Amem escrita por Liz Setório


Capítulo 22
Pecado Exposto


Notas iniciais do capítulo

Aqui está mais um capítulo da história. Peço que preparem o coração, pois como quase sempre, tem muita emoção. Então não me responsabilizo por prováveis infartos...

Boa leitura!



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— Claro, você pode me contar qualquer coisa, meu amor.

— Eu quase matei meu pai… Isso aconteceu quando eu era criança — disse inseguro.

Apesar de Miguel me amar. Eu tinha medo dele me julgar por isso.

O meu amado ficou em silêncio, estava esperando eu continuar a história.

— Eu vi ele batendo na minha mãe. Vi o pânico e o medo no olhar dela. Miguel… Miguel — A minha fala foi interrompida por lágrimas, falar sobre aquilo não era nada simples.

Tentei,de forma inútil conter o meu choro.

— Paulo, não precisa se conter. Você pode chorar. Eu não vou te julgar nem pelas suas lágrimas nem pelo que você quer me contar — declarou com sua voz doce e firme.

Depois de um tempo chorando consegui enfim continuar. Contei tudo numa minúcia de detalhes assustadora, era como se eu estivesse revivendo aquele momento obscuro da minha triste vida.

 

No dia seguinte após a surra que meu pai havia dado em minha mãe, a nossa vida continuou como se nada tivesse acontecido. A única coisa estranha foi  meu pai ir me buscar na escola. Ele raramente fazia aquilo.

Cadê minha mãe? — indaguei desconfiado.

Não faz pergunta e vem logo  bradou.

Obedeci a ordem, mas com raiva. Ainda era muito viva em minha memória a cena do dia anterior. Eu ainda conseguia ouvir os gritos de minha mãe.

Quando chegamos em casa, senti um pouco de medo. Notei que estava só com meu pai.

Cadê todo mundo?

 Ângelo passou mal, sua mãe levou ele na emergência e a Mafê tá na casa de sua tia, brincando com a Aninha.

Posso ir pra lá?

Você é viado, porra? Pra quê quer brincar com menina? Vai botar um café pra mim, vai  vociferou em tom raivoso.

Nesse momento resolvi que queria meu pai morto. Abri a garrafa térmica, em seguida despejei o café, o açúcar, mas não lembrava onde estava o ingrediente mágico.

Papai gritava, mandava eu ir logo.

É só botar essa merda na garrafa, Paulo. Adiante.

Quando finalmente achei o veneno de rato, não consegui colocar muito, devo ter colocado um pedaço ou dois. Feito isso levei o café para ele. Vi meu pai tomar aquela bebida de uma maneira fria, uma maneira que uma criança não deveria ter.

Meu pai não passou mal na hora, o mal estar só veio depois de algum tempo e quando eu o vi passando mal, senti um terrível remorso. Eu já não queria mais matá-lo. Saí gritando desesperado, pedindo ajuda, dizendo que papai iria morrer. Felizmente um vizinho me acudiu e levou meu pai pro hospital. Lá ele foi atendido e o médico me fez algumas perguntas, quis saber se papai tinha ingerido algo de diferente, qual a última coisa que ele havia consumido e onde. Eu com muito medo falei do café, mas omiti o veneno. Provavelmente o médico desconfiou de mim e por isso, disse a minha mãe que não havia conseguido descobrir a causa do tal mal estar.

 

— É a primeira vez que você fala sobre isso? — Quis saber Miguel, sua preocupação era visível.

— Não, na época cheguei a contar tudo pro padre da cidade, o padre Joaquim. Ele ficou chocado com o meu relato, disse nunca ter imaginado que um menino seria capaz daquilo, mas ao mesmo tempo ele me compreendeu, disse que a minha atitude era um efeito da violência do meu pai, mas frizou: violência não se combate com violência. Padre Joaquim disse que Deus me perdoaria... E desse jeito estranho a minha vida na Igreja começou. O padre disse que eu deveria me aproximar de Deus e me chamou para ser coroinha. Sabe, eu… Eu… Às vezes acho que Deus não me perdoou… Eu... Eu... Quase cometi um assassinato, Miguel!

Quando terminei de falar, algumas lágrimas rolavam pela minha face. Lembrar de tudo aquilo mexia bastante com o meu emocional.

— Você é um homem muito forte — declarou enquanto me abraçava.

— Eu?!

