Iguais, porém opostos escrita por Cellis


Capítulo 26
Como iguais, porém opostos


Notas iniciais do capítulo

Demorei, mas apareci. Não me julguem, pois esse é o capítulo final e eu estou sensível, ok?
Obviamente, o textão está lá nas notas finais.

Espero que gostem ♥



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A vida não é uma estrada de duas mãos. 

Bo Ra recordava-se de ter escutado aquela frase há muitos anos, quando, ainda criança, foi ao primeiro funeral de sua vida. Tratava-se do falecimento de um primo de sua avó e, apesar de nunca o ter conhecido pessoalmente, a Sra. Kang sempre contava para a neta histórias de como aquele tal parente era divertido e imprevisível — desde criança o homem vivia sua vida como bem queria, divertindo-se ao seu modo e no seu próprio tempo. Bo Ra também se lembrava de ouvir algumas pessoas o chamando de inconsequente enquanto velavam seu corpo, contudo, ela sequer sabia o significado dessa palavra naquela época para poder concordar com aquilo ou não. 

Na verdade, ela não havia entendido aquela primeira frase. O que significava a vida não ser uma estrada de mão dupla e por que algumas pessoas aparentemente não gostavam que o falecido soubesse disso? Muitos anos se passaram e a pequena Kang, já uma adolescente, começou a esquecer acontecimentos de sua infância. Não se lembrava mais de como fora andar de bicicleta pela primeira vez, dos seus amigos do jardim infantil ou de qual costumava ser sua comida preferida — contudo, aquela frase nunca fora esquecida. Ela sequer se recordava do velório em si, porém, não entender o significado daquelas palavras mantiveram as mesmas vívidas em sua mente mesmo com o passar do tempo. 

Custou-lhe muitos anos, mas, agora, ela finalmente entendia. A viagem para Paris, além de outras coisas, lhe fizera entender que a vida é um caminho somente de ida. É uma estrada onde é impossível desfazer algo, retomar palavras ditas ou corrigir um grande erro — é uma trilha que aponta apenas para uma direção, sendo a mesma sempre para frente e nunca para trás. 

Aquele homem sabia que não havia voltas na vida e aceitou viver com isso. Viveu bem, foi feliz e, provavelmente, morreu com pouquíssimos arrependimentos. Sinceramente, Bo Ra não costumava ver sentido naquela ideia, afinal, fazer de um tudo significava poder arrepender-se de qualquer coisa mais tarde; contudo, agora pensava diferente.  

Fazer de tudo significa não ter sua vida drenada pelas lamentações do que poderia ter sido feito. 

Custou a Bo Ra apenas um dia observando os irmãos Kim para que ela se lembrasse disso. Aquele relacionamento que tinha todos os motivos e incentivos do mundo para ser quebrado, algo frágil e débil, era um dos mais bonitos e resistentes que a Kang já havia visto — mesmo com todos os problemas, os irmãos ainda eram irmãos. Taehyung era mais frio, contudo, tornava-se apenas mais um dongsaeng ao lado de sua irmã. E Taeyuna, por sua vez, apenas mais uma noona capaz de proteger o irmão contra tudo e todos, ao mesmo tempo que puxava a sua orelha. 

Bo Ra sentiu vontade de experimentar aquilo. Aquele tipo de laço de sangue. Claro que tinha sua amada avó ao seu lado, a mulher que fizera do impossível algo alcançável apenas para criar bem sua neta, porém, não podia ter com ela aquela união. A Kang não sabia sequer explicar direito o que sentia ao observar a relação dos irmãos Kim, mas, talvez, pudesse fazê-lo se vivesse aquilo na própria pele. 

De repente, Bo Ra começou a se perguntar se seria possível viver aquela experiência na sua estrada de mão única. Se apenas continuasse seguindo em frente, sem olhar para trás ou fazer uma pequena pausa em sua caminhada, quantos arrependimentos encontraria no fim de seu trajeto? Não poderia dizer ao certo, contudo, podia afirmar que ignorar a existência de alguém que era sua família com certeza seria um deles. 

Olhando pela janela escura do carro de Taehyung, ela sabia que estava fazendo a coisa certa, ainda que estivesse nervosa com o que estava prestes a encontrar — porque, o que quer que fosse, seria melhor arrepender-se de o ter conhecido do que de ter escolhido nunca o fazer. Respirou fundo e, de repente, sentiu sua mão sendo envolta pela do Kim. Não tinha percebido que havia fechado os olhos até precisar abri-los para fitar o rapaz. 

