Iguais, porém opostos escrita por Cellis


Capítulo 16
Como fugir e ficar


Notas iniciais do capítulo

Olha eu desviando das pedradas por ter demorado meio século para aparecer.
Dessa vez não foi culpa minha, eu juro! Meu velho notebook estava no concerto e, como ele é o único jeito que eu tenho para postar, tive que adiar esse capítulo.
Mas cá estamos, espero que sem ressentimentos kkkk.

Boa leitura ♥



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/754564/chapter/16

Kang Bo Ra conseguia contar nos dedos de apenas uma de suas mãos todos os motivos que lhe deixavam sem ar — e, apesar de soar como um fato pequeno demais para ser relevante, ela se orgulhava disso. Tratava-se das vezes quando jogava vôlei (um de seus esportes favoritos), quando decidia relembrar os tempos de suas aulas de dança, nas vezes em que a ideia de que algo grave poderia ter acontecido com sua avó cruzava sua mente e, por fim, quando Jimin resolvia brincar de segurar seu nariz. Na verdade, ainda lhe restava um dedo e ela se perguntava se algo mais poderia assustá-la ou surpreendê-la o suficiente para se juntar a lista ou, ainda, se Jimin teria criatividade suficiente para inventar algo novo apenas para incrementá-la.

Porém, depois de anos mantendo uma lista tão orgulhosamente pequena, ela tinha alcançado o limite de uma só mão. Na verdade, descobrira alguém capaz de fazê-lo, mesmo que ele não tivesse intenção ou consciência disso. Foi assim que, quando o ar começou a lhe escapar e seu coração parecia que não aguentaria mais bater tão rápido, Bo Ra deu-se conta de que havia ganhado um quinto motivo.

Kim Taehyung havia se juntado aos outros quatro, talvez ocupando o topo da lista.

A Kang ainda não conseguia acreditar no modo como seu corpo havia lhe traído, permitindo que Taehyung realizasse seu desejo sem encontrar nenhuma resistência. Antes mesmo dele pensar em acariciar seu rosto, Bo Ra já havia sido derrotada pelo olhar intenso e hipnotizante do garoto. Poderia passar uma vida naqueles olhos, por mais piegas que fosse admiti-lo.

Assim, quando o Kim se aproximou o suficiente para encostar seus lábios nos dela, ela sentiu-se atingida por um bombardeio repentino de sentimentos e emoções. Primeiro veio a surpresa e, mesmo que não tivesse resistido, a mesma fez com que ela levasse um par de segundos para correspondê-lo. Em seguida, uma eletricidade assustadoramente poderosa percorrendo todos os cantos de seu corpo, mas que era ainda mais poderosa nas áreas onde as mãos dele repousavam. E, por fim, a calmaria — era como observar o nascer do Sol em uma praia deserta em pleno domingo de manhã. Estranhou pensar assim, pois jamais imaginaria que seria possível associar a presença de Taehyung a algo bom e relaxante, e foi exatamente esse pensamento que fez com que ela levasse suas mãos até as dele sem nenhum impedimento. Segurou-as e, no ápice da falta de ar, precisou apertá-las com delicadeza para que Taehyung entendesse a mensagem.

Contra a vontade de ambos, eles acabaram por se separar. Ofegante, ainda mais pelo fluxo intenso de pensamentos e sentimentos correndo pelos mais diversos cantos de sua mente, Bo Ra ainda manteve as mãos sobre as dele, sentindo sob suas palmas os arranhões e outros ferimentos que haviam nos nós dos dedos dele.

Ambos ficaram alguns segundos em silêncio, apenas tentando captar tudo que aquele momento significava.

— O que nós estamos fazendo? — ela indagou primeiro, ainda de olhos fechados e sem soltá-lo.

Eles estavam tão próximos ao ponto de suas respirações se chocarem entre si. Como já havia aberto os olhos, Taehyung pegou-se observando-a imersa no que parecia ser um estado de negação e não conseguiu conter um pequeno sorriso quando o fez.

— Eu pensei que você já tivesse feito isso antes.

