Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 26
Os Lobos e o Pranto


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal! Trazendo mais um capítulo para vocês, devem ter percebido uma demora maior para eu atualizar Ode, mas é por conta do tamanho que os capítulos andam tendo ultimamente, como podem notar esta nova fase será cheia de capítulos grandes! Quero agradecer a todos vocês que estão lendo e acompanhando e a todos os leitores novos que chegaram nos últimos dias!
Boa leitura pessoal ^-^



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Era inegável dizer que aquela era uma relação um tanto quanto singular, e o fato de ser composta por dois homens era de longe o principal motivo. Ia muito além das divergências do jeito de ser entre Friedrich e Loki, pois se tratava de algo enraizado entre as duas culturas dispersas, com a forma que haviam sido criados e ensinados a enxergar o mundo ao seu redor. Mas que com paciência eles fizeram tal afinidade funcionar, desde a época em que era somente pura amizade. Todavia, o amor mesmo que fosse o mesmo para ambos, era tratado de forma distinta por eles.

Loki o via de forma deveras simples e descomplicada, pois para ele se duas pessoas se amavam que elas permanecessem juntas de toda forma, seja tal união física ou emocional, sem quaisquer grandes cerimônias. Em sua cultura antiga e hibérnica também havia a ideia de casamento, mas era somente algo para que pudesse denominar uma relação sólida e duradoura, nada que uma benção dos deuses não bastasse para se oficializar, algo mais simbólico do que literal para denominar um casal unido. Era algo natural da qual as pessoas presenciavam e que poderiam passar durante a vida, não havia nenhum mistério no amor em si que não fossem as próprias pessoas.

Contudo, Friedrich havia aprendido a lidar com o amor de forma muito diferente, inclusive o desmembrando no dito amor puro ou de amizade e o amor atrelado ao desejo e a luxúria. Um era guardado somente para si quase que em segredo, no máximo compartilhado com a pessoa que estivesse apaixonado de forma solene e privada. Quanto ao outro, era repugnado de forma veemente, estritamente proibido antes de qualquer matrimônio e que mesmo após continuava sendo visto como a parte profana de uma relação. Visto que as pessoas não se uniam somente para si, mas diante de Deus, fazendo a sensação de estarem sendo constantemente vigiados em um eterno limite entre seus atos.

Dessa forma, agora que eles estavam juntos de forma romântica era preciso encontrar um equilíbrio entre as duas ideias tão antagônicas. Formando uma mistura e equilíbrio entre os costumes e ações para que não assustasse ou espantasse um ou outro pela estranheza. E não por pura sorte apostando somente na força do amor que sentiam, mas sim trabalhando com cuidado e compreendendo os limites de cada um, eles conseguiam fazer a afeição entre eles funcionar de maneira propícia, mesmo que um tanto desajeitada e até constrangida a princípio, era a forma que encontraram de se conhecerem aos poucos de forma mais íntima.

Friedrich pensava sobre tudo isso enquanto perambulavam de volta para o sul, visto que não havia mais como fugir da peste mesmo que quisessem e o norte havia se tornado um lugar perigoso com as acusações contra Loki. Cogitavam por Winchester ou Londres enquanto o caminho não dizia qual seria a melhor opção, por vezes até cogitando lugares mais longínquos como a Irlanda ou a França.  Friedrich refletia sobre a relação entre ele e Loki, tentando encaixar de alguma forma em sua cabeça cheia de decoros o que ‘’isso’’ poderia ser considerado. Havia aprendido que relacionamentos se davam por períodos curtos de corte, seguido de noivado e casamento; coisa que divergia muito da relação clandestina que tinham. Haveria sequer um nome para aquilo? Suas dúvidas eram mais filosóficas do que reais de certa forma, mas que tomavam parte do tempo em sua mente já tão acostumada por pensamentos abstratos.

 Sua linha de raciocínio fora interrompida quando sentiu o indicador de Loki a cutucar por entre suas sobrancelhas onde tinha o rosto enrugado pelos seus devaneios, como se tentasse reerguer o seu cenho.

