Two Hearts Apart escrita por Diamond


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Conforme informado nos avisos, este conto faz parte do Desafio dos Escritores do Grupo Caneta Tinteiro. Aos que não conhecem ainda, o grupo possui páginas no Facebook e Instagram, onde estão sempre abertos ao debate de obras literárias, organizando todos os meses desafios para escritores, leitores e até mesmo resenhistas.

Neste desafio, foi requisitado que criássemos uma fanfic em cima de alguma obra do Hayao Miyazaki, que contivesse uma mistura de planos temporais, uma ambiguidade e um objeto mágico. Espero que este conto tenha cumprido com as restrições e atingido a expectativa de todos.

Sem mais delongas, desejo a todos uma ótima leitura!



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Fogo. Se espalhava com rapidez, demonstrando uma força muito maior do que se poderia esperar, enquanto destruía tudo que se punha em seu caminho impiedosamente.

Ferro. O barulho das longas hastes metálicas em colisão preenchia o ambiente, de modo que nenhum outro som parecia ser audível aos desprestigiados ouvidos dos homens.

Sangue. Proveniente de veias humanas e animalescas, era responsável por macular aquelas terras sagradas sem qualquer cerimônia.

Ódio. Sentimento predominante no relacionamento entre os habitantes da Floresta dos Cedros e os aldeões de Irontown.



Seus olhos se abriram de modo levemente desesperado, visto que ela acordava de um sono conturbado, recheado com as lembranças de seu passado. Olhando para fora de sua caverna, a princesa Mononoke vislumbrou um de seus irmãos uivando insistentemente para a lua cheia. A luz branca iluminava a copa das árvores e favorecia a caça dos lobos famintos. Depois de satisfeitos, os uivos longos eram responsáveis por guiá-los de volta a sua caverna, que os guardava em segurança durante seu merecido descanso.

San sabia que não conseguiria dormir novamente, ao menos enquanto não estivesse acompanhada dos dois mais velhos. Sentando-se encostada nas paredes de pedra, ela tomou uma haste de madeira que havia no chão em suas mãos e passou a afiar-lhe as pontas com o pequenino punhal de cristal que vivia preso em seu pescoço. Confeccionar uma lança distraiu-lhe por um longo período e, de quebra, ainda serviria para pescar as refeições do dia seguinte.

Ela finalizou o trabalho pouco depois dos lobos terem cambaleado satisfeitos para o aconchego de sua caverna. Os pêlos brancos próximos a boca estavam manchados em diversos tons de vermelho vivo, denunciando o saldo positivo de sua noite de caçada. Direcionando o olhar para a parede oposta da caverna, ela contou dezoito riscos verticais, feitos com o mesmo punhal que usava agora e refletiu por um instante. “Dezoito noites desde a última vez que Ashitaka veio me visitar”, ela pensou, com certa melancolia.

Deixando a lança de lado, San engatinhou até seus irmãos, que aquela altura já dormiam silenciosamente. Afundando o rosto no dorso de um deles, a jovem foi imediatamente recepcionada pela maciez de seu pêlo. Apesar da presença dos dois mais velhos, a princesa não se sentia nenhum pouco inclinada a dormir. Dezoito noites. Quanto mais o tempo passava, menor era a frequência com a qual Ashitaka lhe visitava. Aquela constatação a incomodava profundamente e era responsável por lhe tirar o sono por muitas noites seguidas. Teria ele se cansado dela? Não parecia o tipo de atitude vinda do Ashitaka. Mas então, qual a razão por trás daquele afastamento gradativo?

Tomando a pequena peça de cristal em mãos novamente, suas sobrancelhas se juntaram instintivamente. A pedra parecia reluzir um brilho azulado, tão fraco que era insuficiente para iluminar um palmo além de seus olhos, mas ainda assim presente. Com a mente enevoada e cheia de dúvidas, ela fechou os olhos enquanto se questionava o que aquele brilho poderia significar. Antes que pudesse se dar conta, a terceira filha de Mono adormeceu novamente.



A floresta era cheia de nuances, com pontos altos e baixos. Era necessário ser um bom conhecedor da geografia local para não acabar perdido e, consequentemente, não se tornar o jantar de algum habitante faminto em meio a sua caça. Felizmente, a jovem conhecia aquelas colinas e vales melhor do que ninguém. Até mesmo o rio parecia se comunicar com a ela. Naquele momento, o curso das águas a guiava até um dos muitos lagos da floresta, onde ela poderia testar sua mais nova arma: a lança de madeira.