Por fim, apenas para encará-lo incrédula, Bo Ra abriu os olhos e fitou o Kim com suas orbes que lembravam um pedaço de chocolate artesanal. Além de Taehyung não levar jeito para o humor, o momento não poderia ser mais inapropriado. Quando ela soltou as mãos do garoto e se afastou dele, o Kim foi atingido por um frio repentino e percebeu que aliviar climas tensos infelizmente não era uma de suas habilidades — criá-los, talvez. Voltou com suas mãos machucadas para perto do próprio corpo, ainda que as mesmas estivessem tentadas a segurar Bo Ra pelo resto da noite, e a fitou com toda a sinceridade que conseguiu encontrar dentro de si.

— Bo Ra. — ele iniciou, apenas para arrepender-se por todas as vezes que poderia ter pronunciado aquele nome, mas, ao invés disso, optou com desdém pelo sobrenome dela. — Eu estou confuso também. Com medo. Contudo, seria hipócrita dizer que nada mudou entre a gente...

Tudo mudou, Taehyung. — interrompeu antes que ele pudesse concluir sua ideia. — Eu, minha visão das coisas ao meu redor... até mesmo você.

Ela simplesmente não soube mais o que dizer. Suas palavras pareciam vazias e insuficientes demais para a enxurrada de emoções que sentia e de pensamentos que cruzavam sua mente. Por um momento, Taehyung quis desesperadamente alcançar a mão da Kang e acalmá-la, dizer em alto e bom som que sentia que tudo ficaria bem, desde que eles pudessem contar um com o outro — porém, não conseguiu fazê-lo. Apesar de desejar uma drástica mudança, de querer permitir-se sentir todos os bons sentimentos que nunca conhecera na vida, não conseguiria fazer isso com apenas um estalar de dedos e tinha plena consciência disso. Não é possível transformar uma estrada sinuosa e abandonada em algo minimamente transitável da noite para o dia.

As palavras de Yoongi tinham sido um começo, mas estavam longe de ser toda a reconstrução. Além disso, aquelas verdades ditas com tanto rancor ainda eram recentes e doloridas demais para já terem sido digeridas.

Era como se Taehyung estivesse preso em uma enorme e acumulativa bola de neve que o impedia de gritar por ajuda.

— Eu tenho que ir. — ela afirmou, quebrando o tenso silêncio que havia se instaurado entre os dois. Não era exatamente o que queria dizer, mas sentia que era o que precisava naquele momento. — Minha avó deve estar preocupada comigo.

Sem esperar por uma resposta, Bo Ra rapidamente colocou-se de pé. Taehyung a assistia com os olhos perdidos na escuridão da noite e um nó na garganta, e os olhares deles se cruzaram durante uma fração de segundos antes dela virar-se para seguir na direção oposta a da dele. Ela estava indo embora e o fato daquela ação poder, futuramente, ganhar o sentido literal da palavra, o angustiou o suficiente para fazerem as palavras escaparem de sua boca.

— Bo Ra. — ele a chamou novamente, dessa vez como uma súplica. Ela parou de andar, mas manteve-se de costas para ele. Se virasse, não conseguiria ir embora. — Só não fuja disso. Por favor.

Se aquela frase tivesse sido dita há algumas semanas, obviamente em um contexto diferente, a Kang teria virado-se para ele com raiva e, imponente, lhe perguntado quando ela havia fugido de algo. Ela teria a coragem de olhá-lo com sangue nos olhos e revidado suas insinuações por toda a madrugada, mas algumas semanas era tempo demais. Por isso, com o peito apertado e cravando com força as unhas contra as próprias palmas das mãos, ela ordenou que suas pernas continuassem o caminho que lhes havia sido designado. Em silêncio, como se não tivesse acabado de ouvir um pedido para que ficasse, ela resolveu ir embora.

Mesmo que momentaneamente, fugiu.

Não tornou a fitar Taehyung, pois sabia que não conseguiria fechar a porta da frente da casa anexa se o fizesse. Por algum motivo, seu corpo implorava para que ela voltasse para a beira da piscina, ao lado dele, mas sua mente gritava por um tempo sozinha para se perder nos próprios pensamentos, como tanto fazia.

A casa estava imersa na escuridão, um sinal claro de que sua avó estaria dormindo. A passos lentos e que gostariam de correr de volta por aquele gramado, ela caminhou até o sofá e sentou-se sozinha, acompanhada apenas por um pequeno feixe da luz do luar que burlava a cortina da janela de vidro e iluminava o seu colo. Abraçou os próprios joelhos, como se eles pudessem lhe oferecer algum conforto, e deixou sua mente tomar conta de todo o restante.

