Iguais, porém opostos escrita por Cellis


Capítulo 6
Como descobertas e encobertas


Notas iniciais do capítulo

Olhaaaa quem conseguiu manter a rapidez e aparecer logo por aqui! Isso, eu mesma. Graças ao apoio e incentivo de vocês, como sempre.
Gente, desde agora eu quero avisar uma coisinha: esse capítulo é um pouco diferente do que vocês estão acostumados. Ele tem uma carga pesada, porém muito importante para a história, e é totalmente voltado para a Bo Ra (não, não temos a presença do Tae aqui).
Sinceramente, eu espero que gostem. Eu me esforcei bastante para fazê-lo bem.

Boa leitura!



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De repente, quando alcançou a maçaneta da porta da frente, Bo Ra hesitou. Durante um breve momento sentiu como se não pertencesse àquele lugar — na verdade, ela geralmente se sentia assim, contudo, naquele exato momento, o sentimento era mais esmagador e sufocante. Sentiu-se tão engasgada quanto Taehyung quando sofreu sua crise alérgica há poucas horas, e foi justamente esse sentimento que a fez sacudir a cabeça para afastar seus pensamentos conturbados para algum canto afastado de sua mente.

Aquele era o momento de descobertas, não de analogias sem sentido e hesitações.

Girou a maçaneta e abriu a porta. Talvez, não fosse nada demais; a família Kim tinha uma certa tendência radical de levar as coisas muito a sério. Quem sabe, fossem somente generosos ou sentissem como se estivessem fazendo algum tipo de caridade ao ajudá-la financeiramente.

Não, ela era tão tola por permitir-se pensar aquele tipo de coisa.

— Minha neta! — sua avó exclamou assim que ela colocou o primeiro pé na sala de estar. Estava sentada no sofá costurando um casaco cinza que Bo Ra nunca vira antes e parecia preocupada; mas não necessariamente só com a neta. Colocou a peça de roupa de lado e os objetos de costura sobre a mesinha de centro e levantou-se, indo até Bo Ra. Abraçou-a e, instintivamente, Bo Ra retribuiu o aperto confortável. — Taeyuna ligou para os pais e contou o que aconteceu com o Taehyung. Você estava lá?

— Sim. — ela respondeu, simplesmente. Lembrou-se, então, que sua avó se importava com Taehyung como se ele fosse seu neto também, e provavelmente estava apreensiva sem notícias sobre ele. — Mas ele foi medicado e já estava melhor quando eu deixei o hospital.

Na verdade, ela não tinha certeza sobre o que estava falando. Acabou tão envolta na discussão entre Taeyuna e o pai, que nem mesmo olhara na direção de Taehyung quando o mesmo pronunciou-se depois de acordar. Ainda assim, a expressão um pouco mais aliviada no rosto de sua avó a fez acreditar que ele deveria mesmo estar melhor.

— Bem, isso é bom. — concluiu a mais velha, com seu típico sorriso doce no rosto. De repente, voltou-se para neta com a expressão um pouco mais séria. — Mas e você querida, como está? Na verdade, eu não entendi porque você estava com os irmãos Kim, ao invés de estar na escola. A Taeyuna foi lhe buscar no horário de almoço?

Bo Ra lembrou dos seus esforços para que sua avó não descobrisse a verdade — contudo, se ela esperava que a mais velha lhe contasse algumas verdades naquele momento, ela se sentia mais do que na obrigação de fazer o mesmo. Encarou-a, com seus olhos pequenos e os longos cabelos acinzentados pelo tempo presos em um coque perfeito. Como ela era bem mais baixa do que a neta, Bo Ra precisava olhar para baixo para conseguir fitar sua pele incrivelmente lisa e  o olhar curioso.

— Eu não fui à escola hoje. — disse, e os olhos cansados da avó ficaram duas vezes mais confusos. — E nem poderei ir pelos próximos dois dias, porque estou suspensa.

— O que? — a senhora indagou, chocada. Bo Ra costumava ter um comportamento exemplar no colégio e tirava ótima notas, por isso, ela jamais esperava a notícia de uma suspensão da noite para o dia. — Isso é verdade? Como isso aconteceu?