— Tu pensas demais. – Disse Loki rindo brevemente. – O que tanto te ocupa a mente agora?

— Ah, nada de mais além de ideias tolas. – Friedrich disse desconversando.

— Então por que lhe intrigam tanto? – Loki indagou agora curioso com os pensamentos do companheiro, este que hesitou alguns instantes antes de decidir compartilhar o que tanto refletia. Afinal, era sobre eles dois da qual pensava, imaginando que poderia dividir tais ideias com Loki por mais embaraçado que se sentisse.

— Estava pensando sobre nós, o que somos agora. Pergunto-me como poderia descrever nossa relação exatamente.

— Bem, estamos juntos, não é isso?

— Eu sei, por isso disse-lhe que eram só ideias tolas. – Friedrich disse com um riso sem jeito, evitando o assunto, mesmo que Loki soubesse que ele continuaria pensando sobre aquilo por um bom tempo se não fosse discutido, tendo a mente inquieta como sempre. O ruivo o tomou pelo braço, deixando eles cruzados entre si e fazendo os ombros se tocarem enquanto caminhavam.

— Deixe-me pensar... Daria para dizer que somos amantes. – Loki acariciava a própria barba e franzia as sobrancelhas numa tentativa caricata de imitar o parceiro que revirou os olhos frente a sua expressão zombeteira, mas dando um curto riso de toda forma. Atrás deles o cão latia para algum animal silvestre no encalço deles, mas o ignoraram enquanto andavam tranquilamente.

— É uma boa maneira de descrever. – Friedrich concluiu, refletindo a questão de forma calma em sua cabeça, não notando a princípio o sorriso de satisfação do outro por saber muito bem como a mente do companheiro funcionava e como já aprendera a forma de resolver aqueles impasses.

— O problema Freddie, é que tu pensas tanto que por vezes acabas por complicar aquilo que és simples. – Loki disse quase não podendo ser ouvido por conta dos latidos insistentes do cão. – Quer calar a boca Peregrino?!

— E você disse que não ia acatar o nome que sugeri. – Friedrich falou com um sorriso altivo, mas logo retornando a expressão sóbria pelo assunto que confabulavam. – Acho que na realidade o que mais me incomoda é todo esse segredo. É preciso, mas também triste saber que ninguém mais além de nós pode saber a verdade do que somos, que jamais poderá ser oficializado que o amo.

Ficaram em silêncio por alguns instantes, apenas com Peregrino ainda latindo alguns passos atrás deles. Uma expressão de lamúria estampou suas faces por alguns instantes, enquanto pensavam sobre tudo que lhes era negado.

— Infelizmente é algo que teremos de conviver, sem poder nos apresentar verdadeiramente. – Loki proferiu após um longo suspiro, olhando para Friedrich que mirava os próprios pés. – Contudo, o mais importante de tudo nós já temos, e isso ninguém pode nos tirar.

Friedrich o fitou mais uma vez, dando um sorriso solene em sua direção, mas com o druida replicando com a expressão vigarista e pousando o queixo no ombro do alquimista de forma petulante.

— Mas se quiser te peço em casamento de toda forma, mesmo que não seja ‘’oficial’’ como vocês dizem. – Falou divertindo-se com o sobressalto do companheiro e seus gaguejos sem sentido até que conseguisse formular algo.

— Está sendo tolo!

— Ah não, estou sendo sério. Não acredita que eu faria isso se pudesse? – Indagou com aquele maldito sorriso provocante, deixando Friedrich enrubescido e sem palavras a dizer no momento.

— Vindo de tu não duvido mais nada – Disse quase num murmúrio.

