Amem escrita por Liz Setório


Capítulo 25
Heresias


Notas iniciais do capítulo

Acho que nesse capítulo eu acabei moderando um pouco nas emoções. Decidi guardar a carga emocional maior para o próximo.

Boa leitura!



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Obviamente eu não tinha a menor vontade de ver aquele homem, entretanto não poderia provocar um tumulto, até porque não poderia revelar nem a minha homossexualidade, nem o fato do bispo Meirelles ter estuprado o Flávio — o padre havia me pedido segredo sobre isso — . Ademais, se alguém fosse ser punido por alguma coisa seria eu e não o bispo, pois a Igreja, jamais deixaria que algo assim vazasse, seria um escândalo imenso.

Dom Meirelles, entrou no quarto, sentou em minha cama e em tom debochado, disse:

—  Saudades dos tempos em que os padres pediam a benção ao bispo.

Pedir benção àquele pedófilo? Jamais! Olhar para ele me deixava completamente enojado. A minha vontade era de encher a cara dele de socos.

— Perdão, mas não entendo o motivo da sua visita — declarei, tentando manter a compostura — Na verdade eu nem sabia que poderia receber visitas, ainda mais em meu quarto — completei.

Meirelles ignorou a minha segunda colocação e respondeu de forma sucinta à primeira.

— Miguel. Onde está Miguel?

— Por que o procura? — questionei, fingindo ingenuidade.

— Talvez só por abandono de paróquia, meu querido Paulinho — respondeu de forma irônica.

Ele ter me chamado de Paulinho foi algo extremamente incômodo, pois só os meus familiares me chamavam assim.

— Eu não sei onde ele está — menti.

A minha mentira poderia até ser verdade. Afinal, eu não sabia se Miguel ainda estava onde eu havia o deixado.

— Não se envergonha de mentir para o bispo? — perguntou em tom autoritário.

— O que o senhor quer de mim? — indaguei visivelmente incomodado.

Enquanto Meirelles permanecia extremamente calmo, sentado na minha cama, eu estava completamente agoniado. Andava de um lado para outro do quarto, pedindo, em meus pensamentos, para que ele fosse embora o quanto antes. A presença daquele homem era extremamente desconcertante para mim.
     — A verdade — respondeu com simplicidade — Confesse, vocês são sodomitas e fugiram para pecarem juntos — continuou aos gritos.

 — Eu não sei onde o padre Miguel está. Só sei de mim, eu estou aqui e pensei que nesse lugar não me julgariam — bradei irritado.

Apesar de estar extremamente nervoso eu tentava me manter firme, todavia não sabia quanto tempo aguentaria. A minha vontade era fugir, já não aguentava mais responder às invasivas perguntas do bispo.

— Ninguém aqui está te julgando. Eu só quero saber onde está o padre Miguel.

— E por que o senhor tem tanto interesse nele? — perguntei visivelmente nervoso.

— O senhor ainda me pergunta? Para providenciar que ele seja excomungado, ora — respondeu com uma simplicidade absurda.

— Excomungado?! — repeti, completamente assustado.

Nesse momento parei de andar. Falar em excomunhão era algo que me atemorizava bastante. Eu sabia que Miguel há tempos já não ligava mais para o sacerdócio e falava de querer largar a Igreja, porém eu não acreditava que ele desejasse ser excomungado, pois além disso ser algo totalmente humilhante, Miguel parecia, ainda que de um jeito torto, se importar com a religião. Afinal, quando estávamos na casa de minha mãe, ele conversou de maneira empolgada com ela sobre o catolicismo.

— Sim, é o que ele merece. Mas me diga uma coisa, o senhor está aqui, então isso significa que ainda tem interesse no sacerdócio e na Igreja. O senhor nunca pensou em crescer no clero? Nunca pensou em ser um bispo, por exemplo?

— Aonde o senhor que chegar, dom Meirelles? — indaguei, sentando ao lado dele na cama.

— Simples, eu tenho sessenta anos, daqui a quinze tenho que me aposentar e posso perfeitamente te indicar para ser bispo… E enquanto não chega a hora de eu me afastar do cargo, você poderia tornar-se um vigário geral¹.... Basta me dizer onde está o outro sodomita.