— Sim, você já suportou tanta coisa… Se fosse outro era bem capaz de ter findado a própria vida…

— Essa ideia já passou pela minha cabeça algumas vezes — sentenciei, soltando-me do abraço de Miguel.

— Graças a Deus você não foi em frente.

— Eu ainda sinto culpa pelo que fiz… Às vezes eu quase não aguento de culpa...Eu odeio ter feito aquilo… Eu me odeio…

— Paulo... — Fez uma pausa e pegou em minhas mãos — Você era um menino, não sabia o que estava fazendo… Não se culpe mais…. Deus já lhe perdoou, eu tenho certeza — continuou.

Não disse mais nada, apenas deixei as insistentes lágrimas rolarem pela minha face.

[...]

Dois dias se passaram e logo pela manhã veio a notícia: papai havia morrido. Minha mãe quando soube desatou a chorar. Eu não entendia aquele choro. Como ela podia sentir a dor da morte de alguém que a havia maltratado tanto? Os maus tratos físicos só cessaram quando eu e Ângelo crescemos e começamos a ameaçar meu pai, ameaças que iam desde denúncias à polícia até a resolver entre nós, resolução esse que pelo que dependesse de Ângelo seria porrada pura. Infelizmente meu pai ter parado de bater em minha mãe não significou ele passar a respeitá-la, volta e meia ele a agredia com palavras, porém apesar dos pesares ela dizia não desejar separar-se dele e quando era perguntada do porquê disso, ela dizia: o que Deus uniu, o homem não separa.

Ao saber da morte de papai eu não senti nada. Absolutamente nada. A única coisa que passou pela minha cabeça foi tentar consolar mamãe, mas ela estava inconsolável, era como se nada fosse fazer ela se acalmar.

O Miguel, me pediu para que ficasse tranquilo. Ele iria até o hospital e junto com o Ângelo resolveria o funeral.

[...]

Passamos a noite em claro, velando o corpo. Muita gente apareceu na casa de minha mãe.

Miguel havia se oferecido para dar início às exéquias e realizá-las no dia seguinte também, entretanto eu não aceitei, senti-me na obrigação de realizar aquilo, apesar de estar pouco à vontade para tal. Sabia que aquele era o desejo da minha família, principalmente de minha mãe, e por mais que não fosse o meu, eu não poderia decepcionar mamãe naquele momento.

[...]

No outro dia fomos cedo para o cemitério, assim que chegamos fomos para a capela. Então, com batina, sobrepeliz e estola roxa, aproximei-me do caixão, que estava próximo ao altar e comecei os ritos iniciais, primeiramente saudando os presentes, dizendo com uma voz um pouco falha:

—  A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco.

Os que ali estavam, responderam:

— Bendito seja Deus, que nos reuniu no amor de Cristo.

Havia um bom tempo que eu não estava mais na posição de padre, para mim foi estranho estar novamente em tal posição, me senti um usurpador, por um momento até pensei em abandonar a capela e sair correndo, talvez fosse melhor ter deixado Miguel fazer aquilo, com certeza ele não ficaria tão confuso, todavia não havia como fugir. Fugir não era uma opção para mim naquele momento. Continuei, então, proferindo as seguintes palavras:

— Estamos aqui reunidos, caros irmãos, para cumprir um dever humano e cristão: dar sepultura ao nosso irmão Alfredo. Se é verdade que a sua separação corporal vos entristece, na fé cristã tendes a consolação e a esperança de vos voltardes a reunir com ele na casa do Pai. Elevemos a nossa oração para pedir ao Senhor que, na sua misericórdia, acolha este nosso irmão e conceda aos seus familiares, e a todos os que choram a sua morte, a consolação da fé.

Feito isso, fiz as orações, a liturgia da palavra… Enfim, tudo que era de praxe para aquele momento tão doloroso. Quando me dei conta, já era hora de levar o corpo até a sepultura. Todos os presentes, inclusive eu, fizemos o caminho cantando alguns cânticos.

Ao chegarmos na sepultura a benzi, realizando uma oração e em seguida aspergi com água benta a sepultura e o caixão, feito isso, fiz uma pequena homilia, rezei o Credo junto com os que ali se encontravam.

Enquanto o corpo era colocado na sepultura disse mais algumas palavras. Findadas estas palavras, conclui as exéquias da seguinte forma:

— Dai-lhes, Senhor, o eterno descanso.

No passo que fui respondido com:

— Nos esplendores da luz perpétua.

[...]