O Kim Taehyung que odiava, ela havia pensado há alguns dias. Um verbo forte, porém no passado, o que indicava inconscientemente que aquela ação já não era mais colocada em prática. Então, se não odiava o Kim, o que diabos estaria sentindo por ele? Por que havia toda aquela calmaria inexplicável que seus lábios lhe ofereciam e seus olhos só conseguiam fitá-lo, como se não houvesse mais nada no mundo que pudesse atrapalhá-los?

Na verdade, ao mesmo tempo que havia tudo e todos para atrapalhá-los, não havia nada e nem ninguém. Independente do caminho que escolhessem seguir, dependeria somente dos dois fazê-lo — e era justamente nesse ponto que se encontrava o problema. Quem claramente os impedia eram eles mesmos, o que resultava num ciclo ridiculamente vicioso.

Céus, como ela estava confusa e praguejando mentalmente o fato de se sentir como uma garota de dez anos.

Quis fugir de si mesma. Da própria mente, se fosse possível, mas estava cansada de fugir. Tinha lhe doído muito mais dar as costas para Taehyung do que todas as brigas e discussões que já tiveram; o que lhe parecia um absurdo, porém extremamente compreensível. Era como se ela estivesse divida ao meio, cada metade com pensamentos assustadoramente opostos, porém simplesmente iguais.

Então, um pensamento lhe ocorreu. Se ela se sentia daquele jeito, então como estaria o Kim? Ele havia saído nitidamente preocupado pela manhã e retornara acabado — em todos os possíveis sentidos da palavra — o que significava que algo de ruim havia lhe acontecido. Quando o fato de que ela sequer sabia o que havia acontecido lhe atingiu, o conforto de seus joelhos foi inútil perante ao aperto que sentiu no peito. Nunca vira Taehyung tão frágil em toda a sua vida e, na primeira oportunidade, havia o deixado sozinho.

Levantou-se, um impulso repentino que chegou a escurecer suas vistas por um momento. Por que diabos estava fugindo? Não deveria lhe interessar o fato de que havia muito em jogo naquele momento, pois aquele era um pensamento egoísta e sem nenhuma empatia — assim, sua mente passou em só conseguir focar no quão perdido o Kim deveria estar.

O caminho até a porta da frente nunca lhe pareceu tão curto e, logo, ela estava girando a maçaneta. Escancarou o enorme pedaço de madeira e a primeira coisa que viu foi a escuridão da meia-noite.

— Taehyung. — o nome escapou por entre seus lábios, enquanto os olhos preocupados corriam na direção da piscina.

Vazia.

Ele não estava mais lá e, de repente, toda a súbita adrenalina que ela havia produzido lhe pareceu inútil. Chegou a dar um passo para frente, mas deteve-se antes mesmo de estar fora de casa. Iria atrás de Taehyung e, depois, o que lhe diria? Não conseguia sequer organizar seus pensamentos, quem dirá expressá-los e explicá-los. Precisava de um tempo sozinha e, talvez, ele também.

Fugir de si mesmo.

Bo Ra tornou a fechar a porta, ainda que sua mente estivesse perambulando em algum lugar daquela mansão. Respirou fundo e, ao expirar, desejou que todo o peso que sentia em seu tronco pudesse deixá-lo junto com o ar.

— O que está fazendo nesse escuro, minha neta?

A voz da Kang mais velha assustou Bo Ra, que não soube dizer quando a avó havia descido as escadas e ascendido a luz da sala. Parada no meio do cômodo, ela usava um pijama confortável e encarava a neta com certa preocupação. Bo Ra permaneceu em silêncio por alguns segundos, perguntando-se por onde deveria começar a responder a pergunta da mais velha.

Por fim, acabou decidindo.

— Nada demais, vovó.

Foi o que disse, mas, por dentro, era impossível calar a resposta que sua mente repetia apenas com o intuito de fazer com que ela se sentisse culpada: estava fugindo.

 

***

 

Ao contrário do sábado repleto de emoções capazes de até mesmo deixá-lo sem palavras, o domingo de Taehyung não poderia ter sido mais angustiantemente silencioso. Os pensamentos corriam por todos os cantos possíveis de sua mente, o que mantivera o Kim acordado tempo o suficiente para assistir ao nascer do Sol pela janela de seu quarto. Era comum passar as madrugadas acordado, mas eram raras as vezes nas quais ele transformava sua insônia em uma oportunidade para ver o amanhecer. Os tons de amarelo e laranja não costumavam chamar sua atenção, contudo, desde algumas semanas atrás, ele vinha apreciando mais esse presente que a natureza fazia o favor de lhe oferecer.

