Iguais, porém opostos escrita por Cellis


Capítulo 13
Como preto e branco


Notas iniciais do capítulo

Sim, eu voltei e rápido! Estava realmente com saudades.

Boa leitura.



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Muitas pessoas, ao longo de suas vidas, tentam ensinar às outras o que é certo e o que é errado — porém, dificilmente também se esforçam para aprendê-los. O ser humano possui uma vontade quase que incontrolável de mostrar-se detentor da moral, daquilo que é correto e plausível. Aqueles que, com o passar dos anos, tornam-se pais e mães, acreditam que a melhor maneira de criar seus filhos, sua descendência e marca de passagem pela Terra, é de acordo com os seus próprios e melhores princípios.

Contudo, quem lhes disse que aqueles são os corretos?

Ninguém havia dito nada a Kim Taehyung. O garoto não se recordava de ouvir a voz aguda de sua mãe lhe dizendo que era feio torcer o nariz para os amiguinhos ou, ainda, do grave timbre de seu pai lhe mostrando como é errado passar por cima de algumas coisas (e pessoas), importantes ou não, apenas para alcançar seus objetivos. Ninguém havia lhe ensinado absolutamente nada. E, ao tornar-se uma pessoa tão fechada e rodeada por muralhas, ele também deixara de abrir brechas para qualquer um que se dispusesse a apontá-lo o melhor caminho a seguir, ou pelo menos aquele que não o mantivesse acordado por toda a madrugada como consequência.

Agora, recostado no tronco da mais antiga árvore do pátio do Kobe Suwon e cabulando aula pela primeira vez em toda a sua vida, ele imaginava o que teria sido diferente se ele soubesse diferenciar o preto do branco. Se não vivesse em um mundo cinza, onde tudo era possível e estava exatamente ao alcance do estalar dos seus dedos, talvez ele tivesse conseguido levar uma vida normal. Teria amizades sinceras e divertidas e, quem sabe, relações interpessoais mais profundas do que sorrisos falsos e olhares ameaçadores de sua parte.

Riu de si próprio diante de tal pensamento, as costas sendo pinicadas pela madeira áspera e velha do tronco ao longo do processo. Havia virado a noite focado em algo e, agora, sua mente sonolenta começava a trair sua realidade. Levantara-se cedo e fora o primeiro aluno a chegar no colégio (antes mesmo de Jungkook, o que era uma façanha), seguindo direto para a diretoria.

— Kim Taehyung? O que faz aqui tão cedo?

A diretora espantou-se ao vê-lo, pois o Kim raramente era ou arrumava motivos para ir até a sala da mulher; porém, seus olhos dobraram de tamanho quando o garoto lhe respondera. Contara o necessário sobre a noite passada e, com as filmagens da única câmera de segurança do beco onde tudo acontecera em mãos, pode provar que dizia a verdade. Quis agradecer mentalmente ao seu motorista por ter cumprido a primeira ordem que o garoto lhe dera pela manhã e ido pedir o vídeo ao dono da câmera, mas, pela primeira vez, percebeu que sequer sabia o seu nome. E ele já trabalhava para a família Kim fazia um par de anos.

A mulher massageou as têmporas em um nítido sinal de estresse.

— Isso é extremamente sério, mas ainda não é motivo para punição máxima.

Ela parecia infeliz em estar dizendo aquilo, porém não era como se Taehyung não a entendesse. Sabia que, por não ter acontecido dos muros do colégio para dentro, o regulamento interno do Kobe Suwon trataria a agressão da noite passada como não sendo o suficiente para acarretar na expulsão de Bo Gum. Além disso, o atleta era filho de um poderoso magnata da indústria automobilística. Por um momento, ainda que sem se dar conta disso, Taehyung ocupou o frustrante e frágil papel daqueles que não tinham voz ou vez contra ele próprio.