— Nem para dizer o que me responderias? – Questionou só para testar os limites do decoro do companheiro, esperando alguma censura de sua parte ou até mesmo que o empurrasse para o lado, mas se surpreendendo ao ter a gola de sua túnica puxada e sentindo a boca de Friedrich em contato com a sua. Sorriu entre os lábios com a atitude do outro, visto que dificilmente era quem tomava aquele tipo de atitude, tocando seu rosto e intensificando mais o beijo até que sentissem asas batendo no estômago com a candura escorrendo de seus lábios. Ao se separarem, continuaram a se encarar por um momento, vislumbrando no olhar um do outro toda a morosidade que antes sentiram sendo acalentada pelo abraço que dividiam. Quiçá tivessem aproveitado tal momento, mas algo os perturbava.

— Pelos deuses, quieto cão idiota! – Loki bradou se desvencilhando um pouco mais de Friedrich que olhava intrigado para o animal a encarar a floresta. Peregrino sequer o dera ouvidos, insistindo por latir ao além de maneira feroz e ameaçadora, com sua pelagem áspera arrepiada por toda a cernelha. Antes que um deles pudesse ir até o animal para chamar sua atenção, um canto selvagem repercutiu como se em resposta, o uivo dos lobos a espreitarem as redondezas. A dupla se entreolhou com pavor.

— Lobos... – Friedrich murmurou atônito, sentindo Loki pegar em sua mão de imediato e o puxando para que andasse rápido, mas a passos leves para que não fossem notados pelos predadores. O cão continuava a latir insistentemente para a alcateia, fazendo com que chamasse ainda mais a atenção dos animais selvagens. Eles não queriam realmente deixar o cão para trás, mas precisavam escolher entre ele e as próprias vidas, deixando que o grande animal encontrasse o propósito de sua linhagem.

A agonia por terem de pisar rápido nas folhas mortas fazia com que suassem frio e o coração disparasse pelo medo. Olhavam para trás de forma compulsiva, temerosos que os animais já tivessem notado suas presenças, mas somente ouvindo a briga entre o cão e os lobos.

Loki vislumbrou um carvalho de longos e grossos galhos a formarem ramificações pelo ar, correndo ainda mais enquanto puxava Friedrich junto consigo, subindo na árvore de maneira ágil e em seguida auxiliando o companheiro a subir junto. Colocaram-se o mais alto que conseguiam e se camuflando o máximo que podiam atrás da folhagem, visto que se os animais os descobrissem ali os rondariam por dias até que não tivessem mais forças e caíssem direto em suas bocas.

Sustentavam-se por entre os galhos e apoiando-se um no outro, tremendo pela falta de equilíbrio e o pavor que tomava o corpo, tentando controlarem as respirações nervosas para evitarem ser descobertos. O silêncio tomava conta pelo medo de um único murmúrio, fazendo com que comunicassem o próprio receio somente pelos olhares penetrantes que lançavam um para o outro. Em dado momento, chegaram a vislumbrar Peregrino correndo de alguns lobos, ouvindo seus ganidos e uivos por um longo período após perdê-los de vista.

Permaneceram daquela forma até as articulações doerem e a câimbra tomar conta de suas pernas, mesmo quando já não se havia sinal dos predadores ao redor, continuaram por um longo tempo em cima da árvore para garantirem a própria segurança, visto que não possuíam arma alguma para se defenderem além de suas facas pequenas e algumas lâminas cirúrgicas.

Quando acreditaram que o perigo havia passado, desceram com cautela, olhando para todos os lados e atentos a cada mínimo som da floresta.

Perambularam pelo recinto por alguns minutos. Ao não encontrarem mais nenhum vestígio dos predadores, suspiraram de alívio e sentiram o peito se acalmar mais uma vez por escaparem de mais um desafio da vida peregrina. Contudo, lamentavam por não encontrarem o tão leal cão que possuíam, continuando a seguirem a estrada olhando para todos os lados da floresta na esperança de vê-lo.

Felizmente, depois de algum tempo de caminhada e procura, eles finalmente reencontraram o grande cão. Manco, mordido e sangrando, mas ainda exibindo uma postura confiante enquanto abanava o rabo após vê-los mais uma vez.

— Devíamos ter lhe ouvido, não é mesmo? – Disse Friedrich abaixando-se para acariciar a cabeça de Peregrino, que parecia feliz em vê-lo mesmo estando naquele estado. – Pobre coitado.