Abandonada a própria sorte quando ainda era muito pequena, San fora acolhida por Mono e seus filhotes quando o egoísmo (um sentimento odioso e tipicamente humano) aflorou em seus pais e falou mais alto até mesmo que a própria paternidade. Desde então, a garota viveu cercada pela natureza, agindo sempre de acordo com suas leis. Enquanto isso, ela assistia diariamente a ganância mundana destruir seu lar e o de tantas outras criaturas com o objetivo de tentar satisfazer, ainda que momentaneamente, sua ambição desmedida. O desrespeito a sua terra, família e cultura serviu para que a menina odiasse os seres humanos com todas as suas forças, fazendo o possível para distanciar-se daquela raça inescrupulosa. Esses fatores contribuíram para que ela assumisse a identidade de um lobo. Se tornara então a princesa Mononoke, herdeira do legado deixado pelo espírito-lobo da floresta.

Com o fim da guerra entre os humanos e os espíritos animais da floresta, San refletiu se deveria permanecer em seu antigo lar ou se deveria seguir o Espírito da Floresta em seu próximo destino. A interferência dos homens havia maculado a pureza da Floresta dos Cedros e, por mais que esta tenha sobrevivido à sua cobiça, já não restava nada de sagrado nela. A jovem sabia que seus irmãos estavam dispostos a acompanhá-la aonde quer que fosse. Foi preciso que a lua mudasse de fase muitas vezes até que ela se desse conta de que partir seria impossível, mesmo que tivesse optado por isso. Proteger aquele lugar fazia parte de sua história e sua essência, de tal maneira que optar por qualquer coisa que a distanciasse daquela realidade simplesmente não faria sentido. Mas esse não era o único motivo para a sua permanência. Afora isso, ela precisou admitir — ainda que somente a si mesma —, que havia se tornado dependente das visitas, dos toques e até mesmo do cheiro único de Ashitaka. Esta era a razão que justificava seu desconforto. “Que aquele humano estúpido estará fazendo?”, ela pensou enquanto franzia o cenho de modo involuntário, tamanha era sua irritação com aquela situação anormal.

— Epa, isso não é para vocês! — San exclamou tão logo percebeu que seus irmãos degustavam dos peixes que ela pescara para si. Antes que pudesse fazer qualquer coisa para reaver sua refeição, o rabo do animal que dançava graciosamente dentro da boca do espírito lobo desapareceu e não lhe restou outra alternativa senão suspirar e voltar a caça.

Resmungando consigo mesma, ela voltou para o rio com a lança em mãos, pronta para atacar qualquer peixe desavisado que resolvesse nadar entre suas pernas imóveis. Mono havia lhe ensinado a matar somente quando fosse estritamente necessário, de modo a garantir sua sobrevivência ou para assegurar a proteção da floresta. Aquele era um mandamento que a princesa levava muito a sério, fazendo-a sair para caçar apenas quando precisava, e tão somente na quantidade necessária para saciar sua fome. Certa vez, Ashitaka comentou que os humanos gostavam de caçar em grandes quantidades para estocar comida e a mera prospecção a deixou furiosa. Estocar comida! Não era preciso ser muito esperto para deduzir o impacto que uma ação como aquela teria sobre uma colônia de peixes ou de cervos. “Sempre gananciosos, pensando em nada além de suas próprias necessidades”. Essa era uma das razões pela qual havia escolhido ficar. Após a guerra, San assumiu o papel de Guardiã da Floresta, prometendo a si mesma que estaria à postos caso os habitantes de Irontown decidissem devastar aquelas terras novamente.

Ashitaka tentava dissuadi-la de tal hipótese sempre que a oportunidade surgia, o que a deixava desgostosa ao constatar seu apreço por uma raça tão miserável. Embora ele já soubesse que a menina lobo não confiava nos humanos, a princesa fazia questão de reafirmar a todo momento seu ódio por eles.