Então, ele foi dispensado pela diretora. Sem saber direito o que fazer a seguir, sentou-se na sala de espera da secretaria, mesmo que algumas funcionárias o olhassem curiosas e tentando entender por qual motivo ele não estava na sala de aula — loucas para questioná-lo, porém com juízo o suficiente para não o fazer. Esperou. Cerca de meia hora depois, Bo Gum adentrou a sala onde Taehyung estivera há pouco tempo acompanhado de um casal. Seus pais, o outro pressupôs. Algum longo tempo depois, a mulher deixou o escritório em prantos, ao passo que o homem parecia extremamente irritado. Quando o olhar quebrantado de Bo Gum encontrou o de Taehyung, o último viu o atleta tremer da cabeça aos pés.

Medo.

Tudo estava aparentemente resolvido. Bo Gum provavelmente fora suspenso por duas semanas, talvez alguns dias a menos, e aprenderia a lição fosse por bem ou por mal. Hoseok também não havia aparecido no colégio, então, Taehyung conseguira resolver tudo conforme planejava e tinha mantido a promessa que fizera a Bo Ra.

Então, por que diabos ele ainda estava sentado sob a sombra daquela árvore velha, incapaz de adentrar no corredor do colégio e deparar-se com a própria imagem em qualquer vidro que pudesse refleti-la?

A resposta, por mais fantástico que lhe parecesse, estava no olhar de Bo Gum. Temor e mágoa foram as únicas coisas que ele conseguira ver em suas orbes castanhas e, ainda que acreditasse que o atleta tivera apenas o que merecera, o que lhe dava tanta certeza de que havia feito o certo? A maioria das pessoas conseguia sentir uma tênue linha entre o correto e o repudiável, contudo, Taehyung nunca havia se deparado com a sua — tudo estava certo, desde que fosse para satisfazê-lo.

Quando uma folha seca despencou elegantemente do galho da árvore até o seu tênis cinza e impecavelmente limpo, ele se perguntou quantos Bo Gum's já não havia encontrado em sua vida. Quantas vezes fora o juiz que aplicava a alguém uma sentença, porém sem sequer estudar o caso afundo?

O sinal do intervalo da manhã soou estridente pelo pátio, seguido pela onda apressada e falante de alunos. Taehyung moveu a cabeça para encarar a multidão, o pescoço dolorido por, talvez, estar movimentando os primeiros músculos e ossos depois de um longo período de tempo. Perguntou-se quantos daqueles alunos achariam suas ações corretas e admiráveis, indo de encontro àqueles que as repudiariam.

Como diferenciar o preto do branco?

— Ultimamente eu tenho feito e presenciado muitas coisas das quais jamais imaginei, mas assistir Kim Taehyung matando aula estava na minha lista de acontecimentos impossíveis.

Aquela voz era conhecida demais para que Taehyung simplesmente a ignorasse; e, talvez, até mesmo inconscientemente esperada demais. O garoto virou-se na direção da voz no mesmo instante em que sua dona sentava-se ao seu lado sem aparentar preocupações, ainda que Taehyung soubesse que haviam muitas por debaixo daquele olhar que viajava de um aluno para o outro.

Bo Ra esticou as pernas sobre o gramado aparado, sentindo como se a grama abraçasse sua pele desnuda confortavelmente.

— Eu gosto de observar as pessoas, especialmente quando preciso olhar para mim mesma. — ela afirmou num tom vago. De repente, fitou o Kim. — E o que lhe traz aqui?

Não era como se eles fossem amigos há anos e estivessem acostumados a conversar livremente daquele modo, mas também não era como se Bo Ra se importasse com isso. Havia abandonado muitos dos seus preconceitos e ainda alguns dos seus princípios e, enquanto buscava novos, Taehyung mostrou-se alguém de convivência possível.

Ele a encarou de volta.

— O mesmo. — respondeu, logo voltando sua atenção para os estudantes afobados com alguns minutos de liberdade.