Assim como passara a apreciar mais algumas outras coisas.

O primeiro pensamento do seu dia fora ela, um fato ridiculamente clichê, porém que retratava o mais puro caos que estava sua mente. O Sol despontava por trás da casa anexa e, observando a janela que ele sabia que pertencia ao quarto de Bo Ra, ele se perguntava se ela conseguia dormir com tranquilidade. Lembrou-se de algumas poucas horas atrás, quando tentou ter raiva da garota. O antigo Kim Taehyung teria ficado furioso por ter sido deixado para trás, por não ter recebido a resposta que acreditava merecer por parte da Kang, mas aquele mesmo Kim era egoísta e incompreensível. Infelizmente, Bo Ra tinha os seus motivos para ter fugido, e ele entendia isso. Descobrir todo aquele mar inexplorado de sentimentos não era em nada fácil para Taehyung, assim como ele sabia que era o mesmo para Bo Ra.

E fora justamente por isso que percebera que irritar-se com ela jamais funcionaria. Quando o Sol já ocupava seu devido lugar no céu, fazendo daquele domingo um dia quente e bonito, ele se sentiu angustiado. Não se arrependia do que fizera, contudo, a reação de Bo Ra o deixava inseguro. Bufou, frustrado, e praguejou-se mentalmente por estar pensando feito uma colegial dos doramas.

Lembrou-se do beijo. A sensação de ter Bo Ra em seus braços, o corpo quente dela aquecendo a alma gelada dele. Seus lábios eram macios e tinham gosto de paz, como se ela fosse um porto seguro que estivesse sempre pronto para abrigá-lo durante uma tempestade. Recordava-se de como suas mãos doíam na noite passada, mas, ao segurarem com delicadeza o rosto dela, tinham esquecido do quão violentas haviam sido com Yoongi algumas horas antes. Era como se Bo Ra fosse a única pessoa no mundo capaz de fazer de Taehyung um verdadeiro ser humano e, ainda fitando a janela fechada do quarto dela, ele se perguntou como ela conseguia simplesmente fazê-lo.

E grande parte do seu domingo consistiu naquilo. Ele revezava entre caminhar decidido até a porta do seu quarto — pronto para atravessar aquele gramado até ela — e parar com a mão na maçaneta fria, ou buscar em seu celular pelo contato de Bo Ra; o que acabava por ser inútil, tendo em vista o fato de que ele sempre bloqueava o aparelho e o lançava sobre a cama. A manhã se arrastou de tal modo que ele acabou pulando o café da manhã sem sequer perceber e, se uma das empregadas não tivesse batido em sua porta para avisar sobre o almoço, ele teria ignorado aquela refeição também.

Em algum momento do cair da tarde, seus pensamentos voltaram-se para Yoongi. Como estaria o mais velho? Apesar de tudo, Taehyung não conseguia impedir-se de fazer aquela pergunta. Não se preocupava com o físico do Min, até porque o mesmo já havia apanhado de jeitos bem piores em diversas ocasiões, mas sim em como ele realmente estaria. Não deveria ter bebido novamente, pois Yoon Hee não havia feito nenhum tipo de contato com o Kim, e ele esperava que seu hyung não tivesse feito nada pior também.

Mesmo que talvez fosse tarde demais para se preocupar com o mais velho pelos motivos certos, Taehyung estava cansado demais para repreender sua mente por fazê-lo.

 Sentiu que não tardaria em descobrir, pois já era segunda-feira de manhã. Depois de passar todo um domingo ansioso ao ponto de cogitar se não seria possível subir pelas paredes de seu quarto, o primeiro dia útil da semana havia chego sem o Sol radiante do dia anterior. Uma brisa gélida corria por entre os cabelos cinzas do Kim, mas não era como se ele se incomodasse com o frio. Naquela manhã, já cansado de simplesmente esperar, ele decidiu procurar Bo Ra. Não tinha planejado o que dizer a ela — na verdade, sequer tinha uma ideia — mas não conseguiria mais não dizer nada. Se fosse o caso, ele apenas ofereceria para levá-la para o colégio e no caminho pensaria em algo.