Que proposta descabida era aquela? A cabeça do meu Miguel por um cargo na Igreja? Jamais! Eu o amava muito para entregá-lo ao bispo. Além disso, nunca aceitaria trabalhar ao lado de um sujeito tão vil quanto o Meirelles.

— Quantos anos o senhor tem? 26? 27? Daqui a três ou quatro anos terá a idade mínima para ser vigário geral. O senhor não tem nada a perder com a minha proposta.

— Eu tenho 28 e…

Antes que pudesse continuar, fui interrompido.

— Melhor ainda.O senhor fica os dois anos do tempo mínimo aqui e depois torna-se  meu vigário geral.

— Por que o senhor implicou tanto com o meu... Com o Miguel?

— O seu Miguel como o senhor ia dizendo, pecou, pecou gravemente.

— Ele não é o único pecador… Eu também pequei — disse, levantando extremamente irritado.

— Mas se arrependeu. O senhor não estaria aqui se não estivesse arrependido e além do mais, por estar aqui, está protegido da excomunhão.

Ele tinha razão sobre eu estar protegido da excomunhão, já que pelas regras do mosteiro, eu não poderia ser excomungado enquanto estivesse ali — exceto se cometesse grave pecado durante a minha estada no mosteiro e/ou abandonasse a instituição sem autorização do abade — . Todavia, o bispo estava redondamente enganado sobre o meu arrependimento, na verdade, talvez em algum momento anterior àquele, eu até tenha me arrependido, mas depois daquele tempo ali, já não me arrependia mais.

Eu já havia percebido a minha falta de vocação para o sacerdócio, porém, os valores religiosos aprendidos por mim durante toda a minha vida ainda pesavam. Questionava-me, cada vez de maneira mais frequente, sobre os ensinamentos bíblicos. A homossexualidade era mesmo um pecado? Uma tentação demoníaca? Ou algo natural demonizado ao decorrer dos tempos? Não sabia a resposta para aquelas perguntas, mas sabia que amava Miguel, e, a cada dia, passava a ver as coisas cada vez mais, do ponto de vista dele. Eu começa a levar em conta também, o dito por Ângelo sobre Deus ser um Deus de amor. Dessa forma, seria completamente incoerente a divindade me castigar por amar alguém.

Sentia-me idiota por não ter considerado essas coisas antes, porém a verdade era que antes, eu vivia num estado de confusão, de indecisão imenso. Não conseguia entender a minha falta de vocação e também não aceitava o grande amor que sentia por Miguel.

— E quem garante que o Miguel também não se arrependeu? Ele pode agora mesmo estar pedindo perdão a Deus e tudo mais…

— Duvido — respondeu com desdém.

— O senhor não tem como afirmar nada — argumentei irritado.

— Padre Paulo, eu não tenho mais nada a dizer. Apenas pense na minha proposta, qualquer coisa é só pedir para o abade telefonar para mim — disse, deixando o quarto.

Quando fiquei sozinho, chorei. Não sei bem o porquê daquelas lágrimas terem escorrido pela minha face, provavelmente foi um misto de raiva pelo que o bispo Meirelles havia feito com o Flávio e também pela forma julgadora como ele falava comigo. Ele se achava superior a mim e a Miguel. Meirelles falava como se fosse um homem desprovido de pecado, um homem santo. Aquilo me deixava com muita raiva. Sentia-me impotente, pois sabia que não havia jeito de compensar o Flávio pelo mal causado. Também, havia em mim o temor do Miguel ser encontrado por Meirelles, eu não queria que o meu amor fosse humilhado por aquele homem sujo e metido a superior.

[...]

Felizmente o bispo não voltou a me incomodar. O tempo ia passando, já havia seis meses que eu estava no mosteiro. Os dias ali não foram fáceis. Eu vivia triste, chorando pelos cantos, porém sempre sendo apoiado pelo padre Rafael. Ele se tornou meu grande amigo e escondido dos outros, trancados em meu quarto, tínhamos longas conversas, às vezes durante essas conversas Rafael conseguia me arrancar alguns risos.

Naquele dia conversávamos de forma animada, porém, do nada um silêncio incômodo se instalou entre nós. Estávamos os dois sentados em minha cama, todavia de forma repentina o assunto acabou. Rafael ficou me encarando, isso me deixou sem jeito. Ele era muito bonito, bonito de um jeito que me deixava um pouco nervoso quando estávamos a sós.