Bo Ra estava cansada daquela história, sinceramente. Não dava a mínima para Yoon Hee e, além disso, sentia uma necessidade incontrolável de perguntar logo para sua avó sobre a conversa com os Kim no hospital. Inquieta e angustiada, ela decidiu que pularia logo para o assunto — afinal, nunca fora de rodeios — por isso, respirou fundo e assumiu um tom incisivo.

—É verdade que o Sr. Kim paga a minha mensalidade do Kobe Suwon? — perguntou de vez, porém tomando o cuidado de confirmar aquela história primeiro.

A avó de Bo Ra precisou de alguns longos segundos para processar aquela pergunta. Na verdade, ela fora pega de surpresa e, em sua cabeça, aquele questionamento repentino tinha haver com a suspensão da neta. Ocupada demais em obter uma resposta da mais velha, Bo Ra não se deu ao trabalho de explicar que aqueles dois fatos não tinham nenhuma ligação específica — na verdade, se pensar assim pressionaria sua avó a dizer-lhe a verdade, então ela deixaria que pensasse por agora.

— Quem lhe disse isso?

Aquela não era a resposta que Bo Ra esperava, especialmente acompanhada de um tom de voz nitidamente impactado. Então era verdade. Ela não precisava mais de uma confirmação, apenas de uma explicação.

— O próprio Sr. Kim. Eu não acho que ele teve a intenção, mas acabou sendo levado pelo calor do momento. — e ela realmente acreditava nisso, até porque, o homem não era do tipo que gostava de gabar-se sobre esse tipo de coisa, por mais sisudo e rígido que fosse. — Mas você sempre me disse que pagava do próprio bolso para que eu tivesse uma formação boa e honrada. Você mentiu para mim, vovó?

Francamente, uma das coisas que Bo Ra mais odiava era a mentira. Fossem pequenas e aparentemente inofensivas, ou até mesmo as que poderiam mudar a vida de alguém drasticamente, ela era terminantemente contra mentiras — assim, o único motivo pelo qual ainda estava mantendo-se descrente e tecnicamente calma era por se tratar de sua avó. Bem, seria duas vezes pior para ela se sua avó estivesse mentindo durante toda a sua vida escolar, mais ainda se tratava da mulher que a criara e sua única família; talvez por isso fosse mais difícil de acreditar, também.

A idosa respirou fundo. Quando, há muito anos, ela jurou para a filha que jamais contaria a verdade para Bo Ra, ela realmente chegou a acreditar que a neta nunca descobriria. Mesmo que seu coração, no fundo, soubesse que aquilo era impossível, ela ainda esperava que não fosse. Assim, quando sua filha deixou Bo Ra ainda bebê para que ela criasse e simplesmente foi embora, ela pediu aos céus que nunca tivesse de contar à neta todo o porquê do abandono de sua mãe.

Naquele momento, ela resolveu sentar-se no sofá e tentar manter sua frágil promessa à filha chorosa.

— Sim, é o Sr. Kim quem paga pelo seu colégio. — respondeu, fitando as agulhas sobre a mesa. Olhou para a neta e forçou o aparecimento do seu sorriso carinhoso. — Mas ele ofereceu porque sabia que o meu salário, mesmo que muito bom, não daria para nos sustentar e ainda arcar com os custos que um colégio tão caro requer. Eu nunca lhe contei porque sabia que você não iria gostar e...

— Você não precisa continuar mentindo. — Bo Ra cortou a avó, o que a assustou. No começo, não estava disposta a ser tão dura; contudo, quando percebeu que sua avó estava disposta a continuar mentindo olhando diretamente em seus olhos, ela percebeu que teria de ser assim. — Eu não sei se vocês combinaram, mas essa foi a primeira coisa que a Sra. Kim me disse. No mesmo segundo, Taeyuna a desmentiu e disse que eu deveria perguntar a verdade para a senhora, porque não aguentava mais mentir daquele jeito para mim.

Depois de décadas e mais décadas de vida, a idosa não se recordava de já ter sentido-se gelada daquele modo antes. Lembrou-se da filha em prantos, mal conseguindo olhar para uma Bo Ra recém nascida enquanto arrumava suas malas. Tantos anos depois, quando ela pensou que não havia mais como se abalar com aquela cena, a idosa sentiu uma súbita dor no coração.