Na verdade, sua atenção havia sido completamente roubada logo pelas primeiras palavras de Bo Ra, mas ele jamais daria o braço a torcer ao ponto de admitir tal fato. Depois de alguns segundos em silêncio, Bo Ra retornou a falar, ainda que não tivesse certeza do porquê de estar o fazendo.

— Eu e o Jimin conversamos hoje de manhã. Ele me contou sobre o relacionamento dele com o Jungkook e sobre como ainda não estava pronto para voltar ao colégio. — pausou, fitando os sapatos lustrados. — Sabe, eu, que sempre prezo pela verdade, hoje senti um pouco de inveja de como ele conseguiu ser tão sincero e aberto comigo. Isso me fez questionar se eu realmente ajo conforme falo, o que me trouxe até aqui. —ela suspirou e, em seguida, não conteve uma risada embasbacada diante da ironia do destino. — É muito hipócrita da minha parte querer, depois de todo o nosso histórico de antipatia mútua, desabafar agora, não acha?

Taehyung a acompanhou em sua risada, o que soou extremamente novo aos ouvidos da Kang e capturou seu olhar novamente.

— Estranhamente, não acho. — admitiu. Era engraçado como, depois de contar a ela qualquer verdade, por mais simples e corriqueira que fosse, ele sentia uma enorme necessidade de continuar o fazendo. — Eu terminei o trabalho do Sr. Do. — aquele era o algo que levara a noite inteira fazendo. — Se lhe serve de alguma coisa saber disso, a primeira característica sua que eu citei foi a sua sinceridade.

Bo Ra precisou de alguns segundos em silêncio para processar aquela informação. Nem a anos luz de distância ou antecedência, poderia esperar por aquilo. Taehyung priorizava a sua sinceridade. O mesmo Taehyung que, há pouquíssimo tempo, aprontava com ela o que bem queria para vingar o que ouvia de sua língua afiada. O Kim frio, calculista e mentiroso.

O Kim Taehyung que odiava.

Sem perceber ou, ainda, se importar, ele começara a ser influenciado pela verdade excessiva de Bo Ra. Taehyung havia chegado a um ponto no qual, ao fitar a expressão surpresa de Bo Ra, achara graça.

— Você tem o dobro da coragem de falar que imagina, Kang Bo Ra. — afirmou, conforme ela encolhia os ombros. — Se o que lhe perturba é achar que não é sincera o suficiente, então não se preocupe com isso.

Na verdade, Taehyung tinha o hábito de apreciar pessoas com a capacidade de dizer sempre a verdade. Considerava aquilo uma habilidade, quase um super poder. Agora, finalmente descobrindo a intensidade desse poder em Bo Ra, ele havia passado de adolescente incomodado a admirador sem nenhuma vergonha. Talvez, tê-la por perto fizesse parte da mesma estratégia que usava para manter sua amizade com Yoongi e o seu sarcasmo moldado em sinceridade.

Se os oposto se atraiam, o preto em Taehyung esforçava-se para trazer para mais perto o branco dela.

— O trabalho é só para semana que vem. — foi o que ela disse, depois de alguns segundos. — Você está adiantado.

— Eu sei. — ele respondeu, no mesmo instante. — Mas quis terminá-lo antes de perder a coragem ou mudar de ideia. Acho que escolhi as características certas e não gostaria de mudá-las.

Silêncio, mais uma vez. Já fazia algum tempo desde a última vez em que Bo Ra não soubera reagir a Kim Taehyung e acreditava que, por isso, estava desacostumada ao modo aleatório que sua personalidade mudava. Era como se o Taehyung que estava conhecendo não era o mesmo que convivera durante toda a sua vida, que também era diferente daquele que mostrava-se no colégio, do outro que aparecia para os seus pais, daquele que acompanhava a irmã mais velha e mais tantos outros. Havia versões e mais versões do garoto e, cada vez que a Kang o escavava, encontrava uma nova.