— Você tem certeza sobre isso? — ele perguntou, acariciando a mão de Bo Ra com seu polegar. 

Na verdade, Taehyung precisava ter aquela confirmação. Havia prometido para si mesmo que jamais contaria a Bo Ra sobre seu irmão, isso a menos que ela lhe pedisse. Sinceramente, ele sequer podia distinguir se levá-la até ele era uma boa decisão, contudo, se ela tinha certeza de que era, ele respeitaria sua escolha e apenas ficaria ao seu lado para caso ela precisasse. 

Era a única coisa que ele podia fazer por ela, afinal, Kang Bo Ra não deixaria ninguém mais resolver aquele assunto senão a si própria.  

— Tenho. — ela respondeu, esticando sua outra mão para abraçar a dele. 

Não havia se passado sequer uma semana desde que ela lhe fizera aquele pedido e, por isso, Taehyung ainda se lembrava de como se surpreendeu com a súbita vontade da Kang de conhecer o irmão. 

— Você sabe onde ele está, não sabe? Por favor, me leve até ele quando voltarmos. 

Ele não podia mentir para ela e muito menos negar-lhe aquele pedido, apesar do enorme receio que sentia. Já de volta à Coréia há um par de dias, sem ter sequer visto seus pais nesse intervalo de tempo, ele ainda trazia consigo aquela apreensão, mas não estava disposto a dar lugar para tal sentimento.  

Tratava-se da vontade de Bo Ra, a mulher que ele amava. 

E amar era sinônimo de respeitar. 

— Chegamos. — ele disse, poucos minutos depois.  

Pela janela opaca do bando de trás, Bo Ra fitou o exterior do veículo. Quando se deparou com um hospital, na verdade o mesmo onde sua avó havia tratado as dores na coluna, uma angústia sufocante pareceu apertar seu peito.  

— Não me diga que ele... — iniciou, voltando-se para Taehyung, mas não conseguiu terminar a frase. 

— Não. — o Kim negou no mesmo instante, afastando da cabeça de Bo Ra o medo de que seu irmão fosse um paciente naquele lugar. — Ele trabalha aqui.  

A Kang então respirou fundo, perguntando-se como poderia ter se preocupado daquele modo com alguém que sequer conhecia. Era daquele laço de sangue que ela tanto buscava experimentar, concluiu para si mesma enquanto descia do veículo. Taehyung pediu ao motorista que esperasse no estacionamento do hospital e logo colocou-se ao lado de Bo Ra. Sentiu emanar dela, ainda que durante apenas uma fração de segundo, um misto de insegurança e temor que a deixou imóvel — contudo, diante da faixada do prédio, ela inspirou uma quantidade considerável de ar e logo colocou suas pernas para trabalharem.  

O saguão do hospital era muito limpo e calmo. Bo Ra caminhava sem pressa por entre as cadeiras da sala de espera, em sua grande maioria vazias, até os dois alcançarem o balcão de informações. Nele, duas mulheres que aparentavam serem enfermeiras trabalhavam com fichas e prontuários, mas apenas uma delas notou a presença do casal e pausou o que estava fazendo para dirigir-se a eles. 

— Bom dia. — cumprimentou sorridente, ainda que parecesse cansada. Não deveria ter muito mais que trinta anos e usava um uniforme branco. — Em que posso ajudá-los? 

— Bom dia. — Taehyung a cumprimentou de volta. Fitou Bo Ra ao seu lado, hesitando por um breve momento. O que lhe fez continuar foi o olhar dela, pedindo-lhe silenciosamente para que ele fizesse aquilo. — Nós estamos procurando pelo Dr. Kim Seokjin.  

Kim Seokjin. 

O nome fez a memória de Bo Ra se revirar. Franziu o cenho, perguntando-se mentalmente se aquele seria o mesmo médico que atendera sua avó naquele dia e, consequentemente, o formando que encontrara no cemitério.  

Perguntando-se se já conhecia o seu irmão. 

— Vocês estão com sorte. — a enfermeira disse, ainda simpática. Apontou discretamente para algum ponto atrás do casal. — Ele está bem ali. 