— Eu fiz o que fiz pelo seu bem, Bo Ra. — afirmou, deixando transparecer na voz o cansaço de anos. — Isso é tudo que você precisa saber.

— Não, não é. E a senhora sabe disso. — naquele momento, a neta tentou implorar o máximo possível. Percebendo a luta interna de sua avó, ela sentou-se ao seu lado no sofá e envolveu suas mãos calejadas com as suas próprias. — Vovó, a senhora sabe que eu não consigo conviver com segredos. Por favor, o que quer que seja, você pode me contar. Você tem que me contar.

A verdade era que a mais velha não aguentava mais carregar aquilo para si. Sabia que estava prestes a quebrar sua neta por dentro, assim como tinha certeza de que ela demoraria bastante tempo para juntar os pedaços novamente, mas isso não significava que a mesma não merecia saber — além disso, se Bo Ra tinha todo aquele ímpeto pela verdade, ela havia aprendido com sua avó. Respirou fundo. Ainda estava indecisa e, se ainda lhe restassem lágrimas, ela provavelmente estaria com os olhos marejados naquele momento.

Onde quer que sua filha estivesse, ela esperava que lhe perdoasse um dia.

— Eu nunca lhe contei muito sobre a sua própria vida, não é mesmo? — a avó começou, acariciando as mãos da neta. — Eu sempre lhe disse que sua mãe engravidou ainda muito jovem e que seu pai não quis lhe assumir. Era impossível que uma mãe solteira e tão nova fosse aceita pela sociedade naquela época, então, eu permiti que ela lhe deixasse comigo e fosse tentar a vida em outro lugar. Nós duas sabíamos que isso não era o certo, contudo, ambas acreditávamos que você sofreria menos assim.

Bo Ra conhecia aquela história de cor e salteado, mesmo que sem muita riqueza de detalhes. A verdade era que nunca quisera de fato saber mais sobre seus pais, afinal, acreditava que não havia necessidade de saber coisas sobre pessoas que haviam lhe abandonado. Se eles não a quiseram, ela também não estava disposta a querê-los. Crescera bem assim e a companhia de sua avós sempre fora mais do que suficiente; contudo, naquele momento, a ameaça de ter sua zona de conforto destruída lhe assustou.

— Isso é mentira? — indagou, quase que implorando para que a resposta fosse negativa e ela pudesse seguir adiante com sua vida.

— É uma verdade distorcida. — a mais velha respondeu, ponderando as palavras. Mesmo assim, a verdade era que seria impossível dizer aquilo de um modo delicado. — A verdade nítida e completa é que a sua mãe foi embora porque não conseguia cuidar de você.

A mais nova tentou entender de primeira, porém não teve muito sucesso. Já imaginava que uma moça tão jovem não teria um pingo de experiência com crianças, porém, o modo como sua avó colocava fazia aquilo parecer mais sério e profundo.

— A Sra. Kim tem uma irmã. — continuou, parecendo que estava mudando completamente de assunto. — Desde quando eu trabalho para os Kim, antes mesmo da Taeyuna nascer, essa irmã sempre foi um problema para a família. Ela era inconsequente e fazia o que bem queria, inclusive casar-se com um fugitivo da Coréia do Norte. — pausou, contendo o estômago que começava a se revirar. — Eu não sei como ela conheceu aquele homem, mas sei que se apaixonou ao ponto de permitir que ele trocasse o sobrenome dele pelo dela, para que não descobrissem que ele veio para cá fugindo e o prendessem.

Bo Ra não estava entendo mais nada. Na verdade, ela nem ao menos sabia que a tal troca de sobrenomes era possível dentro da lei, mas sabia que os mais ricos tinham seus próprios jeitos e leis para resolver as coisas.

— E o que isso tem haver comigo? — indagou, tentando fazer a avó chegar a algum lugar.

Contudo, o que a mais velha menos tinha era pressa.

— Certo dia, por conta de um péssimo investimento que aquele homem fez, eles perderam tudo; inclusive a própria casa em que viviam. Como eles já tinham um filho, um menino, a Sra. Kim teve pena do sobrinho e pediu ao marido que deixasse os três morarem aqui na mansão. — parou para respirar fundo e lembrar-se daquela época tão distante. — O Sr. Kim era um homem diferente naquele tempo, muito mais influenciável pela esposa e ingênuo, por isso, ele permitiu.