Adaptável. — a palavra deixou os lábios de Bo Ra num tom calmo e conclusivo, o que atraiu a atenção do Kim. — Essa será a primeira característica sua que eu citarei. Eu costumava achar que era um defeito, mas hoje não a vejo mais assim. É como se o mundo fosse preto e branco e você, sendo cinza, conseguisse sobreviver em qualquer parte dele.

Os olhos de Taehyung se arregalaram, formando duas grandes orbes castanhas. Era como se ela lesse os seus pensamentos. A diferença era que, o que ele considerava ser um fator que o excluía e não permitia seu encaixe numa sociedade normal e saudável, ela tinha como uma qualidade. Era como se ter a personalidade maleável de Taehyung fosse um fator essencial de sobrevivência e, por esse ser o pensamento de Bo Ra, ele se surpreendeu.

No fim das contas, não existia certo ou errado. Era tudo sobre saber viver nas áreas cinzas.

— Obrigado.

As palavras foram ditas pelo Kim num impulso que seus neurônios não conseguiram controlar; contudo, sua mente não se arrependeu. Ele a encarava como quem sabia que aquela era a primeira vez na vida que ele a agradecia por alguma coisa, ao passo que os olhos dela capturavam aquele momento um tanto embasbacados. Nenhum dos dois sabia ao certo o porquê daquele agradecimento, mas ambos se contentaram com o que ele significava para cada um.

Por fim, Taehyung descobriu que não precisava que alguém lhe dissesse o que era certo ou errado. Mesmo que seguisse por alguns caminhos tortos, ele sentiu a certeza de que, finalmente, estava dando o melhor de si e era somente isso que importava.

— Você é Kang Bo Ra, não é?

A voz feminina veio para estragar o confortável silêncio que embalava os pensamentos dos dois, atraindo a atenção de ambos. Uma garota alta e de cabelos curtos extremamente negros fazia sombra sobre as pernas de Bo Ra e, de frente para a mesma, a encarava com uma expressão que não aparentava segundas intenções. Ela parecia ser alguns poucos anos mais jovem que os dois e, quando Bo Ra confirmou sua identidade com um acenar positivo de cabeça, a garota pigarreou antes de se pronunciar novamente.

— Estão lhe chamando na secretaria. Parece que você recebeu uma ligação importante, ou algo do tipo. — a menina disse. — Só sei que era sobre a sua avó.

A reação esperada de qualquer um seria que suas pernas se levantassem num único impulso e que ela atravessasse o colégio apressadamente na direção do prédio da secretaria, contudo, ocorreu exatamente o contrário com Bo Ra: ela petrificou onde estava. Era como estar vivendo o pior dos seus sonhos e, pelo tom de voz cuidadoso da mensageira, recebendo a pior das notícias; ainda que ela não pudesse fazer ideia sobre o que a tal ligação realmente era. A menina se afastou, deixando-a sozinha com sua imaginação, infelizmente para aquele momento, fértil demais.

Não, ela não estava sozinha.

 Uma sombra voltou a cobrir Bo Ra, desta vez por completo. Uma mão estendeu-se na sua direção com seus dedos compridos e bem desenhados e, com um olhar tranquilizante, era Taehyung quem a oferecia.

— Vamos. — ele insistiu, oferecendo o apoio que conseguia oferecer.

E aquele que faltava para Bo Ra recobrar a consciência.

A palma da mão de Taehyung estava gelada, mas isso não incomodou o calor que corria pela a de Bo Ra. Ela firmou os pés no chão e respirou fundo.

Optou por não pensar negativo, ainda que isso não fosse suficiente para mudar algo que provavelmente já teria acontecido.