Mas você confia em mim, não é mesmo? San, eu lhe garanto que jamais verá outro aldeão de Irontown destruindo nossa preciosa floresta”, ele costumava dizer. Na primeira vez que ouviu aquela promessa, a palavra “nossa” lhe soou estranha aos ouvidos, de tal maneira que ela não pôde deixar de retrucar: “Desde quando essa floresta passou a ser 'nossa’?”. A resposta que seguiu o questionamento foi responsável por deixar seu rosto quente e sem palavras, não só naquela ocasião, mas também todas as vezes em que se recordava do diálogo. “Imaginei já ter conquistado seu coração. Afinal, ele é como a alma da floresta, o que a torna nossa. Ele pulsa por nós dois” era o conjunto de palavras que faziam seu coração bater mais rápido, sem que ela soubesse explicar o porquê.

Sentando-se na margem do rio, agora finalmente com um peixe em mãos, San passou a devorá-lo com ansiedade. Seus irmãos estavam deitados pouco atrás de si, um deles mordiscando insistentemente a pata esbranquiçada enquanto o outro roçava as costas no chão, tentando coçar algum ponto específico do dorso onde suas garras afiadas não alcançavam. Finalizando sua refeição, ela cavou um buraco raso, onde enterrou os restos de seu peixe. Mono havia lhe ensinado que a morte ajudava a terra a trazer nova vida para o mundo.

Estando inclinada para frente, seu punhal de cristal balançava de acordo com os movimentos que a princesa fazia. Enquanto realizava a tarefa, a pedra reluzia de modo semelhante a noite anterior, mas desta vez iluminando seu peito com uma luz esverdeada. A menina-lobo sentou-se e passou a observar a objeto luminoso, que lhe lembrava um pequeno vagalume. Aquele brilho tinha de significar algo, ainda que ela não conseguisse imaginar o quê. “Talvez Ashitaka saiba do que se trata, mas eu não o vejo há tanto tempo…”, pensou com certa tristeza, até se recordar de algo.

Ela era San, a princesa Mononoke, terceira filha de Mono e agora Guardiã da Floresta dos Cedros. Ela não precisava esperar por ninguém para fazer as coisas que lhe apeteciam.



O Sol se punha do mesmo modo imponente e grandioso com o qual surgia logo cedo pela manhã. Naquele momento, o céu estava manchado com diferentes tons de amarelo, vermelho e laranja, fazendo com que os aldeões de Irontown parassem por um minuto ou dois suas atividades diárias para apreciar aquele espetáculo da natureza. Esse era um hábito recente que fora implementado pelo novo senhor daquelas terras, o Lorde Ashitaka.

Desde a guerra contra os espíritos da floresta o rapaz passou a residir na vila dos mineiros, tornando-se um aprendiz da Lady Eboshi. Em função de seus ferimentos em batalha, entre eles a perda de um dos braços, a antiga senhora daquelas terras não viveu tanto quanto se esperava. Depois de seu falecimento, não restou dúvidas entre mulheres e homens de que Ashitaka era a pessoa mais apta para gerir a vila a partir daquele momento.

As primeiras semanas foram um tanto conturbadas, pois havia muito a se fazer. Todos agiam como se ele já estivesse habituado aquela realidade e desconheciam o fato de que o jovem havia sido príncipe de outro vilarejo, esse muito distinto da vila dos mineiros. Ashitaka não se intimidou com o peso de suas novas atribuições e tratava a todos com a mesma ternura que a antiga senhora. No entanto, seus ideais divergiam em certos pontos e ele estava convicto de que, com esforço e paciência, poderia modificar a cultura e o comportamento daqueles aldeões nesses aspectos. Logo tornou-se claro que as decisões do novo Lorde eram direcionadas no sentido de tornar Irontown uma cidade próspera e em sintonia com a natureza ao seu redor.

O Shishigami, espírito da vida e da morte, já não mais residia na Floresta dos Cedros, o que não queria dizer que aquele bioma merecesse menos o seu zelo e respeito. E como se já não tivesse motivos suficientes, a última coisa que Ashitaka gostaria seria aborrecer o novo Guardião da floresta.

Caminhando pelas largas ruas da cidade, o Lorde realizava sua vistoria diária. Eboshi lhe ensinara como era importante circular entre as pessoas, lhes conferindo toda a atenção e suporte. Diferentemente do que outros líderes poderiam pensar, seu cargo não lhes assegurava maior importância dentro de uma vila, mas apenas mais responsabilidades. Enquanto passava pelas vielas, o rapaz era chamado a todo momento pelos aldeões. Ao seu lado, havia sempre alguém para lhe dar uma sugestão, requerer um favor ou apenas cumprimentá-lo de forma cortês.