Ela não queria continuar. As palavras lhe machucavam conforme deixavam sua boca, e o olhar perdido da neta não estava lhe ajudando. Emudeceu durante um longo tempo, apenas fitando os belos traços de Bo Ra e se perguntando se era certo fazer aquilo com ela.

— Continue, vovó. — ela incentivou, como se estivesse lendo os pensamentos da mais velha.

Mais alguns segundos depois, a senhora tomou coragem. Talvez não o suficiente para não deixar sua voz tremer, porém o bastante para conseguir falar e ser ouvida.

— Quando eles se mudaram, sua mãe tinha a sua idade e eu já era viúva, por isso, morávamos somente nós duas aqui. Naquela época, eu tinha muito mais trabalho para fazer na mansão do que tenho hoje, então, vez ou outra, sua mãe ia até lá para me ajudar. — sentiu a voz embolar em sua garganta. Surpreendeu-se quando percebeu que ainda tinha lágrimas para chorar. — Eu devia ter notado. Eu poderia ter impedido se tivesse notado.

Bo Ra estava assustada. Para alguém que há pouco estava tentando se convencer de que a verdade poderia ser algo completamente corriqueiro e fútil, agora ela esperava pelo pior — mesmo sem saber o que era o pior.

— Notado o que, vovó? —insistiu, mesmo que estivesse com um pouco de medo.

— Ela... a sua mãe mudou depois que eles se mudaram para cá. Ela vivia calada, encolhida e assustada... eu sempre lhe perguntava o que estava acontecendo, pensando que poderia ser algo na escola, mas ela me dizia que não era nada. Eu estava tão ocupada trabalhando, que apenas aceitava aquilo como verdade e seguia com as minhas tarefas. — pelos céus, ela não deveria estar contando aquilo. — Até que, numa madrugada, ela passou mal. Vomitou diversas vezes pelo quarto, até que finalmente pediu a minha ajuda e eu corri com ela para o hospital. Eu estava tão assustada, mas não mais do que ela...

— Foi nesse dia que ela descobriu que estava grávida? — Bo Ra indagou, julgando ter entendido pelo menos aquela parte da história, mesmo que ainda não conseguisse ligá-la à família da Sra. Kim.

— Sim. — sua avó afirmou, num fio de voz. Abaixou a cabeça, sentindo vergonha de si mesma depois de tantos anos. — Eu surtei. Enchi-a de perguntas e ela acabou explodindo, contando-me toda a história ali mesmo, naquela maca de hospital.

Bo Ra estava cansada e assustada demais para insistir que sua avó continuasse mais uma vez. Durante um breve momento, imaginou se não teria sido melhor nunca tê-la confrontado. Mesmo que nãos se orgulhasse disso, teve medo do que estava prestes a descobrir.

— A sua mãe... — ela não conseguia. Já tivera todos os possíveis tipos de reações em relação ao que queria dizer, mas ainda sentia um turbilhão de sentimentos dentro de si toda vez que lembrava-se daquela época. — Foi abusada.

De primeiro, Bo Ra nem ao menos entendeu aquelas palavras. Sentiu um impacto que poderia ser facilmente comparado a ser atingida por um caminhão. Pendeu a cabeça para o lado e abriu a boca diversas vezes, porém a fechava logo em seguida por não conseguir falar uma palavra sequer. Sua avó também não estava muito diferente, porém, sabia que seria muito pior se parasse a história por ali, deixando a neta além de quebrada por dentro, também confusa.

— Ela acabou me contando, aos prantos, que foi o cunhado da Sra. Kim quem o fez. — fazia-o, na verdade, mas em nada ajudaria Bo Ra saber que tal ato bárbaro ocorrera mais de uma vez. — Bem ali, sob os narizes de todos... e eu nunca reparei.

Na cabeça de Bo Ra, passava-se um show de horrores naquele momento. Em sua expressão facial estava claro o turbilhão de pensamentos e emoções que sentia.

Ela era fruto de um estupro.