Voltei para casa de minha mãe acompanhado de Miguel, Ângelo e mamãe, fizemos o caminho em silêncio. Ao chegarmos em nosso destino, mamãe se trancou em seu quarto, Ângelo foi tomar banho, Miguel e eu nos dirigimos para o quarto de hóspedes.

— Está tudo bem com você? — indagou Miguel.

Limitei- me a balançar a cabeça afirmativamente. Como resposta ele acariciou levemente o meu rosto.

— Foi muito corajoso e bonito da sua parte ter celebrado as exéquias. Você é um homem muito forte, Paulo. Eu acho que não conseguiria fazer isso, caso estivesse na sua situação.

Miguel dizia aquilo, mas eu tinha certeza de que ele era ainda mais forte do que eu. Eu não tinha um décimo da força e da fé que ele tinha.

— Era o mínimo que eu poderia fazer…

O silêncio tomou conta do ambiente por alguns instantes. Então, eu me aproximei um pouco mais do meu amado. Olhei bem fundo em seus olhos. Miguel tinha lindos olhos, olhos negros como a sua pele.

— E fez muito bem feito… Ninguém poderia fazer melhor!

O meu amado parecia sempre saber as palavras certas a dizer. Ah, como o amava e era grato por estar passando aquele momento junto a ele, com certeza a sua presença fez com que aquele momento tão doloroso e confuso pudesse ser um pouco mais suportável. Comecei a passar a mão suavemente pela face de Miguel. Ele não se barbeava há dois dias, os pelos que nasciam em seu rosto eram ásperos e resistentes. Talvez tão resistentes como o meu amante.

Após aquele tempo ali, sozinho com ele, não pude resistir, lhe roubei um beijo, beijo retribuído com intensa paixão, porém Miguel findou o beijo de forma abrupta.

— Você ouviu? — questionou.

— O que? — perguntei de volta.

— Pareciam passos.

Olhei para a porta e vi que a deixamos aberta.

— Meu Deus, será que a mamãe ou o Ângelo nos viram? — indaguei preocupadíssimo.

— Calma, eu posso ter ouvido coisas. Vamos ver se as portas do banheiro e do quarto de dona Jussara estão fechadas.

Fomos verificar as portas e para a nossa felicidade elas estavam fechadas, felizmente Miguel havia se enganado.

— Estou com muito sono, o cansaço deve ter me feito ouvir coisas — afirmou o meu amante.

Mais tarde, quando Ângelo estava voltando para casa, ele pediu que eu o acompanhasse, meu irmão, assim como eu, não sentia nada pela morte do nosso pai.

— Ah, Paulinho. Eu tô sei lá, sem sentir nada. Não sinto um pingo de tristeza... Eu só tô me sentindo mal por causa da mamãe. É triste ver ela sofrendo por causa daquele monstro.

— Eu sinto a mesma coisa, Anjinho…

— Anjinho… Você me chamava assim quando era criança, quando tinha medo de alguma coisa, principalmente de dormir sozinho. Você está com medo de alguma coisa, meu irmão?

Naquele momento me perguntei se o Ângelo seria uma boa pessoa para revelar o meu segredo.

— Irmão, você está aí? — indagou diante do meu silêncio.

—  Deve ser a morte do nosso pai.

— Só isso?

Lembrei da suspeita de Miguel sobre termos sido vistos. Ângelo havia nos visto? Não, isso não seria possível, afinal a porta do banheiro estava fechada.

— O que mais haveria?

— Você lembra o que eu lhe disse quando você revelou à família o seu desejo de ser padre?

Fiquei em silêncio, a resposta era muito perturbadora para ser dita em voz alta. Quando contei para a minha família a minha suposta vocação para o sacerdócio, o meu irmão mais velho, sem reservas disse que não me via padre de jeito nenhum, para ele eu acabaria me apaixonando por uma freira ou até mesmo por outro padre. Toda a família ficou escandalizada com aquilo, inclusive eu, que só mais tarde percebi o quanto Anjinho estava certo.

— Paulinho… Eu vi você e o padre Miguel… Se beijando — gaguejou.

Meu irmão revelou isso de forma tão hesitante que mais parecia que o pecado era dele, entretanto, não era, era meu e eu não sabia como lidar com aquilo.


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Notas finais do capítulo

Referências para a construção do capítulo: http://www.liturgia.pt/rituais/Exequias.pdf p.120; p.121; p.140; p.141 e p. 148



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