Virando-se, os dois se depararam com uma cafeteria no lado oposto do saguão que poderia facilmente passar despercebida por aqueles que entrassem no hospital com pressa ou distraídos. O lugar parecia aconchegante, apesar de não muito grande, e, em uma de suas mesas, um médico alto e de cabelos negros tomava uma pequena xícara de café preto puro. Estava distraído lendo um prontuário e, por isso, não percebeu os dois jovens o fitando à distância. Taehyung agradeceu à enfermeira e, de repente, fitou uma espantada Bo Ra ao seu lado.  

Era ele. 

Parando para relembrar toda a história que sua avó lhe contara, seu passado com origens ainda asquerosas para a Kang, ela jamais poderia imaginar que um dia chegaria a encontrar o filho daquele homem — seu irmão. Contudo, além de já o ter encontrado duas vezes antes, agora ele estava bem ali, ao alcance de alguns passos. Apenas um saguão pouco movimentado de um hospital separava Bo Ra de parte da sua história e, diante daquele fato, ela deu um passo instintivo para trás.  

Será que ele se parecia com o pai? O que sua mãe sentiria se o encontrasse?  

As perguntas em sua mente tornaram-se tantas que deixaram a garota tonta. 

— Kang Bo Ra. — ela ouviu Taehyung lhe chamar. Ele estava ao seu lado e se inclinava para frente, para mais próximo o possível dela. — Você consegue. Você pode escolher ir embora agora, mas isso não muda o fato de que você consegue ficar

Taehyung estava certo, mas fora o misto de firmeza e compreensão em sua voz que fez com que Bo Ra reconhecesse isso. Fitou-o, acalmando a própria respiração, e balançou a cabeça positivamente. 

— Se você precisar de mim, eu estarei exatamente aqui. — ele disse, por fim.  

Na verdade, jamais havia cogitado fazer aquilo com Bo Ra. Estava fazendo tudo aquilo por ela, claro, mas os passos que precisavam ser dados daquele momento em diante só podiam ser dados por ela e por mais ninguém. Por isso, Taehyung obrigou-se a controlar a enorme vontade que sentia de pegá-la pela mão e ajudá-la a caminhar, porque aquela caminhada não pertencia a ele.  

Aquela não era a sua estrada. 

E foi sozinha que Bo Ra começou a caminhar. Não havia muito espaço entre seus passos, como se ela estivesse tentando estender um pouco mais aquele momento — ou adiá-lo — mas sabia que fazê-lo não era mais possível. Quando se deu conta, já estava prestes a alcançar a mesa onde estava Seokjin, mais afastada das outras. 

Contudo, de repente, antes que ela pudesse chegar até ele, o médico distraiu-se do prontuário que lia e ergueu a cabeça. Deparou-se diretamente com Bo Ra e, como consequência, não conseguiu esconder a surpresa em seu olhar. Congelaram, ambos tomados pela carga emocional e pela incerteza que aquele momento trazia consigo. 

Bo Ra foi a primeira a retomar os sentidos, voltando a caminhar. Durante os poucos passos que a separavam de Seokjin, ela se perguntou o que ele teria sentido e pensado quando a encontrou sabendo que eram irmãos — pois os olhos dele tornavam impossível de negar o fato de que ele sabia daquilo assim que a viu. Por fim, alcançou a mesa. O médico parecia nervoso e controlava uma vontade excessiva de abaixar sua cabeça, porém, não conseguia desviar os olhos dela. 

De sua irmã. 

— Podemos conversar? — foi a primeira coisa que ela disse, ainda um pouco sem jeito. O momento dispensava formalidades, isso era verdade; contudo, aquilo a deixava ainda mais nervosa. — Desculpe-me por lhe incomodar no seu ambiente de trabalho, mas é que... 

— Perdão, mas se você precisa de atendimento, deve passar pela recepção primeiro. — o homem subitamente disse e se levantou, mostrando-se alguns centímetros mais alto do que ela.  

Seokjin mantinha a cabeça baixa quando passou pela irmã, evitando a todo custo qualquer tipo de contato. 

— Não faça isso. Por favor. — ela emendou com pressa, quase como uma súplica. Virou-se, pois o Kim já havia a deixado para trás, e o encontrou parado de costas para ela. — Eu só estou pedindo uma conversa. 

Seokjin respirou fundo. Sentia uma lágrima embaçar seu olho direito e, tentando fazer com que a mesma não caísse, fechou com força os próprios punhos. 

— Eu não consigo.  