Bateu na porta da frente da casa anexa, decidido. Um par de minutos se passaram sem que ninguém viesse atendê-lo, até ele ouvir a maçaneta sendo girada. Sentiu-se repentinamente nervoso, mas não estava disposto a recuar naquele momento.

Queria ficar, e ficaria por ela.

Então, a porta da frente foi aberta e um balde de água fria imaginário lançado por todo o uniforme impecável do Kim. A senhora Kang o encarava com um sorriso doce no rosto e, abraçada ao próprio robe, pareceu surpresa ao vê-lo.

— Bom dia, Taehyung. — ela disse, simpática. — O que faz aqui?

— Bom dia, senhora Kang. Fico feliz em ver que está bem. — Taehyung lhe devolveu a simpatia, pois realmente gostava da mais velha. Antes de continuar, fitou a sala da casa por cima da cabeça dela, mas não encontrou quem procurava. — Eu vim pela Bo Ra.

A Kang mais velha, por um momento, franziu o cenho. Encarou Taehyung com os olhos de quem já era experiente demais para não notar o sutil nervosismo no tom de voz do garoto e, ao entender sobre o que sua visita realmente se tratava, voltou a exibir um largo e doce sorriso. Contudo, por conta da resposta que estava prestes a dar a ele, sentiu também uma pitada de pena.

— Ela não está, querido.  

E lá estava o segundo balde de água fria do dia, ainda que aquele fosse apenas o começo do mesmo. Teria Bo Ra saído muito mais cedo de casa, apenas para evitá-lo?

— Não está? — insistiu.

— Não. — ela tornou a responder. — Ela saiu mais cedo para encontrar o Jimin. Acho que ele estava inseguro em voltar para o colégio depois do que aconteceu, então ela se ofereceu para ir com ele.

Taehyung respirou fundo, sentindo-se aliviado e chateado ao mesmo tempo. Ainda que Bo Ra não tivesse o procurado pelo resto do final de semana, o fato dela ter saído extremamente cedo de casa não tinha haver com ele — ou pelo menos era o que ele acreditava — mas, por outro lado, sentiu inveja diante da sua relação com Jimin. Quando um precisava do outro, eles não hesitavam em correr até onde quer que estivessem ou oferecer abrigo mesmo sem saber sobre o que se tratava o problema do outro. Fora assim quando Bo Ra não quisera retornar para casa depois de descobrir sobre seus pais e também quando Jimin fora agredido covardemente naquele beco. Os dois pareciam ter algum tipo de elo inquebrável entre ambos, cuja manutenção era feita pela mais pura e sincera lealdade que mantinham.

O Kim perguntou-se como seria se conseguisse ser como Jimin. Se ele fosse capaz de oferecer a Bo Ra um abrigo estável ou um abraço confortável, ela não teria fugido. Ela teria ficado, pois ele teria tudo que ela precisava. Mas ele não era Jimin e também não pretendia ser, apesar de já ter decidido que tentaria descobrir como se transformar num porto seguro capaz de abrigá-la sempre que ela necessitasse ou simplesmente quisesse.

Pediu desculpas à senhora Kang pelo incomodo e despediu-se da mesma, retornando a passos levemente frustrado para a fachada da própria casa. Como de costume, seu motorista lhe esperava pontualmente. Passara por todo o trajeto até o colégio em silêncio e, quando desembarcou diante dos portões do Kobe Suwon, agradeceu ao motorista sem sequer dar-se conta disso. Nunca dizia nada ao descer ou entrar no carro, o que pegou o homem de surpresa de um modo que ele não soube responder um simples de nada.

Os corredores do colégio já estavam praticamente vazios, pois o sinal da primeira aula estava prestes a soar. Os olhos de Taehyung nunca fitavam mais do que o caminho até a cadeira onde ele costumava sentar, contudo, quando entrou na sala de aula naquele dia, ele não conseguiu impedi-los de imediatamente procurar pela figura de Bo Ra.

E lá estava ela, exatamente como ele esperava. Sentada logo atrás de Jimin, quase no final da fileira do canto direito, Bo Ra prestava uma atenção impecável no que o melhor amigo dizia. Jimin não tinha mais marcas físicas da agressão que sofrera, ou pelo menos não aparentava tê-las, mas aquela seria a última coisa na qual Taehyung teria reparado se sequer tivesse olhado para o garoto. Seus olhos pertenciam somente à figura de Bo Ra, ao ponto de fazê-lo parar na entrada da sala e permanecer observando-a descaradamente, ainda que inconsciente disso. A Kang estava exatamente como sempre estivera, com os cabelos penteados do mesmo jeito e o uniforme bem passado, mas, por algum motivo, ela simplesmente não parecia mais a mesma para Taehyung. Ele não sabia se a mudança estava nela ou nele, ou ainda em ambos, mas também não se importou com isso — só quis continuar a observando como se não a visse há anos, perdendo a respiração como se estivesse se afogando prazerosamente.