— Bem, o danado também foi quem chamou ainda mais atenção dos lobos. Animal tolo. – Loki falou de braços cruzados e balançando a cabeça para os lados, ganhando um olhar fulminante do companheiro.

— Tenha um pouco de dó Loki. Vamos, preciso de ajuda para tratar dessas mordidas. – Friedrich mandou já começando a tirar seus materiais da sacola e pensando no que fazer para ajudar o animal.

— Você mima demais esse cão de caça. – Loki disse revirando os olhos, mas acatando o pedido do outro e se abaixando ao seu lado, segurando o cão que já começava a ficar desconfiado com o que aconteceria.

— Somente trato os animais como ensina São Francisco. – Friedrich explicou enquanto lavava as feridas do cão que esbugalhava os olhos com o gesto estranho. – Ademais, não poderias estar me galanteando se não fosse a ajuda desse mero cão de caça.

Loki sorriu ao se ver vencido por tal argumento, olhando com admiração para o olhar dedicado do companheiro tratando do animal de pelos cinzentos. Sabia como Friedrich jamais negava ajudar quem necessitasse, mesmo quando tantas vezes fora lhe negado qualquer amparo, sendo toda aquela solicitude sincera e devota uma parte da qual admirava imensamente nele. Não era atoa que havia se visto tão perdidamente apaixonado por ele, sendo fisgado por completo em seu jeito acolhedor e modos afáveis.

Peregrino era um cão grande, e apesar de poucos músculos era resistente o bastante para suportar até ferimentos de lobos. A princípio não gostou das bandagens pelo seu corpo e tentou removê-las, mas ao ser repreendido uma ou duas vezes logo se pôs a ficar quieto como se magoado, porém sem infringir a ordem.  Só foram precisos apenas alguns afagos em sua cabeça para que desculpasse os donos, agindo como se nada tivesse ocorrido, seguindo-os durante a caminhada mesmo que de forma vagarosa pelos ferimentos.

Pararam somente tarde da noite, visto que queriam se afastar o mais longe possível do território dos lobos que encontraram. Deitaram-se exaustos, abraçando-se ainda mais apertado pelo medo que tiveram de perderem um ao outro de forma tão iminente. Sabiam que aquela vida que levavam era repleta de perigos, mas parecia que só se davam conta de toda sua gravidade somente quando se deparavam com tais situações de frente.

Loki havia lidado calmamente o enfrentamento com os lobos, foi preciso para que não desesperasse Friedrich que desconhecia tal infortúnio, e para que ele próprio não perdesse a razão diante de um momento delicado como aquele. Mas agora que a epifania da sobrevivência e todo alerta sentido pelo corpo se esvaíra, agora começava a sentir toda a angústia daquela situação e começando a pensar sobre quaisquer perigos futuros que poderiam aparecer. Imaginou o que seria dele caso perdesse Friedrich naquele instante, de forma bruta e inesperada como todas as pessoas queridas de sua vida já haviam sido, sentindo uma tristeza profunda apenas diante da mera possibilidade, acabando por engolir mais uma vez tais sentimentos que lhe molhariam a face, preferindo observar com esmero o rosto do companheiro em seus braços enquanto tal sentimento lúgubre o tomava de forma silenciosa.

— Quero passar toda minha vida ao teu lado. – Loki sussurrou ao ouvido do parceiro pela noite quase como uma súplica, fazendo Friedrich se arrepiar ao sentir de surpresa a voz contra a pele. – Seja os deuses a fazendo ser curta ou longa, estando contigo sei que já estarei feliz.

Friedrich virou os olhos límpidos em direção ao verde místico de Loki, sorrindo de maneira plácida, acariciando seu rosto e emaranhando a barba ruiva, fitando-o com o mesmo ardor que o druida exibia.