Ele havia jurado para si mesmo que não faria aquilo. Quando viu Bo Ra aquele dia no hospital, percebeu que a garota possuía toda uma vida a qual ele não tinha o direito de importunar. Tinha enterrado todo aquele sofrimento dentro de si próprio e não estava disposto a deixá-la encontrá-lo, pois, apesar de não a conhecer, sabia que ela não merecia aquilo.  

Contudo, nada impedia que Bo Ra desse alguns passos na direção do Kim, ainda que ele permanecesse de costas para ela. 

— Se o que lhe impede é ser filho daquele homem, tenha em mente que eu também sou. — ela disse, firme. Há não muito tempo ainda lhe custava admitir aquilo, mas não mais. — E isso não me impediu de vir até aqui.  

As palavras da Kang fizeram Seokjin balançar. Custou-lhe alguns segundos, contudo, ele lentamente cedeu ao pedido dela, fitando-a por cima do ombro.  

— Venha comigo. — falou, já começando a caminhar.  

Bo Ra o seguiu e, assim que saíram da cafeteria, viu Taehyung os fitando de longe pelo saguão. Não havia muito em sua expressão facial, contudo, ela encontrou o conforto e a força que precisava nos olhos dele e automaticamente sentiu-se grata por ele estar lá. Em seguida, seguiu Seokjin até um belo jardim não muito distante de onde eles estavam, como uma área à parte na lateral do hospital. O lugar era muito bonito e bem cuidado, decorado por arbustos e pelas mais diversas árvores, além de uma fonte bem no seu centro. Ao redor da fonte havia bancos de pedra, alguns deles ocupados por pacientes ou seus familiares. O ar era fresco e agradável, apesar de cada pessoa presente ali parecer estar carregando um enorme peso em suas costas. 

De repente, Seokjin sentou-se em um dos bancos vazios. Ele tinha um belo porte, porém Bo Ra não conseguia encontrar muitas semelhanças entre os dois em seu rosto. Sentou-se ao lado dele, mantendo uma distância aproximadamente de três palmos. 

Seokjin respirou fundo. 

— Esse é o meu lugar preferido de todo o hospital. Eu trabalho aqui há dois anos e não há sequer um único dia que eu não venha até esse jardim. — iniciou, olhando ao redor. Já conhecia cada detalhe daquele lugar de cor e salteado, talvez mais do que sua própria casa. — As enfermeiras o chamam de jardim das esperanças, porque, não importa qual seja a doença do paciente, ele sempre se sente melhor quando vem aqui. 

Bo Ra escutava as palavras com calma e compreensão, também observando cada pequeno detalhe do lugar. 

— Algum paciente já se curou aqui? — ela indagou.  

Seokjin sentiu-se um pouco surpreso pela pergunta, mas não mudou o tom da conversa. 

— Alguns dizem que sim, ainda que nenhuma ciência tenha provado isso. — respondeu. Também havia casos não tão bons e esperançosos que aconteceram naquele lugar, porque, afinal, nem toda enfermidade possui uma cura. — Você não deveria ter vindo aqui. 

A Kang notou a voz trêmula do mais velho e, por isso, o fitou. 

— Eu gostei de conhecer um lugar tão bonito. — disse. 

— Não, não aquiAté mim. — ele rebateu quase que instantaneamente. Fitou-a de volta com uma intensidade que Bo Ra não sabia se estava conseguindo retribuir. — O que aconteceu no passado, o que o meu pai fez, não tem... 

— Eu descobri não faz muito tempo. — ela o interrompeu, voltando a olhar para frente. Lembranças surgiram em sua mente e ela teve de se esforçar para não chorar ali como havia chorado no parque do cartão postal de sua mãe. — Foi o pior momento da minha vida. Eu nunca me senti tão sozinha no mundo, pois eu mesma me rejeitei em um ponto. Eu quis desaparecer

— Não é sua culpa. — o Kim afirmou, ainda fitando-a. 

— E também não é sua. — ela rebateu. — Eu precisei de algum tempo, mas eu finalmente entendi que ninguém pode ser responsável ou culpado pelas ações de outra pessoa, não importa quem ela seja. Eu não posso me culpar pela minha mãe ter me abandonado, ou pela monstruosidade que o seu pai fez com ela, não importa quem eles tenham sido na minha vida.  

— Você sabe que eu fui procurá-la? — ele indagou, revoltado consigo mesmo. — Eu cogitei contar toda a verdade para uma menina para tentar salvar aquele homem. Talvez eu não seja tão diferente dele... 