— Meu senhor, perdoe-me por incomodar sua vistoria — mencionou uma moça que surgiu correndo em seu campo de visão. Ashitaka recordava-se dela. Se chamava Sari e era responsável por vigiar os portões no turno da noite. Erguendo uma das mãos, ele dispensou as formalidades e aguardou o tempo que foi necessário para a jovem recuperar o fôlego. — É ela. Está rondando os portões já tem algum tempo. Receio que entre quando menos esperarmos e lhe faça algum mal, senhor.

Por um instante ele tencionou questionar a quem a moça se referia, porém a pergunta mostrou-se desnecessária logo que abriu a boca para falar. De pé sobre a larga muralha que protegia a vila, a princesa Mononoke observava com certo deleite as expressões assustadas voltadas em sua direção. Sua reação estava oculta pela antiga máscara, permitindo-a até mesmo esboçar um sorriso de canto. Era bom mesmo que a temessem, pois assim pensariam duas vezes antes de violar sua floresta e seu lar novamente. O sorriso morreu em seus lábios quando ela vislumbrou o olhar sério de Ashitaka voltado para si.

Pessoalmente, a Guardiã adoraria causar um pouco de terror e pânico naquelas pessoas. Pular para dentro da aldeia seria o suficiente para causar um alvoroço, mas ela bem sabia como Ashitaka reprovava qualquer atitude naquele sentido. Ele acreditava que, para manter a paz, era necessário que houvesse esforço de ambas as partes para sustentar um relacionamento amistoso entre as comunidades. San sentia-se obrigada a concordar com tal pensamento. Assim, diante daquela situação, ela deixou o corpo pender para trás, desaparecendo da vista dos aldeões enquanto caia em queda livre, fora dos domínios do vilarejo.

— Desapareceu novamente — Sari comentou, levemente aterrorizada com a presença da princesa Mononoke. — O que faremos agora?

— Você vai voltar para o seu posto — Ashitaka disse com firmeza, enquanto afagava rapidamente os ombros da moça no intuito de acalmá-la. — Eu mesmo irei de resolver isso.

— Mas meu senhor, e se ela tentar matá-lo?

— Talvez eu mereça uma morte como essa — ele mencionou em voz alta, ainda que seu comentário fúnebre não tenha sido ouvido por ninguém.

Àquela altura, suas pernas corriam o mais rápido possível até os estábulos onde Yakul costumava passar suas noites, sempre no aguardo do chamado de seu amigo para a próxima aventura.



— San, onde você está?

O grito ecoou alto pela Floresta dos Cedros, mas não houve resposta alguma. O céu estava escuro e o ambiente estranhamente silencioso. Os kodamas corriam alegremente em torno dos seus pés, felizes por vê-lo novamente depois de tanto tempo. Era uma pena que na ocasião Ashitaka não tivesse tempo para brincar com eles.

— Poderiam me mostrar onde a San está? Eu gostaria muito de falar com ela — ele pediu com calma, no intuito de transmitir confiança as pequenas criaturas cintilantes. Num instante, o rapaz passou a seguir os espíritos que apontavam para o alto e corriam colina acima.

Desmontando de seu amigo, Ashitaka e Yakul caminharam em busca da menina lobo, atentos a todo e qualquer som que pudesse denunciar sua localização. Eles subiram por um longo período, até o ponto onde os kodamas paravam, apontavam para cima, tremiam as cabeças por um instante e então desapareciam. Um a um eles repetiram a ação até que o pequeno grupo de espíritos sumiu por completo.

Ashitaka olhou para todas as direções, mas não havia o menor sinal de San em lugar algum. Yakul, por outro lado, parecia particularmente interessado em algum ponto situado acima deles, na copa de uma das centenárias árvores. Quando o rapaz acompanhou o olhar de seu amigo, buscando ver aquilo que ele via, já era tarde demais. Logo que ele focalizou a imagem da menina-lobo sobre um galho intermediário, sua pernas esticadas desenharam um arco perfeito até que seu pés se chocaram contra o peito do novo senhor de Irontown.

