pais castigaram-me com tanta dureza que a marca do tapa que meu pai me deu pareceu arder durante dias, e eu tive certeza de que ela ficou vermelha pela mesma quantidade de tempo. Meu pai também me proibiu de brincar com meus colegas por um mês, colocando-me para auxiliá-lo na venda. Não que eu fosse um grande chamariz de clientes, mas ele quis, daquele dia em diante, que eu tivesse mais responsabilidade, e por isso colocou-me para trabalhar. Meus irmãos também me castigaram fisicamente e zombaram de mim até o dia em que finalmente saí de casa para nunca mais voltar.

Durante os dias que se seguiram ao meu castigo, ouvi mais pessoas falando sobre o fato de eu compactuar com a feitiçaria vídica e com os demônios daquele povo. Aquilo mais uma vez me intrigou, mas eu não sabia a quem recorrer para perguntar sobre os vídicos, quanto mais demônios vídicos. Certo dia, porém, Adovaal e eu caminhávamos sozinhos pelas Ruas do Gambá após um dia de trabalho. As Ruas do Gambá eram um lugar sujo e malcheiroso, diferente de toda a opulência famosa à região da Eldônia.

As ruas daquele bairro eram sujas, e os casebres que a rodeavam eram feitos de madeira ruim, quase apodrecida, e as moradias eram minúsculas, muitas sem sequer uma latrina para seus moradores. Por isso o bairro tinha um eterno cheiro de mijo e bosta, além dos excrementos dos gatos e cachorros de rua que andavam por ali. Já o cheiro de carniça vinha das carcaças desses mesmos animais que morriam e ficavam ali servindo de jantar para os urubus. Até onde eu sabia, nenhum de nós do nosso grupo de colegas morava ali. Eu, Adovaal, Sinesci e Tavos morávamos nas Ruas do Mercador, um bairro pobre, mas não miserável quanto às Ruas do Gambá. Apenas Alco morava nas Ruas do Cavalo, ligeiramente mais rico que o nosso. Alco apenas brincava conosco porque seu pai também era comerciante no mercado, e ele constantemente o acompanhava.

Adovaal e eu escolhemos as Ruas do Gambá para conversarmos porque lá ninguém nos daria ouvidos, e nossos pais, especialmente o meu, não nos encontrariam. O povo que morava lá ou estava mendigando ou estava torrando o pouco que recebia em bebida e prostitutas. Ninguém andava pelas ruas, porque estavam ocupados demais lotando os bordéis e as tavernas asquerosas daquele lugar. Dizia-se que as putas daquele bairro tinham doenças nas genitais, e que os copos das tavernas eram limpos com cuspe dos taverneiros. Eu nunca tive estômago suficiente para saber se essas alegações eram verdadeiras, além de muitas outras que me faziam ter náuseas só de ouvir.

Enquanto andávamos, Adovaal perguntou-me:

— É verdade que você tem um demônio vídico encarnado?

— Eu nem sei o que é um demônio vídico — eu respondi, enraivecido.

— Imaginei. Os mercadores inventam cada coisa...

— O que você sabe sobre os demônios vídicos? — subitamente perguntei. Adovaal era um parno, e os parnos eram um povo com muitas raízes na Vídia. Inconscientemente, pensei que ele soubesse de algo e perguntei.

— Sei um pouco. Nós, parnos, não adoramos os deuses vídicos, mas sim a Palavra. — Já tinha ouvido algo sobre aquilo, mas pouco sabia sobre o que se tratava. Provavelmente fora o próprio Adovaal que falara, mas eu não prestara atenção da primeira vez. — Mas há muitos parnos que, por viverem na Vídia e se relacionarem com o povo de lá, acaba adorando tanto os deuses vídicos quanto a Palavra, ou até mesmo apenas os deuses vídicos.

— E como eles são? — eu disparei, quase desesperado.

— São como os deuses anveres. Há um deus para isso, um deus para aquilo, um deus para mais isso, coisas assim.

Meu rosto animado tornou-se uma careta de decepção. Eu esperava algo mais grandioso vindo de um povo sobre o qual mal ouvíamos falar.

— Mas isso é tudo o que eu sei — Adovaal tentou se desculpar, ao ver a desilusão no meu rosto. — Provavelmente meus pais sabem mais sobre isso. Posso perguntar-lhes, se quiser.

Eu queria, mas sabia que isso traria problemas a mim, a Adovaal e aos seus pais. Para os háltros, ser parno era melhor que ser vídico, mas também não eram tão bem vistos quanto os davrílicos e háltros. Qualquer outra etnia além dessas era completamente desprezada. No entanto, apesar de tentar manter prudência em relação ao assunto, meu interesse pelos vídicos era maior, e acabei assentindo com Adovaal.