— O que você estava fazendo no cemitério naquele dia?  

Seokjin se espantou com a calma e a frieza com que Bo Ra tratava daquele assunto. Como ela poderia conversar daquele jeito com o filho do homem que abusara de sua mãe e destruíra sua vida?  Ele não sabia que, na verdade, Bo Ra estava apenas cansada dos julgamentos, da raiva e do ressentimento. Já passara e sentira tudo aquilo e, sinceramente, aquelas coisas só fizeram levá-la para um lugar obscuro e solitário demais para que ela quisesse voltar lá. 

— Foi a última vez que eu coloquei os pés naquele lugar. — ele respondeu, por fim. — Eu prometi a mim mesmo que me formaria e me tornaria um bom médico, independentemente da existência dele em minha vida ou não. Fui até lá lhe mostrar isso. 

Fitando-o com um pouco de atenção e ouvindo com cuidado suas palavras, Bo Ra podia notar com clareza o quão amargurado o irmão parecia com o passado. Ele aparentava nunca ter conseguido se livrar da raiva que ela mesma já sentira um dia e, por isso, aquilo o tornava um homem machucado. 

Ele parecia infeliz. 

— Foi a minha primeira vez lá. — a Kang contou. — Eu tenho que admitir que fui embora melhor do que quando entrei.  

— Desculpe, mas eu realmente não posso fazer isso. — ele disse, levantando-se subitamente e parecendo perturbado. — Você pode ter perdoado o meu pai, mas eu não... 

— Eu jamais o perdoaria. — ela o interrompeu com firmeza, levantando-se também. — O que fiz foi perdoar a mim mesma. Esse foi o único jeito que eu encontrei de não viver o resto da minha vida atormentada por um passado que, sinceramente, não me pertence. — os dois permaneceram fitando um ao outro por um breve momento, ambos lutando suas próprias batalhas internas. — Por que você não consegue fazer isso? 

De repente, Bo Ra viu nos olhos de Seokjin algo semelhante a um castelo de cartas sendo bruscamente destruído por uma tempestade. Um sentimento ruim que parecia corroê-lo de dentro para fora, fazendo com que os pedaços que se soltavam de si próprio quisessem fugir dele através de seus olhos em formato de lágrimas, as quais o médico lutava com todas as suas forças para não derramar. O olhar do mais velho tornou-se ainda mais negro e ele se colocou exatamente de frente para a Kang. 

— Você sabe por que me tornei médico? — ele indagou com a voz embargada e, sem esperar por uma resposta, continuou. — Porque um dia eu cogitei deixar uma pessoa morrer. Eu tentei ajudá-la, mas, no fundo, eu torcia para que ninguém o fizesse. Eu rezei para que ninguém conseguisse salvá-lo.  

Bo Ra se manteve calada, assistindo à luta do irmão para colocar aquelas palavras tão doloridas para fora. Comoveu-se quando a primeira lágrima escorreu do olho direito de Seokjin, como se ela mesma não estivesse com os olhos marejados. 

— Você faz ideia de como é ter o seu próprio pai lhe fazendo sentir esse tipo de coisa? — ele continuou. — Eu tive nojo de mim mesmo, mas simplesmente não podia evitar. É por isso que eu não consigo o perdoar, mas, principalmente, não consigo perdoar a mim mesmo. — ao fim da história, Seokjin teve de fazer uma breve pausa para tentar reestruturar sua voz. — Tornei-me um médico para nunca mais pensar daquele jeito. 

As mãos do Kim tremiam e ele ainda parecia perplexo com suas palavras, mesmo que já carregasse todos aqueles sentimentos consigo há alguns anos. Ele não podia suportar que Bo Ra olhasse para ele do mesmo modo que sua imagem o encarava de volta no espelho todos os dias, então, por isso, instintivamente abaixou a cabeça. As lágrimas passaram a cair diretamente no gramado e algumas sobre os seus sapatos e, por mais que ele se esforçasse, não conseguia controlá-las.  

Foi quando, de repente, ele sentiu os braços de Bo Ra tentarem envolver por completo o seu tronco. O corpo da garota encontrou o seu e, assustado, Seokjin demorou alguns segundos para entender sobre o que se tratava aquele ato.  

Um abraço. 

O coração de Bo Ra batia calmamente contra o seu, agitado e precário. Ela repousou a cabeça sobre o peito do rapaz, o qual permaneceu imóvel em seu espanto.  