Acabei desviando o olhar, mas Rafael chamou a minha atenção, indagando:

— Você está com vergonha, Paulo?

Fiz sinal negativo com a cabeça, mas era mentira, eu estava sim com vergonha, só não sabia muito bem o porquê. Rafael e eu já éramos amigos há algum tempo, não havia motivo para vergonha.

— Está sim, não minta. Você fica tão bonito com vergonha... Já te disseram isso?

Não respondi, apenas olhei no fundo dos seus olhos, eu parecia estar hipnotizado por aqueles sedutores olhos castanho-claros. Rafael então começou a acariciar a minha face com delicadeza, aproximando seu rosto pouco a pouco do meu. Mantive-me imóvel, talvez por surpresa. Nunca pensei que ele faria aquilo. Nunca imaginei que ele me roubaria um beijo, um beijo de curta duração, pois logo foi findado por mim.

— O senhor ficou louco? — questionei.

— Desculpe, mas… Mas pensei que fosse recíproco — argumentou, visivelmente envergonhado.

— Por favor, saia daqui — pedi.

Ele atendeu o meu pedido e quando fiquei sozinho, a confusão tomou conta de mim. Rafael era um homem bonito e aquele beijo acabou mexendo muito comigo. Eu havia gostado de ter sido beijado por ele, talvez, em meu inconsciente, desejasse aquele beijo desde a primeira vez que vi Rafael.

Apesar de eu ter gostado do beijo, aquilo foi estranho. Nunca pensei em beijar alguém que não fosse Miguel.

Beijar Rafael me trouxe um sentimento de culpa. Pensei em Miguel, lembrei dos seus beijos e das suas juras de amor. Toquei em meus lábios, fechei os olhos e imaginei como seria se Miguel estivesse ali comigo, com certeza, iríamos muito além dos beijos...  Ah, como eu desejava estar com o meu amor novamente. Eu sentia saudades dele no nível mais sublime — sua companhia, seu olhar — e também, no mais profano — seu corpo quente contra o meu, seus beijos ardentes…

Mais tarde, assim que terminamos as orações coletivas, Rafael, antes de eu voltar para o meu quarto, veio falar comigo e aos sussurros se desculpou mais uma vez.

— Eu novamente gostaria de pedir desculpas, padre Paulo. Fui extremamente imprudente — disse de forma respeitosa.

— Fique tranquilo, Miguel.

Ele me olhou sem dizer nada e eu então me dei conta do meu equívoco.

— Rafael — corrigi um pouco embaraçado.

Estaria eu confundindo as coisas e vendo a imagem do meu Miguel no Rafael?

[...]

A minha amizade com Rafael ficou um pouco estremecida. Ele passou a me evitar um pouco e as suas visitas ao meu quarto cessaram. Um dia resolvi, visitá-lo em seu quarto.

— O que houve? — indaguei.

— Nada. Eu estou bem.

— Não, não está. Você está se afastando de mim. Não vai mais ao meu quarto...

— Paulo, eu estou envergonhado pelo que fiz, acho que abusei da sua amizade.

— Sim… Mas… Mas isso não significa que devemos deixar de ser amigos. Você cuidou de mim até que eu me adaptasse um pouco melhor… Você foi um grande amigo, Rafael e eu sou grato por isso. Quero muito continuar sendo seu amigo.

Dei um abraço nele, um abraço forte e apertado, quando esse longo abraço terminou, voltamos a conversar e conversamos como se a nossa amizade nunca tivesse esfriado foi uma conversa extremamente animada, mas um assunto inesperado surgiu.

— Daqui a pouco quando completar dois anos você vai embora, né? — questionou Rafael.

— Sim, eu deixei alguém lá fora… — revelei — Há quanto tempo você está aqui? — indaguei.

— Deve ter uns dez anos.

— Desculpe, mas por que está há tanto tempo aqui? Você já teve vontade de sair?

— Acho que como todos eu já tive vontade de ir embora. Mas pra onde?  Não tenho para onde ir… O meu delito foi grave… — Fez uma pausa dramática e em seguida continuou — Eu fiz um ménage com um seminarista e um padre, mas o maldito padre nos entregou, na verdade, ele sequer era padre, não passava de um maldito fetichista que gostava de usar batina. Na época a notícia vazou na minha cidade, era uma cidade pequena e…

Rafael não conseguiu falar, ele simplesmente caiu em lágrimas e eu decidi confortar o meu amigo. Dei um longo e apertado abraço nele.