— A cada dia que passa, apenas confirmo ainda mais que tu foste minha melhor escolha. – Friedrich disse-lhe em resposta, vendo um sorriso se formar no rosto cansado de Loki antes de sentir-se abraçado ainda mais pelos seus braços. Terminando a noite com ambos apreciando o calor de seus corpos e do sentimento que irradiava de suas almas, mesmo que o medo e a desesperança os rodeassem a todo o momento.

***

Estava exausto, com as pernas sofridas pelas dores dos seus passos, as costas já amortecidas por carregarem tanto tempo o cervo com sua carne começando a tornar-se fria. Entretanto, assim que vislumbrou ao longe os primeiros tetos de palha e madeira de sua vila, Loki correu com a euforia lhe tomando as veias, um sorriso largo lhe desenhando a face sardenta e o pequeno rabo de cavalo ruivo sacolejando para lá e para cá enquanto se aproximava cada vez mais de sua casa. Por onde passava, tocava nas plantas e flores primaveris a largarem pólen e sementes sob a terra, implantando mais uma vez a vida que fora antes tomada pela neve.

Eu consegui! Eu consegui! Falei que era capaz! – Gritava de orgulho antes mesmo de vislumbrar seu lar, apenas reconhecendo a trilha e as árvores por qual sempre passava durante seu retorno, imaginando que algum de seus irmãos já o pudesse ouvir se vangloriando. O peito pesava-lhe pela falta de fôlego e a alegria o tomando, ansioso para poder ver a reação de seus pais diante de sua primeira caçada sozinho.

O sorriso ruiu quando se deparou com nada mais que lascas e fuligem no lugar onde havia sido sua casa, ainda com finos filetes de fumaça aqui e ali persistindo mesmo após o fim do incêndio. Sentiu os músculos paralisarem, os olhos virando confusos de uma direção para a outra, perplexo e tentando compreender o que possuía á sua frente. Ao sentir a realidade cair por completo em seus braços, largou o cervo que antes ostentava com tanto orgulho, deixando a carne no chão enquanto se aproximava a passos lentos até sua ruína.

A dúvida que persistia em sua mente era o que havia ocorrido exatamente com seu lar, junto á ânsia por saber o paradeiro de sua família. Loki percorreu os destroços atônito, ficando sem palavras por um instante enquanto pisava nas lascas e cinzas escuras que cobriam todo o chão, como a neve a matar a vida mais uma vez. Foi então que começou a gritar pelo nome de todos, chamando-os, esperando que seus pais aparecessem para explicar o que aconteceu e seus irmãos consolassem uns aos outros.

Só que Loki não era mais aquele rapazote de dezesseis verões, era o homem de barba a observar por entre as árvores a lembrança dolorosa que o fazia devorar a si feito um ouroboros. Observou em silêncio um dos vassalos de Lorde Damian começar a se aproximar de seu eu mais jovem a passos hesitantes, dando a mensagem que levaria o jovem a se debulhar tanto em lágrimas até ao ponto de nunca mais chorar novamente.

Para sua surpresa, enquanto via o garoto caído ao chão lamentando sob o único lugar que chamou de lar, também sentiu as lágrimas salgadas a escorrerem por sua pele, enquanto sua face permanecia impassível com os olhos vítreos arregalados pelo horror. Aquela memória poderia passar milhares e milhares de vezes por sua mente durante toda a sua vida, e todas as vezes a dor o consumia de tal maneira cruel todas ás vezes. Em meio a fumaça e seus gritos em meio ao silêncio, Loki jamais esqueceria o dia que havia destruído e mudado sua vida inteiramente.

Mas havia algo de diferente ali. Sentindo mais uma presença ao seu lado, Loki virou o rosto para se deparar com a imagem de Friedrich, mas estando muito diferente daquele que dormia ao seu lado.

Estava como o havia conhecido. De hábito escuro, terço enrolado no cinto de corda, o crucifixo de ouro e prata a lhe adornar o pescoço altivo, o cabelo loiro cortado de forma simétrica como uma auréola. Mas não parecia o monge maltrapilho a fugir do próprio mosteiro, assustado e ferido de tantas formas. Ali ele estava em perfeito estado, com a postura elevada a lhe encarar com o olhar repleto de um desdém que fazia Loki sentir o sangue esfriar, mas não tão gélido quanto o azul daqueles olhos frios. Aquele Friedrich o assustava, mesmo que no fundo soubesse não se tratar daquele que conhecia, no momento somente sentia os ombros se encolherem diante do outro homem a parecer ainda mais alto que a verdade.