— É uma pena que não tenhamos crescido em circunstâncias diferentes. — ela disse contra o peito dele. — Você teria sido um ótimo irmão.  

Seokjin sentiu-se desestabilizado com aquelas palavras. Passara anos e mais anos de sua vida imaginando todos os possíveis encontros que poderia ter com sua irmã, contudo, nenhum deles se aproximava do que realmente era aquele momento. Emocionado, ele abaixou a guarda e, aos poucos e um tanto sem jeito, retribuiu o abraço. Bo Ra o apertou gentilmente contra si, como se o incentivasse a fazer o mesmo.  

E ele faria, porque aquele era o primeiro de muitos outros abraços que daria em sua irmã. 

 

*** 

 

O clima era agradável, mas ninguém seria capaz de esperar menos de uma manhã da mais bela primavera de Seul nas últimas duas décadas — ou, pelo menos, era aquilo que todos os jornais anunciavam. O ar estava fresco e mais leve, como se tivesse deixado de lado toda a poluição da cidade por um instante. Taehyung mantinha os olhos atentos na estrada, ainda que não houvesse nenhuma perturbação no trânsito naquela manhã.  

Era domingo, o dia preferido de Kang Bo Ra. Até alguns anos atrás, não costumava apreciar tanto aquele dia; contudo, agora trabalhando em seu escritório de advocacia por dias e noites seguidos, ela passara a valorizar mais um único dia de descanso que fosse. As causas populares eram as que mais tomavam seu tempo, porém, era nelas que Bo Ra mais gostava de se empenhar e vencer.  

Taehyung estacionou o carro e, como já esperavam, não havia muitos outros veículos no estacionamento. Na verdade, aquele era um lugar muito tranquilo e, mesmo sendo domingo, o fluxo de pessoas era pequeno e calmo. Desceu do veículo e fez menção de ajudar Bo Ra a fazer o mesmo, contudo, a mulher já havia o feito sozinha.  

— Algumas coisas nunca mudam. — sussurrou para si mesmo, sorrindo pelo fato da Kang, atualmente também uma Kim, ter conseguido manter intacto aquele espírito independente ao longo dos anos. 

Subiram juntos a escadaria cinzenta, porém completamente decorada por flores, do lugar e não precisaram caminhar muito para chegarem em seu destino: columbário. No meio daquele enorme cemitério, o columbário ficava no prédio central, era climatizado e muito bem cuidado. Quando o casal encontrou a urna que viera visitar, Bo Ra fez questão de depositar ao seu lado as rosas-de-sarom violetas que escolhera especialmente para aquele dia. 

Eram as preferidas dela

Sentou-se no banco de frente para a urna e, em seguida, Taehyung fez o mesmo. Ao lado da esposa, ele esticou sua mão até encontrar a dela, algo que havia se tornado um hábito sempre que ele sentia a necessidade de mostrar que estava ali por ela. 

Bo Ra sorriu ternamente. 

— Desculpe por não ter vindo antes, vovó. — ela iniciou, fitando a pequena foto da avó ao lado de sua urna. Era um retrato de sua juventude, preto e branco, e nele a mulher exibia um enorme sorriso. — Eu queria vir, mas o meu médico me proibiu de dirigir. Sinceramente, eu acho que isso foi apenas uma desculpa para que ele pudesse ficar me levando para todos os lugares, mas eu preferi não o contestar. 

Ao seu lado, Taehyung riu baixinho da alfinetada da mulher. Lembrou-se do dia no qual fora obrigado a usar de sua licença médica para proibir Bo Ra de dirigir, pois, caso contrário, a filha do casal acabaria nascendo atrás de um volante.  

De repente, o Kim aproximou-se da enorme barriga de oito meses da esposa. 

— Por favor, não nasça teimosa como a sua mãe. — sussurrou, brincando. Endireitou-se, observando Bo Ra retraindo um sorriso diante daquela cena. 

Em seguida, ela se voltou novamente para a urna da avó. Já haviam se passado cinco anos. Aquele, na verdade, era o quinto aniversário de sua morte. Não havia um dia sequer que a Kang não sentisse saudades da avó, contudo, fora aprendendo a lidar com a falta que a mesma fazia ao longo do tempo. Hoje, ela conseguia olhar para aquela urna e sentir apenas coisas boas, como se estivesse reencontrando uma grande amiga que não via há muito tempo.  