Até, de repente, um pigarreio atrás de si roubar-lhe a atenção que ele cuidadosamente dedicava à Kang.

— Pretende fazer a segurança da porta por hoje, Sr. Kim?

O professor Do não era como a grande maioria dos funcionários daquele colégio, fosse pela sua aparência um tanto exótica ou pelo modo como tratava os alunos. Ele claramente não dava a mínima para de quem aqueles adolescentes eram filhos ou herdeiros, pois seu papel não era ser o contador de nenhum deles, mas sim tentar trazer um pouco da vida real para aquelas mentes nascidas e criadas em bolhas de ouro. Por isso, quando interrompia o momento torpe de Taehyung e o encarava como se o aluno não chegasse ao seus pés, ele não se importava se estaria irritando o Kim. Sem dar ao mais novo a chance de dizer algo, ele adentrou na sala de aula e pediu que Taehyung fechasse a porta depois que resolvesse entrar também.

— Bom dia, alunos. — o professor iniciou, sem muita cerimônia ou simpatia. Enquanto isso, Taehyung se direcionava até sua cadeira, que o esperava tão vazia quanto sempre. Além dele, outros alunos também se ajeitavam para ouvir o professor. — Espero que vocês tenham se desdobrado em dois nesse final de semana para fazer o trabalho que eu pedi semana passada.

Instintivamente, enquanto se sentava, os olhos de Taehyung foram até Bo Ra — e, para a sua surpresa, os dela estavam sobre ele. Os olhares dos dois se cruzaram por um breve instante, até Bo Ra ser a primeira a quebrar o contato visual.

Um murmúrio coletivo havia se formado na turma, o que motivava ainda mais o professor. O homem gostava de ver que tinha incomodado os adolescentes, pois aquilo significava que ele estava chegando a algum lugar útil. Os alunos começaram a revirar suas mochilas e pastas e, de dentro das mesmas, saíam blocos e mais blocos de folhas brancas. Nelas, os tais trabalhos estavam impressos.

— Que bom que vocês se dedicaram. — disse Do, recostando-se na própria mesa. — Pois bem, eu menti para vocês. Não comecem as reclamações antes de eu terminar, por favor. — pausou, esperando para ver se os alunos realmente fariam silêncio. Quando as expressões curiosas e desgostosas não se pronunciaram, ele resolveu continuar. — Eu disse que queria esses trabalhos na minha mesa, mas, na verdade, não é para mim que vocês os entregarão. Quero que vocês se organizem de frente para as suas respectivas duplas e, seguida, entreguem os trabalhos para a sua.

Como o professor Do já esperava, diversos protestos foram feitos. Dentre eles, uma garota de cabelos alaranjados colocou-se de pé como se tivesse acabado de se sentar sobre um prego.

— Então como o senhor pretende dar as notas? — indagou, cruzando os braços.

O professor riu.

— Eu não darei nota alguma. Nada mais justo do que vocês darem as notas para os trabalhos escritos sobre vocês, oras.

— Mas... — a aluna voltou a protestar, descrente. — E se a nota for baixa?

Extremamente satisfeito com aquelas reações, o professor endireitou-se sobre os próprios pés. Encarou primeiro a aluna e, em seguida, o restante da turma.

— Elas não serão se estiverem dispostos a entender o que foi escrito sobre vocês. — respondeu, ainda rindo. — E, claro, se levarem em consideração que a sua dupla sempre pode lhe dar uma nota ainda pior.

Na verdade, o objetivo do professor Do era simples e direto: ensinar os alunos a engolirem o próprio orgulho. Eles teriam de escutar seus defeitos e qualidades em silêncio e ainda premiar a pessoa que tinha os transcrito, pois seus próprios interesses também estavam em jogo. No fim das contas, era sobre aquilo que se tratava a vida — engolir sapos, quando necessário — e era, também, justamente o que os alunos claramente não haviam aprendido a fazer. Assim, depois de muitos outros protestos ignorados, os jovens não viram outra alternativa a não ser simplesmente fazer o que lhes fora ordenado. Cadeiras começaram a ser arrastadas sem muito prazer e as duplas foram formadas, cada aluno de frente para a sua.