 

***

 

O branco dos corredores do hospital não era em nada convidativo, assim como o forte cheiro de materiais de limpeza e esterilização. No saguão da entrada havia uma extensa recepção de mármore, onde três mulheres com jalecos também impecavelmente brancos ofereciam informações a quem chegasse. No rosto de nenhuma delas havia alguma expressão que demonstrasse qualquer tipo de sentimento, diferente do de Bo Ra, que esbanjava aflição. Ninguém na secretaria do Kobe Suwon soubera informar o porque de uma das empregadas da família Kim ter telefonado para o colégio para avisar que a senhora Kang encontrava-se hospitalizada, assim como nenhuma das recepcionistas do hospital prestou-se a dar essa informação.  

Os sapatos de Bo Ra faziam um barulho rápido e constante quando encontravam o piso de porcelana do corredor onde estava o quarto de sua avó. A garota encontrou em uma das portas, sem precisar procurar muito, o número de três dígito que a recepcionista havia lhe informado há poucos minutos. Ergueu a mão na direção da maçaneta de aço, contudo, a mesma permaneceu trêmula e suspensa no meio do caminho. Não havia nada a segurando, além dela mesma. Seus dedos cerraram seu punho, as unhas curtas sendo cravadas na fina camada de pele da palma da mão.

Foi quando, de repente, a porta branca se abriu sem que Bo Ra precisasse se mover. Mais uma vez, os dedos compridos de Taehyung ocuparam o seu campo de visão, mas agora para girar a maçaneta redonda da porta. A Kang não havia sequer lhe contestado quando ele simplesmente começou a segui-la até a saída do colégio, porque sabia que, provavelmente, precisaria dele exatamente como naquele momento. O braço de Taehyung voltou para junto do corpo do rapaz, abrindo espaço para a passagem de Bo Ra.

Sem adiar mais aquela agonia, Bo Ra adentrou o cômodo. Paredes e móveis brancos, como esperado, e, em uma cama reclinável localizada no centro do quarto, encontrava-se a avó de Bo Ra.

— Bo Ra? — a senhora perguntou e, para o alívio da garota, sua voz parecia normal. — Aigoo... eu pedi para que ninguém lhe dissesse que eu estava aqui.

— Vovó!

Foi a única coisa que Bo Ra conseguiu pronunciar, antes de correr para os braços da avó. A palavra havia deixado a boca da garota mais como uma repreensão do que como uma lamúria, o que a idosa achou levemente engraçado. Contudo, quando Bo Ra apertou o corpo da avó contra o seu, a mesma gemeu desconfortavelmente.

— O que aconteceu? — a garota perguntou, afastando-se no mesmo instante e assumindo uma distância da avó que julgou segura e suficiente para analisar cada parte visível do seu magro corpo.

— Nada demais, minha querida. — respondeu, oferecendo um sorriso nitidamente forçado. — A vovó só sentiu algumas dores.

— A senhora não deveria tratar uma crise tão forte de coluna como apenas algumas dores, senhora Kang. — a voz masculina se fez presente em tom de advertência, o que assustou Bo Ra.

Pela primeira vez desde que entrara no quarto, Bo Ra realmente percorreu os olhos pelo mesmo. Primeiro, deparou-se com Taehyung que, parado quase apoiado na porta já fechada, encarava fixamente algum lugar à sua esquerda. Por conta de sua postura rígida, a Kang mais nova seguiu o seu olhar, deparando-se com outro homem.

Nitidamente mais velho do que ela, porém não muitos anos, ele vestia uma roupa completamente branca e um jaleco de mesma cor cobriam seus ombros largos. Os cabelos negros e lisos estavam bem cortados e, no rosto, ele exibia um belo sorriso simpático. Apesar da figura de bom porte e tranquila do médico, Bo Ra percebeu o quão incomodado ele parecia com o olhar fixo de Taehyung, mas resolveu deixar aquilo ocupar um segundo plano em sua mente.

— Desculpe, doutor. Eu entrei tão apressada que não vi que já estava aí. — Bo Ra pronunciou-se primeiro, curvando-se.