Visitas como aquela eram, na verdade, aconchegantes. 

— Eu trouxe novidades, vovó. O Jin vai se casar, acredita? — ela contou, sorridente. — Na verdade, ele gostaria de ter vindo hoje para lhe contar pessoalmente, mas acabou ficando no hospital para cobrir o plantão do Taehyung. Se não fosse pelo oppa, eu teria vindo sozinha hoje.  

Aquela era uma notícia que Bo Ra tinha certeza de que sua avó gostaria de ouvir. A aproximação dos irmãos havia sido demorada e extremamente delicada, porém, depois de um par de anos, ambos conseguiram superar a mágoa do passado o suficiente para começarem a construir uma relação normal de irmãos. Quando Seokjin e a Sra. Kang se encontraram pela primeira vez, um encontro organizado pela própria Bo Ra, o Kim havia chorado como uma bebê nos braços da mais velha. A idosa era um ser doce demais para guardar qualquer tipo de rancor contra Jin — como a irmã o chamava — e, por isso, ela acabou por adotá-lo como se fosse seu próprio neto. Eles não puderam conviver por muitos anos, contudo, Jin ainda nutria um carinho e respeito muito especiais pela idosa. Vez ou outra ele acompanhava a irmã até o cemitério e, assim, os dois passavam a tarde inteira conversando com a urna da Kang.  

— Ele está tão feliz... Não parece em nada o Kim Seokjin que eu conheci há dez anos. — Bo Ra comentou. De repente, riu sozinha. — Por falar em mudanças, eu lhe trarei ainda mais rosas da próxima vez se conseguir adivinhar quem permanece exatamente o mesmo que você conhecia. 

— Eu vou lhe dar uma dica, vovó. — Taehyung disse, já sabendo de quem se tratava. — Começa com Park e termina com Jimin

Bo Ra riu da brincadeira do marido, acariciando a mão ainda entrelaçada à dela. 

— Exatamente. — concordou. — Aquele ego e a mania de beleza dele o levaram para desfilar em uma semana de moda em Paris no mês passado. E, obviamente, Jungkook foi junto como fotógrafo. — contou, orgulhosa dos amigos. — Quem diria que aquele baixinho que era perseguido pela metade da população feminina do colégio e o garoto prodígio acabariam assim, não é mesmo? O Jungkook diz que se formou em fotografia só para poder registrar a beleza do Jimin pelo resto da vida. 

— Cafonas... — Taehyung murmurou, porém não baixo o suficiente para não ser ouvido por Bo Ra. Como resposta, ele recebeu um tapa repreensivo no braço. Reclamou e resmungou, contudo, era tão cafona por Bo Ra quanto seu casal de amigos eram um pelo outro e, por isso, nada conseguiu fazer além de protestar. 

Brincadeiras à parte, o Kim se orgulhava de ter conseguido manter aquele círculo de amizades ao longo dos anos — claro que grande parte daquele mérito pertencia a Bo Ra, mas ele não se importava em dividi-lo. A pessoa que ele menos via era Yoongi, pois o rapaz havia se apaixonado perdidamente por uma garota doce e alegre ainda na época de ensino médio; o suficiente para ser internado na clínica de reabilitação novamente, mas dessa vez devido à sua própria vontade de se tratar. Custou-lhe alguns meses, contudo, já recuperado de seus vícios, ele propôs à garota que fugissem juntos para algum lugar distante, no interior do país. Ela, por algum motivo que Taehyung achava incrível, aceitou, e já fazia quase uma década que os dois viviam afastados, porém felizes com suas vidas. 

De vez em quando ele e Bo Ra tiravam alguns dias para visitar o Min, porém, com a agenda apertada do casal, eles acabavam sempre tendo de retornar cedo. 

— Eu sinto a sua falta, vovó. — Bo Ra comentou baixinho, desviando Taehyung de seus pensamentos. Ela parecia saudosa e alternava o olhar entre o chão e a urna. — Há alguns dias atrás o Sr. Kim vendeu a mansão e, mesmo sem ter voltado mais lá depois que você faleceu, eu senti como se estivesse perdendo mais um pedacinho seu. Quem será que irá morar na casa em que você viveu durante tantos anos de sua vida? 