— Por isso ela foi embora... — sussurrou tão baixo, que sua avó não conseguiu ouvi-la. Não precisou pensar muito para entender que, na verdade, sua mãe provavelmente não conseguia nem mesmo olhar para ela naquela época. Mesmo que não conhecesse seu rosto, conseguia imaginar com clareza uma figura feminina com nojo da própria barriga e do ser que havia ali dentro. — O que aconteceu depois?

— Eu fiquei tão perplexa, que não sabia direito o que fazer. Eu confiava muito no Sr. Kim e, por isso, resolvi recorrer a ele. —na verdade, a avó de Bo Ra era tão inocente quanto a própria filha naquela época. — Ele ficou revoltado. A primeira coisa que fez foi expulsar a família da mansão, dando-lhe apenas uma quantia necessária para sobreviverem alguns meses bem longe da cidade.

— Ninguém denunciou... — Bo Ra pausou, deixando a frase pendente no ar.

Não sabia como se referir àquele homem.

— Eu até queria, mas a Sra. Kim me convenceu de que não adiantaria de nada. Ela tinha acabado de descobrir que estava esperando o Taehyung e estava disposta a fazer de tudo para preservar a imagem da família. Ela me perguntou o que aconteceria se seus filhos descobrissem aquilo no futuro, e eu só consegui pensar em uma resposta pior do que a outra. 

— Mas não conseguiu pensar em mim? — Bo Ra indagou ríspida, sem perceber que algumas lágrimas já corriam livremente por suas bochechas. — No que aconteceria se eu descobrisse sobre isso no futuro?

Hoje, a idosa tinha muita vergonha de ter aceitado aquilo e ficado calada. No início, chegou a sentir raiva da família Kim, mas não tardou a colocar toda a culpa sobre suas próprias costas e ter de viver com aquilo. Uma parte dela mesma passou a rejeitá-la, como se fosse uma pessoa digna de desprezo, nojo e ódio, mas ainda assim ela acreditava que estava fazendo aquilo por Bo Ra.

— Ela disse que lhe daria tudo e que você cresceria bem e confortável. Eu não sei se teria aceitado, mas... a sua mãe chegou a cogitar não tê-la, e eu não podia deixar isso acontecer. Você nem ao menos tinha chego ao mundo, não tinha culpa... pelos céus, eu estava tão confusa. Sua mãe não saía mais do quarto e raramente comia, e aquilo estava me deixando ainda mais desesperada. — encarou a neta com sinceridade. —Por isso, eu aceitei. Eu vendi o meu silêncio acreditando que era para o seu bem, Bo Ra.

A garganta de Bo Ra doía de tão seca e seu coração estava extremamente acelerado. Sentia todos os possíveis e impossíveis sentimentos ruins ao mesmo tempo, acreditando que sua cabeça poderia explodir a qualquer momento.

— E a minha mãe? — indagou, com a voz embargada.

— Ela entrou em depressão. — respondeu, com dor transbordando em sua voz. — Só saía do quarto para ir ao médico, e isso só porque eu praticamente a levava em meu colo. Largou o colégio e parou de falar, só voltando a fazê-lo quando você nasceu.

— Por que? — Bo Ra perguntou, quase desesperada. — O que ela disse quando eu nasci?

Que não podia fazer aquilo. — a mais velha afirmou, pois ainda tinha aquela cena nítida e vívida em sua mente. — Você tinha no máximo três dias de vida quando eu a peguei arrumando as malas, no meio da madrugada. Ela conversou comigo, chorando muito, e disse que estava sofrendo e faria você sofrer também. Ela me disse que não conseguiria ser sua mãe.

— Então ela foi embora. — completou no mesmo instante, mesmo que mal conseguisse falar.

— Eu prometi que iria criá-la e que nunca deixaria você descobrir a verdade. Eu tentei, eu juro. — a senhora tinha tantas lágrimas nos olhos que mal conseguia enxergar, mesmo assim, tentou fitar o rosto da neta que tanto amava. — Perdão, Bo Ra.

A verdade era que Bo Ra estava confusa demais naquele momento. Ela não sabia mais o que era certo ou errado, não conseguia mensurar o tamanho do sofrimento de sua frágil e quase inexistente família e, por fim, não sabia como se sentir sobre si mesma. Queria correr. Gritar. Chorar até desidratar. Mas não conseguia. Estava com todos aqueles sentimentos e emoções entalados em sua garganta, sentindo como se eles pudessem obstruir as veias que levavam sangue até seu coração e matá-la de vez.