Uma semana depois, Adovaal apareceu no mercado para conversar comigo. Meu pai deu-lhe um olhar reprovador, mas ele apenas disse-me:

— Martos, após o trabalho, preciso conversar com você. — E foi embora, seguido pelo olhar carrasco de meu pai, sem que eu tivesse tempo de lhe responder algo.

Depois de terminar de gritar aos quatro ventos os preços da loja e de ter que aturar os olhares de nojo dos transeuntes, fui ter com Adovaal nas Ruas do Gambá. Naquele dia, as ruas realmente faziam jus ao nome. O cheiro daquele lugar, uma mistura de carne podre, fezes e urina, estava ainda mais acentuado naquele dia. Tive de controlar a vontade de tampar o nariz quando começamos a descer as ruas do nosso bairro em direção às Ruas do Gambá.

As Ruas do Mercante, apesar de pobres, eram como se fossem a mais pura riqueza perto da pobreza extrema das Ruas do Gambá. Nossas ruas eram sujas, mas não fediam tanto. Era um cheiro tolerável de pé de porco ou outra carne de segunda sendo preparado, mas nada estragado ou contaminado por vermes. Nossas casas também eram um luxo perto daquelas das Ruas do Gambá. As nossas não eram feitas de madeira podre ou reutilizada, na melhor das hipóteses, mas sim de madeira comum. Não era a madeira de lei das Ruas do Cavalo nem a pedra dos bairros superiores, mas era decente e nos garantia a sobrevivência.

— Martos, eu perguntei à minha família — começou Adovaal, enquanto percorríamos as Ruas do Gambá.

— O que disseram?

— Primeiro me perguntaram se isso tinha algo a ver com... com você — ele parecia envergonhado ao dizer aquilo, e eu compreendia o motivo. — Eu acabei tendo que dizer que sim. O boato se espalhou muito entre os comerciantes e os compradores que vão ao mercado. Mas eles disseram que tudo isso não passam de fofocas mentirosas. Eles me disseram que os demônios e os deuses vídicos não possuiriam alguém de tal maneira, muito menos uma criança. Disseram-me que os demônios adentram o corpo de alguém falando a língua dos deuses e os controlam para fazer maldades impensáveis, como dizimar todo um vilarejo ou estuprar as mulheres da própria família.

— Achei que os deuses falavam vídico. — Eu fiquei surpreso com aquela afirmação. Nunca tinha ouvido falar de uma língua divina antes.

— Os vídicos falam vídico. Os deuses falam uma língua própria, incompreensível aos nossos ouvidos.

— Seus pais falam vídico?

— Um pouco. Perguntei um pouco sobre como era, e eles me disseram que não era uma língua a ser falada. É poderosa. Você provavelmente já ouviu falar do parno.

— Sim. Dizem que os parnos falam feitiçarias com sua língua. — No mesmo instante que eu disse isso, arrependi-me. Esqueci-me de que eu falava com um descendente de parnos e de que aquilo poderia ser potencialmente ofensivo a ele, portanto tentei remediar: — Foi o que eu ouvi dizer, é claro, não acredito nisso. — E realmente não acreditava. As pessoas inventavam mentiras em relação aos parnos e aos vídicos porque os temiam, e uma maneira de temê-los menos era desmoralizá-los.

— Isso não é verdade. Mas a língua dos parnos é realmente poderosa. Eu não sei por quê, mas apenas sei que é uma língua com características muito diferentes da nossa. Meus pais não falam parno, porque o parno já foi extinto. Só o vídico. Por que o interesse nisso?

— Queria entender por que falam que estou endiabrado.

— Ora, porque te culpam do acidente com Tavos.

— Ele está bem? — eu disse com súbita preocupação.

— Está se recuperando. Provavelmente vai voltar a sair de casa em breve.

— Não quis que aquilo tivesse acontecido com ele.

— Sei que não. Mas os adultos parecem querer sempre encontrar alguém para jogar a culpa de suas desgraças. — Surpreendi-me com aquelas palavras vindas de um jovem de oito anos. Até hoje creio nelas. Às vezes as crianças têm a capacidade de ser mais sábias que os mais velhos adultos. Adovaal era uma daquelas crianças e, a partir daquele dia, respeitei-o ainda mais.

Passado o mês de meu castigo, voltei a brincar livremente, sem precisar ajudar meu pai nas vendas. Meu pai achou até melhor que eu voltasse, já que ele se queixava constantemente de que minha má reputação o fazia perder clientes. Voltei a reunir Alco, Adovaal e Sinesci no mercado. Mas não esperei por Tavos. Ele nunca retornou.


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