Taehyung estava satisfeito por ter conseguido controlar o suor em suas mãos, pois, caso contrário, teria ensopado o próprio trabalho. Como Bo Ra não havia feito menção de se mover, ele caminhou até a cadeira de Jimin (que estava vazia, já que o garoto sem dupla havia ido até o professor para conversar com o mesmo) e a girou até que estivesse completamente de frente para a da Kang. Ela mantinha os olhos fixos no pouco espaço que havia entre eles enquanto lhe entregava o trabalho que fizera, ao passo que eles mantinha os olhos colados nos movimentos dela.

E, assim, eles entregaram um ao outro tudo aquilo que se passava em suas mentes.

Em silêncio, Taehyung começou a ler as letras pretas e bem formatadas primeiro. Sentia-se ansioso, pois não fazia ideia do que poderia encontrar naquelas linhas. O primeiro tópico era sobre o quão adaptável ele era, como, na verdade, ela já havia comentado que o faria. Nele, Bo Ra discorria como acreditava que aquela era uma característica essencial para manter a sobrevivência no mundo em que viviam, e como era raro encontrar pessoas com aquela habilidade.

Ele respirou fundo depois dos primeiros parágrafos. Era como se estivesse realmente lendo a mente de Bo Ra, o que era o que ele mais desejava ser capaz de fazer naquele momento, mas também o que mais lhe assustava.

O segundo tópico tratava da capacidade de observação do Kim. Bo Ra havia comentado como aquilo poderia ser uma dádiva, assim como uma auto sabotagem. Por ser tão observador, Taehyung raramente confiava em alguém e, por consequência, vivia uma vida solitária — e, apesar de aquelas serem as palavras dela, ele sabia que aquela era a mais pura verdade. O Kim sentiu-se incomodado com aquelas palavras e com as outras que seguiam a explicação, mas não porque não aceitava o que estava escrito e sim por ter tão explícito algo que, no seu íntimo, ele concordava.

Por fim, algo que realmente o surpreendeu. Imprevisível. A Kang narrou como, apesar de conhecer Taehyung tão bem, de saber todas as verdades e mentiras sobre ele e ainda onde ele as escondia, nunca poderia ter certeza do que ele estava prestes a fazer. Não conseguia ler sua mente. Ao contrário do que ele imaginava, que Bo Ra poderia dizer qualquer passo dele antes mesmo dele pensar em dá-lo, a garota constantemente se surpreendia com as ações do Kim, fossem elas boas ou ruins. Ela, na verdade, não acreditava que ele fosse uma pessoa ruim, pois não conseguia definir quem ele era.

Bo Ra tivera dificuldade naquele último tópico. O escrevera durante aquele domingo angustiante, enquanto tentava desvendar as facetas de Kim Taehyung. Queria entendê-lo, mas, antes disso, ele mesmo precisava fazê-lo — e fora com essa frase que encerrara seu trabalho.

Taehyung encarou a última linha por mais alguns segundos, em silêncio. Por fim, quando ergueu a cabeça, encontrou os olhos de Bo Ra sobre si. Ela parecia ansiosa e não havia sequer começado a ler os papéis que tinha em mãos. Ao contrário dele, ela era extremamente fácil de ser lida. A preocupação em tê-lo afetado com suas palavras estava nítida em seus olhos.

Havia tanto para ser dito, mas nada que aquele momento permitisse. Taehyung queria empurrar aquelas cadeiras para longe e cobrir Bo Ra com seus braços, mas aquele ainda não era o momento.

Ele precisava que ela pudesse lê-lo primeiro.

— Sua vez. — ele disse, apontando para o trabalho que havia escrito.

Aqueles papéis eram a melhor chance de Taehyung de mostrar para Bo Ra quem ele queria ser, já que também não sabia dizer quem realmente era, e com eles pedir que ela ficasse ao seu lado para ajudá-lo.

Sua melhor chance para que ela não fugisse.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

E então, o que acharam? Esse capítulo não foi muito de diálogos, mas sim de muitos pensamentos confusos e mostrando os pontos de vista do nosso casal. Gostaram dele assim?

Até a próxima ♥