Ao invés de tudo isso, ela resolveu tomar coragem para sanar pelo menos uma de suas intermináveis dúvidas:

— E como os irmãos Kim ficaram sabendo disso?

Ela não conseguia não imaginar os irmãos conversando sobre seu passado em uma tarde de domingo, como se toda aquela barbaridade fosse comum. Por que eles nunca disseram nada? Talvez Taehyung realmente a odiasse, ao ponto de assistir em silêncio Bo Ra e seus princípios fundamentados em um verdadeiro nada. Será que ele se divertia guardando aquele segredo?

Se aquela fosse a verdade, então ele era uma pessoa muito pior do que ela imaginava, e isso era assustador de se pensar.

— Há alguns anos, o sobrinho da Sra. Kim retornou à mansão. Ele era muito jovem ainda, mas parecia carregar um peso de décadas nos ombros. Contou que seu pai estava muito doente e precisava da ajuda da família.

— Doente? — Bo Ra interrompeu instintivamente, sem ao menos saber porque estava curiosa sobre aquilo.

— Sim, mas eu nunca soube o que ele tinha. A Sra. Kim expulsou o rapaz daqui rapidamente, negando-se a oferecer qualquer tipo de ajuda. — sua avó respondeu. — Mas de nada adiantou, porque as crianças ouviram a conversa dos dois. Taeyuna começou a investigar e fazer perguntas e, persistente como era, acabou descobrindo a verdade. Ela ficou tão chocada que não conseguiu esconder do irmão.

Bo Ra não precisava saber de nada mais. Na verdade, ela tinha pensamentos conflituosos e tempestuosos demais naquele momento para importar-se com sua noona e Taehyung. Como quer que os dois tivessem reagido, qualquer tipo de pessoas que eles fossem, isso ela com certeza deixaria para mais tarde.

Ou nunca, pois não nutria nenhuma vontade de deparar-se com eles novamente.

— A senhora nunca mais teve notícias da minha mãe? — indagou, mesmo sem ter certeza de que resposta seria menos pior de ouvir. — Não sabe onde ela está?

— Eu só tive notícias da sua mãe há alguns anos, quando ela me enviou um cartão postal da cidade na qual estava morando. Contou-me que estava bem, havia se casado e também me perguntou sobre você.

— Sobre mim? — Bo Ra perguntou instantaneamente, mesmo que logo em seguida estivesse tentando se recompor. — A senhora ainda guarda esse cartão? — quando sua avó lhe respondeu com um aceno positivo de cabeça, ela enxugou algumas lágrimas e precisou fungar algumas vezes para deixar sua voz sair. — Posso vê-lo?

A idosa expressou um pequeno sorriso, mesmo que nele estivesse presente certo pesar. Era a única notícia que tinha de sua única filha em dezessete anos e, quando subiu para buscar o cartão postal em seu quarto, desejou poder abraçá-la novamente e pedir-lhe perdão. Junto do papel, havia também uma foto e nela a mãe de Bo Ra e seu marido estavam abraçados em um parque, de costas para um lago, e ambos pareciam felizes. A mulher enviara aquela foto na tentativa de tranquilizar o coração de sua mãe e deixar claro que estava tentando seguir em frente com sua vida, mesmo que ainda fosse difícil. No fim do pequeno texto escrito no verso da paisagem do cartão, ela perguntava sobre Bo Ra, como era fisicamente e se estava bem de saúde —  e, quando sua mãe lhe respondeu apenas aspectos positivos, nasceu dentro da mulher a esperança de que um dia conseguisse conhecer a filha.

Bo Ra analisou cada centímetro daquele cartão, mesmo que, no fim, ainda não soubesse o que pensar sobre ele. Palavras não eram suficientes para acalmar seus sentimentos. Nem mesmo poder ver o rosto de sua mãe pela primeira vez era o bastante, ainda que fosse possível constatar o quanto as duas eram parecidas fisicamente, exatamente como Bo Ra imaginava.

Ela precisava de mais.