O homem fez o mesmo.

— Sem problemas. — respondeu, mantendo a tranquilidade que Bo Ra começava a perceber que não era tão verdadeira quanto aparentava. — Você é neta da paciente?

— Sim, sou. Meu nome é Kang Bo Ra. — ela se apresentou e, em seguida, apressou-se para emendar sua fala. — O que aconteceu com a minha avó?

O médico pigarreou e, antes de responder a pergunta da garota, fitou um imóvel Taehyung de escanteio.

— Bem, ela chegou aqui com fortes dores na coluna. Os exames mostraram que ela sofreu um espasmo muscular entre duas vértebras. — ele iniciou, porém, quando deparou-se com a expressão preocupada de Bo Ra, achou melhor simplificar as coisas. — Ela não corre nenhum risco e já foi medicada, contudo, precisa de repouso absoluto por dois dias, ou as dores podem voltar por conta da idade.

De repente, Bo Ra permitiu-se expirar uma grande quantidade de ar que tinha presa em seus pulmões. Talvez, não ter sido negativa havia ajudado em algo. Quis agradecer ao médico antes de qualquer coisa e, por isso, procurou o seu nome pelo jaleco.

E lá estava, com letras azuis bem desenhadas e bordadas no bolso da vestimenta: Kim Seokjin.

Automaticamente, Bo Ra o reconheceu. Para a sua sorte, sempre pudera se gabar da ótima memória que tinha, especialmente quando se tratava de nomes de lugares e pessoas. Era uma enorme coincidência que o rapaz, aparentemente recém-formado, com quem trombara no cemitério no dia em que resolvera enterrar de vez o passado, era o mesmo médico de plantão que atendera sua avó. Pela aparência jovem, ele deveria ser algum tipo de assistente ainda.

Quando Bo Ra o fitou com um pouco mais de atenção e demorou a se pronunciar, a garganta de Taehyung tornou-se seca ao ponto dele acreditar que a mesma poderia rachar a qualquer momento. Ela não o conhecia, ele não havia lhe dito o seu nome. Desejou que Bo Ra não fosse uma caixinha de surpresas que o deixasse apreensivo a espera de qualquer coisa — até mesmo do pior.

Contudo, Bo Ra por fim processou aquela coincidência e abriu um leve sorriso agradecido na direção do médico.

— Obrigada por cuidar da minha avó, Dr. Kim. — ela disse, curvando-se mais uma vez. — Eu o farei melhor de agora em diante.

— De nada. Eu estava apenas fazendo o meu trabalho. — o médico respondeu e, pela voz distinta, Bo Ra confirmou que ele era mesmo o rapaz do cemitério.

Era apenas uma coincidência para ela, mas estava longe de ser a verdade que Taehyung conhecia. Sacudiu a cabeça discretamente, os fios acinzentados começando a cobrir seus olhos. O médio instruiu Bo Ra quanto a alguns cuidados básicos em relação a sua avó, que vez ou outra resmungava que já era grandinha o suficiente para cuidar-se sozinha, enquanto Taehyung observava aquela cena com um antigo e sempre presente parceiro: o calculismo. Em um de seus ombros, a figura angelical que lhe dizia que aquele assusto não lhe envolvia e, portanto, ele não deveria se meter ainda mais no mesmo; enquanto, do outro, a consciência diabólica que insistia para que ele revelasse a verdade ali mesmo, na frente de todos.

Não, ele não faria nenhum dos dois. Bo Ra havia mostrado, pela primeira vez em quase duas décadas de vida de ambos, que estava aberta e disposta a confiar no Kim e ele tinha completo conhecimento disso — por isso, ele sabia como deveria agir e o faria assim. Não tinha certeza, porém, do quando, mas definitivamente não seria naquele momento.