Ambos caíram no chão de modo ruidoso. Ashitaka tentava recuperar o fôlego, sentindo que os pulmões haviam parado de funcionar por um segundo ou dois. San estava sentada sobre sua barriga e o encarava com com uma expressão pouco amigável. Yakul piscou suas grandes orbes escuras um par de vezes, para em seguida girar sobre os cascos e se afastar lentamente em direção a escuridão. O animal bem sabia que de nada adiantava permanecer ali, sendo-lhe muito mais vantajoso buscar algo para comer enquanto aguardava seu companheiro apaziguar a ira da menina-lobo.

— É muito bom ver você, San — o rapaz disse, ainda sem fôlego. A frase amistosa veio no intuito de amenizar a revolta da jovem, mas logo demonstrou ter o efeito oposto.

— Não me venha com essa! — ela exclamou, aparentando estar ainda mais furiosa do que antes. — Fique calado, eu não preciso das suas mentiras!

Ashitaka juntou as sobrancelhas de imediato, sem compreender a razão para tamanha ira e por palavras tão ríspidas. O que ela queria dizer com aquilo? Não havia um único dia de sua vida que ele não tivesse sido plenamente sincero com seus sentimentos, principalmente no que dizia respeito a Guardiã da Floresta.

Tendo em mente que nenhuma palavra que dissesse seria capaz de alcançá-la agora, ele ergueu a mão, ensaiando uma carícia em sua bochecha. San costumava entender gestos e ações melhor do que palavras, na maioria das vezes. No entanto, não parecia ser o caso naquele momento. A princesa agarrou seu punho e o apertou com força entre os dedos, deixando que as unhas penetrassem superficialmente na pele do Lorde de Irontown. Ela odiava aquela denominação.

Sem outras opções, nada restou ao rapaz senão suspirar de modo derrotado, aceitando aquele tratamento como devido. Tinha consciência de que havia negligenciado a menina-lobo, descumprindo sua promessa de visitá-la sempre que podia. No entanto, também estava surpreso com aquela reação enfurecida. Nas últimas vezes que se viram, as reações da garota eram cada vez mais frias e distantes, fazendo com que ele se sentisse desnecessário e estúpido de sempre retornar à Floresta dos Cedros. O espaçamento gradativo de suas visitas era resultado de sua incapacidade em transmitir de maneira compreensível seu desagrado com o tratamento que costumava receber.

Ashitaka se sentia extremamente infantil por recorrer a uma manobra tão baixa, na esperança de conseguir um pouco de atenção. No entanto, por mais que tentasse, foi impossível evitar que o distanciamento se prolongasse além do necessário. Durante os últimos meses, a sensação de incerteza reinou de modo soberano sobre sua mente e seu coração, fazendo-o esquecer por alguns instantes de seus próprios sentimentos. Ainda assim, ele estava intimamente feliz de vê-la reagir, por mais que o fizesse de modo tão violento. Essa era a maneira que ela tinha de demonstrar que sentia algo e que também se importava.

— Você não me deixa falar e não permite que eu a toque também. O que espera que eu faça, San? — ele questionou com seriedade, encarando-a diretamente nos olhos. Estranhamente, a frase pareceu desarmar a jovem, que permaneceu calada por uns minutos, buscando ordenar as palavras certas para transmitir suas preocupações.

— Você disse que a floresta era nossa, mas suas visitas estão cada vez mais distantes umas das outras — ela murmurou, aparentando menos raiva e mais mágoa desta vez. Ashitaka arregalou levemente os olhos, admirado com a resposta sincera e direta. — Não precisa voltar aqui se não quiser, mas eu também não aceito que vá embora dessa maneira. Você me deve coisas.

As palavras soaram confusas e contraditórias, mas o rapaz optou por ignorar aquele detalhe. Internamente, estava encantado de vê-la tentando ocultar um par de lágrimas teimosas que se acumulavam no canto externo de seus olhos. Não que ele tencionasse fazê-la chorar, longe disso. Mas perceber que sua ausência provocara tamanho abalo era comovente, fazendo-o se sentir levemente inclinado a chorar também.

Àquela altura, não havia mais incerteza, pois agora ele via com clareza que o “Eu gosto de você” proferido por ela ao final da guerra, cinco anos atrás, era muito mais verdadeiro do que poderia imaginar.