Levantou-se, segurando firme o cartão para que ele não escapasse de suas mãos.

— Eu preciso de um tempo para processar tudo isso. — disse para sua avó, determinada. — Não se preocupe comigo.

Ela sabia que era errado simplesmente dar as costas para sua avó daquele modo, deixando-a sozinha naquela casa e sem dizer para onde ia. Talvez estivesse sendo ingrata para com a mulher que lhe criara  mesmo com todo aquele sofrimento envolvido, mas, mesmo assim, não conseguia pensar sobre isso naquele momento.

Ela precisava descobrir.

 

***

 

Bo Ra deveria estar cansada, porém, não conseguia sentir nada além de uma enorme inquietação dentro de si. Saíra de casa sem nada além do seu celular, que desligara logo em seguida, e um punhado de wons que já estava no bolso do seu vestido jeans desde a manhã passada, quando saíra para almoçar com os irmãos Kim — na verdade, havia passado frio durante a madruga por estar usando apenas aquela peça de roupa.

Não conseguira pregar os olhos durante nenhum minuto das longas horas que passara dentro do ônibus. Ainda na rodoviária, quando pediu para a atendente do guichê uma passagem para aquela cidade de interior da qual nunca ouvira falar antes, ela não imaginava que seria uma viagem tão demorada. Teriam sido nove ou dez horas no sacolejar da estrada? Sinceramente, ela não havia contado. Quando finalmente desembarcou na pequena cidade, sentiu uma brisa leve balançar os fiapos soltos do seu rabo de cavalo e, se aquele fosse um dia normal, teria sorrido.

Mas não era.

Precisou pedir informação para um grupo de senhoras em uma padaria, pois não fazia a menor ideia de onde ficava o lugar no qual queria chegar. O cheiro típico de café da manhã fez seu estômago remexer-se — afinal, sua última refeição fora um almoço no dia anterior — mas ela não tinha tempo para sentar-se em uma das mesinhas de madeira e, fingindo ser uma pessoa normal, tomar o reforçado café que precisava. Para a sua sorte, precisou caminhar apenas algumas quadras para já conseguir avistar o belo parque arborizado que procurava.

O parque da foto.

Era enorme e, por ser tão cedo, não ouvia-se muita coisa além do canto dos passarinhos. Conforme Bo Ra adentrava pela grama verde e bem cortada, percebia que a grande maioria dos presentes eram idosos ou famílias com filhos pequenos. Talvez sua mãe já tivesse uma criança como aquelas que corriam perto do lago, mas ela sentia que jamais saberia disso. Aproximou-se das águas escuras e tirou do bolso do vestido o cartão postal e a foto que trouxera consigo. Estava no exato mesmo ponto no qual a foto fora tirada.

Durante um momento, permitiu-se fechar os olhos e respirar fundo todo aquele ar puro. Não sabia ao certo porque havia entrado em um ônibus no meio da noite e viajado durante toda uma madrugada só para ir até aquele lugar, porém, tinha uma teoria em mente: era o mais próximo que conseguia chegar de sua mãe. Ela já estivera ali antes, naquele mesmo local, e talvez ainda morasse naquela cidade, o que permitia que Bo Ra se sentisse um pouco mais perto dela. Não estava disposta a procurá-la, até porque sentia que não seria justo com a mulher — ao ver Bo Ra, ela provavelmente se lembraria dele — mas ainda assim sentia a necessidade de sentir algo.

Por fim, a realidade daquela situação finalmente a atingiu. Percebeu quem era. Sentiu-se triste como uma criança perdida, por mais idiota que isso lhe parecesse.

Sentou-se no gramado e, encarando aquela imensidão de águas escuras, ela permitiu que todo o seu estoque de lágrimas se esvaziasse naquele momento. Chorou sem se condenar e se importa com quem via aquela cena, pelo passado e pelo futuro.

No fim das contas, viajara todos aqueles quilômetros apenas para descobrir-se humana durante um momento.


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Notas finais do capítulo

E então, o que acharam? Não esqueçam como a opinião de vocês é importante para mim!
Ah, reparem na minha capa nova, por favor. Os créditos pela produção dessa lindeza são completamente da linda da minha unnie Nanat ♥

Até!