A revelação feita por ele me fez pensar o quão peculiar pode ser a vida sexual de um padre, em alguns casos, talvez raros casos, ela pode ser inexistente, mas em outros, como foi o do Rafael, bem agitada.

— Minha vó… Minha vó não suportou, Paulo… — disse ainda chorando, enquanto se soltava do meu abraço — Quando ela soube, teve um infarto e morreu… Aquele tempo foi tão complicado, eu quase fui excomungado. E bem, quando ela soube, falaram que eu ia ser excomungado. Ela era tão religiosa... Não poderia imaginar o seu maior orgulho, virando a sua maior vergonha…

Um momento de silêncio instaurou-se entre nós, porém logo Rafael voltou a falar.

— Felizmente eu não fui excomungado, me deram a sugestão de eu vim pra cá com a condição de que o meu tempo mínimo aqui seria de seis anos. Já o seminarista foi expulso do seminário. O falso padre… Ah, aquele nem excomungado pode ser, pois nem católico era...

— Meu Deus… Sinto muito pela sua vó e por tudo que te aconteceu.

— Obrigado…

— Ficar aqui não é pior para você? Você já cumpriu o seu tempo mínimo...

— Não, eu não estou aqui pela Igreja, mas pela memória da minha vózinha, estou aqui pagando pelo desgosto horrível que dei a ela. Eu me arrependo tanto de ter feito algo assim, isso foi completamente impensado. O seminarista e eu tínhamos um caso, nos gostávamos bastante, mas tivemos a brilhante ideia de apimentar a relação e foi quando aquele maldito apareceu...

Naquele momento pensei na minha mãe. Qual seria a reação dela se descobrisse sobre mim e o Miguel? Talvez ela não infartasse, mas provavelmente não iria querer mais olhar na minha cara.

Também pensei no quão sofrido tudo aquilo era para Rafael. Deveria ser tão doloroso acabar sendo, mesmo que de forma não proposital, responsável pela morte de alguém que amava.

Ele também quis saber o porquê de eu estar ali e eu lhe contei toda a minha história com Miguel.

— Isso parece coisa de novela. Meu Deus, a relação de vocês era muito linda, apesar dos pesares. Você vai atrás dele não é?

— Sim, espero que ele esteja me esperando.

[...]

O tempo passou depressa e quando eu vi já era o dia de sair do mosteiro. Eu tinha quinze dias para decidir se voltaria ou não.

Rafael me apoiou na decisão de não voltar e ficar com o meu Miguel. Ele também foi muito importante na minha desconstrução de Deus como um Deus punidor. Ele tinha uma visão de mundo muito aberta, falava sobre diversos assuntos tabus com uma naturalidade espantosa, se o abade ouvisse a nossa conversa, provavelmente ficaria escandalizado e seríamos chamados de hereges.

Rafael defendia coisas polêmicas como, por exemplo, a legalização da maconha e via como aceitável a ideia de que padres pudessem se casar, ao menos com mulheres, pois ele sabia que seria praticamente impossível a Igreja ver com bons olhos uma relação homossexual.

[...]

A viagem de volta pareceu imensamente mais longa do que a de ida. A todo momento eu me questionava se Miguel estaria lá esperando por mim, às vezes eu até cogitava a ideia dele ter arranjado outro e de estar sendo feliz com esse outro.

Quando finalmente cheguei ao meu destino, demorei um pouco para me encorajar e tocar a campainha da casa onde morei com Miguel.


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Notas finais do capítulo

Vigário geral¹: "Cân. 479 – § 1. Em virtude de seu oficio, compete ao Vigário geral, na diocese toda, o poder executivo que, por direito, pertence ao Bispo diocesano, para praticar todos os atos administrativos, exceto aqueles que o Bispo tenha reservado a si, ou que, pelo direito, requeiram mandato especial do Bispo."

Referência: http://diocesedeformosa.com.br/curia/vigario-geral/

E aí? Será que o Miguel esperou ou não o Paulo? ~musiquinha de suspense~



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