O médico se despediu com um aceno de cabeça e, antes de deixar de vez o quarto, inconscientemente fitou Taehyung. Havia um antigo ditado que dizia que basta um olhar para que pessoas com as mesmas mágoas, ou ainda que sejam apenas parecidas, se entendam. Seokjin reconhecia o garoto e, por consequência, aquilo que estava explícito em seus olhos. Mesmo que cada um tivesse sua própria interpretação do que aquela troca silenciosa de olhares significava, o recado havia sido recebido por ambos da mesma maneira. Seokjin acenou para Taehyung como havia feito para ambas as Kang, porém nitidamente mais sério e, sem dizer nada, logo estava fechando a porta do quarto atrás de si em uma velocidade estranhamente lenta.

 — Kang Bo Ra. — balbuciou o nome, sozinho no longo corredor branco. Havia ligado os pontos no instante em que pusera os olhos em Taehyung, por isso, só lhe faltava admitir verbalmente para acreditar na situação. — É ela.

Respirou fundo com todo um passado ressurgindo em sua memória. Parecia que tudo aquilo tinha acontecido há uma vida atrás. Mas não tinha e, por esse e por diversos outros motivos, ele não possuía sequer o direito de voltar naquele quarto e vê-la mais uma vez. Já quase atrapalhara sua vida uma vez quando era apenas uma menina e, com toda a convicção que lhe restava, não o faria de novo.

Fitou a prancheta repleta de prontuários em suas mãos, folheando os mesmos logo em seguida. Estava na hora de checar um paciente acidentado em uma outra ala do hospital e, seguindo o planejamento deixado pelo seu superior, assim ele o faria.

E, assim, Kim Seokjin esperava que Bo Ra pudesse viver uma vida longa, próspera e distante dele e da mágoa que ele sabia que traria consigo. Afinal, era o mínimo que ele poderia desejar para a irmã que, por conta de um destino maldoso e de um pai que não valia metade dos esforços que o rapaz fizera para salvá-lo, ele sequer merecia ter.

Mesmo que Bo Ra fosse sua única irmã e também a única família de sangue que lhe restara, Seokjin impôs a si próprio a condição de continuarem sendo estranhos um para o outro.

— Taehyung? — a voz de Bo Ra trouxe o garoto de volta para a realidade. Ela o encarava com uma leve interrogação no rosto. — Está tudo bem?

Já fazia alguns minutos desde que o médico havia deixado o cômodo, afirmando que não seria necessário voltar. Dentro de pouco tempo, uma enfermeira entraria no quarto trazendo os papéis que autorizavam a alta da senhora Kang e, assim, os três poderia retornar para casa. Tudo havia saído melhor, ou, pelo menos, extremamente menos pior do que Bo Ra esperava — e, justamente por isso, ela não entendia o porquê de Taehyung ainda manter aquela expressão preocupada e indecifrável em seu rosto.

Ele respirou fundo, permitindo-se relaxas os ombros, no mínimo.

— Sim. — ele respondeu, simplesmente.

Poderia ter inventado algo, era bom nisso. Teria dito que não gostava do ambiente hospitalar, Bo Ra daria de ombros e voltaria a se preocupar apenas com sua avó. Mas ele não soube como fazer isso. Preferiu, então, manter-se em silêncio, sem correr o risco de desfazer o acordo silencioso que firmara com Seokjin.

O irmão de Bo Ra.

Em um mundo de pretos e brancos, aquela era, pelo menos por hora, a melhor decisão cinzenta que ele poderia tomar.


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Notas finais do capítulo

E então, o que acharam? Muitos corações baleados?
Ah, se puderem, eu gostaria de lhes pedir um favor: se alguma música lembra vocês dessa história ou se encaixa no enredo, me mandem o nome, por favor. Músicas me ajudam e muito a escrever e eu estou a procura de algumas novas (e sou bem eclética)!
É isto. Vamos interagir! O que vocês fariam no lugar do Taehyung, ein?

Nos vemos em breve, queridos.

Até ♥