— Eu lhe devo coisas? — ele questionou com a mesma calma de antes, agora incapaz de conter um pequeno sorriso. Com um pequeno impulso, ele ergueu o torso do chão, deixando seu rosto a pouco centímetros de distância da princesa. — Que tipo de coisas?

— Eu quero ele de volta. — Restava apenas um fio de sua voz, estando ainda levemente embargada, evidenciando que ainda travava sua batalha interna contra o choro. Sozinha, a frase parecia não fazer o menor sentido. Mas a mão esquerda da jovem encontrava-se repousada sobre o peito e, afora isso, havia todo um contexto que somente ele seria capaz de compreender.

Com sorte, Ashitaka refreou a tempo seu ímpeto de rir. Ela se via como um animal, mas era tão orgulhosa como qualquer ser humano comum. Era esse orgulho que a impedia de dizer, com todas as letras, que queria seu coração de volta. Aquele ao qual o rapaz conquistara anos atrás.

— Eu não pretendo devolver — o Lorde afirmou, aparentando estar muito certo de sua escolha e consciente das consequências que ela traria. — Por outro lado, também não pretendo partir.

— Mentiroso! Você é apenas covarde demais para fazer isso de uma vez e optou por partir aos poucos — ela exclamou, parecendo ter retomado a fúria de antes. Agora as duas gotas pesadas rolaram por seu rosto e rapaz desconfiava de que as lágrimas representavam a frustração da menina-lobo, que aquela altura transbordava de seu coração diretamente pelos olhos. — Você é o pior, Ashitaka.

O Lorde estava prestes a responder, quando um elemento distinto roubou-lhe a atenção. Sobre o peito da princesa Mononoke, o minúsculo e muito afiado punhal de cristal emanava um brilho avermelhado. Por um instante achou que estivesse delirando, mas ao tomá-lo entre os dedos,  constatou que a luz vinda do objeto era mais do que real. Era quase palpável.

— O seu colar, desde que quando ele faz isso? — ele questionou com curiosidade, quase esquecendo-se da conversa que estavam tendo.

— Não mude de assunto, seu estúpido! — a jovem gritou com frustração, desferindo um golpe certeiro no ombro de seu companheiro, como se tentasse acordá-lo de um delírio. A reação fez com que o brilho advindo do punhal se intensificasse, instigando ainda mais sua curiosidade.

— Ele já havia feito isso antes? — o rapaz tornou a questionar, fazendo com que San quisesse arrancar os cabelos. Não acreditava que, depois de tudo, estava sendo ignorada tão descaradamente.

— Eu reparei há dois dias, mas talvez esteja fazendo isso a mais tempo sem que eu tenha percebido — ela respondeu enquanto bufava, tentando cortar o assunto da forma mais rápida possível. — Já esteve azul, verde e agora vermelho. Não faço ideia do que isso significa e sinceramente não sei porque está tão interessado nisso!

Ashitaka segurava a pequena peça entre os dedos na altura de seus olhos, observando-o atentamente. Enquanto San disparava aquelas respostas à contragosto, ele conseguiu perceber algo bastante interessante. O brilho se intensificava pouco a pouco, aumentando os tons de vermelho na proporção em que a menina-lobo se irritava. Além disso, a luz emanada por ele não era constante como a dos astros. Ela pulsava, dando a impressão de que o objeto estava vivo.

— Um cristal reacional. — A frase soou vaga e fez com que a garota fechasse ainda mais a expressão, o que adicionou mais um tom avermelhado ao objeto. — Eu já tinha ouvido falar deles, mas jamais imaginei que este punhal fosse feito com uma lasca de um deles. É um material muito raro e são diretamente afetados pelas emoções humanas. Talvez esta seja a razão para o brilho e a mudança repentina de cor.

— Mas eu não sou humana! — ela gritou, no exato momento em que usou ambas as mãos para empurrá-lo.

Ashitaka se desequilibrou e suas costas voltaram a se chocar contra o chão. Quando tornou a abrir os olhos, pôde perceber que San não se encontrava mais sentada sobre ele. Ao invés disso, a jovem se distanciava com passos apressados dali, possivelmente magoada com a realização de que havia sido chamada de humana. Aquele era um insulto terrível, mas parecia que o rapaz havia se esquecido daquilo.