Taehyung havia ficado sabendo por alto sobre a venda da mansão, já que há muitos anos não falava mais com seu pai. Seus pais haviam se divorciado alguns dias depois da formatura de colégio do Kim mais novo e, por isso, o patriarca da família acabou deixando a casa. A mãe aproveitava o dinheiro da pensão que recebia para viajar pelo mundo, sempre buscando algo capaz de preencher o vazio que só crescia dentro de si, e Taehyung acabou afastando-se cada vez mais dos dois. Lembrava-se do dia de seu casamento, quando apenas sua mãe apareceu — o pai, mesmo convidado, jamais justificou a falta. Depois disso, ele só havia reencontrado o homem no velório de sua mãe, que morreu lentamente devido à quantidade absurda de comprimidos que tomava, e no dia da partilha de bens, quando ele e a irmã abriram mão de tudo.  

No fim das contas, a fortuna da família Kim havia ficado toda para o patriarca, mas nem isso conseguira fazê-lo feliz. O Sr. Kim vivia sozinho em um enorme apartamento e ainda administrava sua empresa, porém sem ter para quem deixá-la. Taeyuna jamais largaria a carreira que construíra como modista na Europa para cuidar dos negócios do pai e Taehyung não pensava diferente.  

No fim, do que havia lhe servido toda aquela ganância? 

Quando Taehyung contou para a esposa sobre a venda da casa, sabia que ela ficaria sentida — contudo, conhecia Bo Ra bem o suficiente para ter certeza de que esconder dela seria muito pior. Não era como se a Kang sentisse falta dos dias nublados que havia passado naquela casa, contudo, nem todos os dias foram assim. Crescera na casa anexa e, sinceramente, lhe confortava o coração saber que a memória de sua avó poderia ser preservada naquele lugar. 

Mas agora, com a venda da casa, ela não poderia mais pensar assim. 

— Mas isso não importa. — concluiu seu pensamento, sacudindo a cabeça. — Sempre que eu sentir saudades eu posso vir aqui para vê-la, não preciso daquela mansão.  

Ao ouvir aquilo, Taehyung sentiu um orgulho inexplicável de sua esposa. Eles haviam passado por muitas coisas juntos, tanto boas quanto ruins, contudo, nenhuma delas fora capaz de abalar a confiança e a força de Bo Ra. Não importavam as perdas, as surpresas da vida ou os infortúnios... Bo Ra seria sempre o seu porto seguro, assim como ele era o dela

De repente, ele trouxe a Kang para dentro do seu abraço. Passou seus braços por trás dela, pousando suas mãos sobre o ventre onde estava sua filha. Sorriu para ela e, em seguida, foi presenteado com um sorriso de volta. Eles estavam prestes a passar praticamente todo o dia ali naquele colúmbario, conversando com a Sra. Kang, mas apenas o fato de poder passá-lo ao lado de Bo Ra já era mais do que suficiente para Taehyung.  

— Se um dia alguém dissesse para o meu eu de dezessete anos que nós acabaríamos assim, ele provavelmente teria tido um surto psicológico de alguns meses. — o Kim comentou ao pé do ouvido da esposa, rindo. 

Bo Ra bufou.  

— Você era insuportável, Kim Taehyung. — disse.  

— E quanto a você, Kang Bo Ra? — ele rebateu.  

Aquela faísca que havia entre eles jamais mudaria, isso era um fato.  

— Sabe, era engraçado como nós detestávamos um ao outro, mas, ao mesmo tempo, éramos tão parecidos. — ela disse, pensativa. Inclinou-se para fitá-lo melhor. — Era como se nós fossemos iguais, porém opostos.  

Acompanhando a linha de raciocínio da Kang, Taehyung riu. 

— É, você tem razão. 


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Notas finais do capítulo

E então, o que acharam? Ainda não acredito que essa é a última vez que perguntarei isso nessa história!

A segunda parte do capítulo é, na verdade, um pequeno epílogo. Espero que tenham gostado, de verdade, e que eu tenha conseguido retribuir à altura todo o carinho que recebi através dessa história. Eu poderia agradecer aqui pelas várias visualizações, comentários ou recomendações, mas o que eu sou mais grata mesmo é pelo apoio e incentivo de cada um de vocês. Se eu sigo escrevendo, é por causa dos meus leitores ♥
Enfim, espero que possamos continuar nos encontrando por aí. Sentirei saudades dessa história e de vocês, então espero que não se esqueçam da autora que tanto os fez sofrer kkkkk.
É isso.

Até ♥