Erguendo-se com pressa, o Lorde correu para alcançá-la. Ouvir os passos dele logo atrás de si fez com que a princesa começasse a correr, mas antes que conseguisse ganhar velocidade para fugir dali, fora capturada por um par de braços pouco dispostos a libertá-la.

— Me solte, agora! — a garota gritou novamente, parecendo mais desesperada desta vez. Tentava, inutilmente, debater-se em busca da liberdade, mas suas tentativas faziam com que Ashitaka a segurasse com ainda mais força. — Eu não sou uma humana e nada do que você disse sobre esse colar faz sentido! Deixe-me ir!

— Você não deveria alimentar seu coração com um sentimento tão impuro quanto o ódio. — A tranquilidade do rapaz permaneceu inabalada, apesar dos chutes e pontapés que recebia a todo momento. Ele não a deixaria ir embora. A menina-lobo tinha razão: ele lhe devia coisas. Um genuíno pedido de desculpas, no caso.

Demorou até que ela se cansasse de lutar contra seu cárcere. Ashitaka tinha as pernas e os pés dormentes quando San finalmente desistiu de atacá-lo. A noite avançava e mesmo assim eles não tinham conseguido chegar a lugar algum. A princesa se sentia impotente, incapaz de demonstrar com clareza seus sentimentos ou mesmo transmitir seus pensamentos. E o que a fazia se sentir ainda pior era constatar que, por mais estúpido que Ashitaka fosse, ele não tinha qualquer culpa com relação à sua dificuldade de se comunicar.

Os minutos que seguiram foram silenciosos e responsável por reestabelecer o clima pacífico entre eles. Talvez não houvesse outra oportunidade como aquela durante a noite. Seus braços afrouxaram-se levemente, permitindo que a Guardiã se acomodasse melhor naquele pequeno espaço. Seus dedos percorreram a pele clara debaixo do pesado manto felpudo. A menina se permitiu pender a cabeça para trás, encostando-a no ombro de seu companheiro. A respiração quente do rapaz fora responsável por lhe acalmar os nervos e, por um instante, esquecer todos os problemas que os levaram até ali.

O toque dos lábios de Ashitaka sobre sua nuca fez com que todos os pêlos do seu corpo se eriçarem, ainda que ela não estivesse com frio. Havia um termo específico para nomear aquele ato, mas ela constantemente esquecia-se dele.

— Me perdoe pela minha ausência, San — ele sussurrou em seu ouvido, soando mais verdadeiro do que nunca em sua afirmação. — Eu duvidei dos seus sentimentos e, por um momento, isso fez com que eu duvidasse dos meus também.

— Isso é porque você é estúpido — ela pontuou com firmeza, ainda que sua voz não mais transparecesse raiva ou frustração. Havia uma palavra para descrever a sensação que a preenchia, mas novamente, a jovem não conseguiu se recordar dela. Até poucos anos atrás aquela palavra não fazia parte de seu vocabulário, assim como muitas coisas.

— Eu sei disso, e assumo a total responsabilidade sobre o assunto.

A princesa girou, agora sem o ímpeto de fugir. Ao invés disso, ela abraçou o corpo a sua frente com força, escondendo o rosto em seu peito. O rapaz riu e após alguns segundos, uma de suas mãos fisgou seu queixo, erguendo-o para que pudesse beijá-la como não fazia há semanas.

Internamente, a menina-lobo também reconhecia sua parcela de culpa. Tinha consciência do quão terrível era em dizer aquilo que queria ou sentia. A comunicação por meio das palavras era um universo novo e até então, pouco explorado por ela. Era com Ashitaka que aprendia coisas novas todos os dias. Era ao lado dele que as coisas boas aconteciam.

Por outro lado, o Lorde sabia que relacionar-se com a terceira filha de Mono era como tentar domar uma fera selvagem no auge de sua cólera. Os anos lhe ensinaram que, quando ela se encontrava no auge de agitação, manter um diálogo coerente e pacífico era simplesmente impossível. San pronunciava palavras desconexas, gritava de frustração diante de sua incapacidade de se fazer compreender, o que resultava em ataques violentos vindos em sequência. Desde o princípio Ashitaka estava ciente de suas limitações e cada uma de suas tentativas de incentivá-la a superar seus próprios limites resultou numa cicatriz distinta. A despeito disso, ela tinha melhorado muito no que dizia respeito a comunicação e comportamento. Embora a princesa relutasse em aceitar, a convivência com rapaz estava tornando-a um pouco mais… humana.

Após algum tempo, ela se colocou na ponta dos pés, tentando aprofundar o contato do qual fora privada por tanto tempo. No entanto, ao invés de acatar aquele pedido mudo, o rapaz afastou-se dela com um passo para trás. Ela não compreendeu aquela reação e as intenções de Ashitaka só se fizeram claras quando ele, agora escorado junto ao tronco de um cedro, fez um gesto com a mão, convidando-a a se aproximar.

A princesa Mononoke deu os passos necessários para selar aquela pequena e meramente figurativa distância, afinal, agora eles estavam mais conectados do que nunca. Sentando-se ao lado do rapaz, ela tomou a iniciativa de guiar seu rosto até o dela, retomando o beijo com a intensidade que a agradava.

Nenhum dos dois percebeu, mas em um determinado momento, o colar começou a irradiar um brilho róseo, claro e puro.



San abriu os olhos ao sentir os luminosos feixes de luz penetrarem a Floresta dos Cedros através da copa das árvores. Tinha consciência de ter acabado de acordar, mas ainda assim sentia-se exausta. Ela piscou diversas vezes, à princípio estranhando o local em que estava. Ao invés da usual caverna localizada ao topo de uma colina, estava num ponto muito fechado da mata. Olhando para os lados, a jovem não localizou os gigantescos lobos brancos. Em seu lugar, Ashitaka direcionava-lhe um sorriso singelo, enquanto seus lábios ensaiavam um alegre “bom dia”. A garota não respondeu. As imagens da noite anterior finalmente retornavam a sua memória e ela se sentia levemente constrangida.

— Eu gostaria de fazer uma pergunta — o rapaz afirmou enquanto direcionava uma das mãos até o cabelo castanho da princesa. Era impressionante o quanto ele havia crescido desde que se conheceram. — Se você estava sentindo a minha falta, por que não foi me ver? Você sabe que é mais do que bem vinda em minha casa.

— Eu não me misturo com humanos — a menina-lobo respondeu enquanto se virava para o outro lado, passando a deitar-se de costas para o seu companheiro.

Ashitaka riu, mas não tornou a fazer questionamentos. Não fazia sentido estragar o clima agradável que eles finalmente conseguiram estabelecer com assuntos desnecessários. Por ora, as coisas estavam bem e isso lhe bastava. Arrastando-se sobre o chão, ele a abraçou por trás e se permitiu inalar o cheiro único proveniente de seu cabelo. Ele fechou os olhos e em pouco tempo, estava dormindo novamente.

San, por outro lado, não tornou a dormir de imediato. Ainda tentava processar a situação em que se encontrava. Estavam deitados sob o mesmo cedro da noite anterior, ambos cobertos pelo manto felpudo que a pertencia. Sentia os braços dele abraçando sua cintura com força e não desgostava da sensação. Sentia uma de suas mãos repousada sobre seu desnudo seio esquerdo e, novamente, não desgostava da sensação. Sentir o calor que emanava daquele corpo era sempre muito agradável, mas ela jamais admitiria tal coisa em voz alta. Não quando poderia demonstrar o quanto gostava daquela proximidade à sua própria maneira.

Ela não era a única a conhecer coisas novas todos os dias. Enquanto aprendia a se comunicar verbalmente com mais propriedade, ele parecia descobrir a arte de se comunicar através das ações silentes. Naquele caso específico, por exemplo, era sua maneira de dizer que o coração da princesa ainda lhe pertencia, apesar dos percalços por eles enfrentados.

O sono parecia retornar aos poucos. Aconchegando-se melhor, a garota pôde sentir os contornos do corpo do rapaz encostados nela. O que a fazia recordar-se de algo: Mono havia lhe ensinado que a morte ajudava a terra a trazer nova vida para o mundo.

Deitada ali, no auge de seu cansaço, ela se imaginou por instante como terra fértil. Rindo discretamente de sua própria tolice, San prospectou como seria bom se em breve ela pudesse trazer vida nova ao mundo.


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