Se desejas ouvir seus gritos no Inferno, morra no fogo para encontrá-los! — Ele ditou com o olhar de um Inquisidor, sua face retorcida numa ira doentia junto à voz altiva e ressonante, fazendo Loki sentir o corpo cair diante do tremor da última sentença. Acordando em um salto e se assustando mais uma vez com a imagem de Friedrich, dessa vez o verdadeiro a lhe olhar com pavor nos orbes azuis tão diversos dos que acabara de ver em seus sonhos.

— Está tudo bem? – Friedrich indagou aflito, aproximando-se e fazendo Loki afastar-se sutilmente, ainda confuso entre o sonho e a realidade. – Nunca esteve tão agitado durante o sono.

Loki sentia como se os pulmões se fechassem, tornando a respiração pesada e difícil. Os olhos estavam grandes feitos os de uma coruja, virando de um lado para o outro enquanto se acostumava com a realidade. Havia cochilado durante aquela tarde de outono quando pararam a longa caminhada para descansar, mas mesmo a sensação dos raios sob sua pele não eram o bastante para acalmá-lo, sentindo uma angústia no peito que parecia devorá-lo por dentro. Seu rosto estava úmido, e demorou alguns instantes para que Loki percebesse que eram suas próprias lágrimas a embaçarem a visão, estranhando a princípio aquela emoção que há muito estava reprimindo.

— Por que estou chorando...? – Questionou-se atônito tocando no próprio rosto e sentindo as gotas molhando sua palma, fazendo-o sentir ainda mais vontade de chorar mesmo que não desejasse. Friedrich aproximou-se mais dele, tocando-lhe o ombro em cumplicidade, onde dessa vez o druida não se alarmou com sua presença ao ver que tratava-se de seu Friedrich.

— Foi apenas um sonho ruim Loki, acontece.

— Não, não comigo. – Disse de maneira firme, mais para si do que ao companheiro. Sentiu um soluço lhe tomar a garganta, tapando a boca com uma das mãos tentando conter-se, mas acabando por se debulhar em lágrimas de toda forma. – Por que não consigo parar?

Tentava lutar contra tal ânsia, mas as lágrimas caiam como gotas de chuva de seus olhos. Aquele pranto ia além do pesadelo que o despertou daquele dia tranquilo, era um reflexo de todos os sentimentos e emoções que tentava reprimir em seu interior, de todas as vezes que o medo e o desespero foram jogados para o fundo de sua alma para que pudesse manter sempre a mesma postura inabalável de sempre. Mas todo aquele medo e ressentimento, ao contrário do que imaginava, permaneceram dentro de si o assombrando a todo o instante em um silêncio que ainda machucava, somente esperando um momento em que pudessem ressurgir e fazê-lo sentir inteiramente tudo aquilo que havia tentado estancar por tanto tempo. Estava apavorado, deprimido e despedaçado; sem ter a certeza do futuro reservado á eles, do ódio do mundo a lhe pesar os ombros, dos mortos a lhe assombrarem e de todas as vidas frágeis e condenadas da qual também temia perder mais uma vez.

Friedrich abraçou os ombros de Loki, puxando-o para mais perto de si, notando que o druida envergonhava-se por estar naquele estado ao evitar encará-lo. Por mais que nunca o houvesse visto destroçado de tal forma – visto que mesmo quando fora atacado havia tentado mostrar o mínimo de abalo possível – sabia o quão fragilizado ele havia estado nos últimos tempos com todas as coisas que andavam acontecendo, quem sabe também fazendo retornar no processo todas as memórias antigas da qual ele não gostava de relembrar. Por um instante nada disse, sabendo muito bem que aquilo do qual Loki mais precisava era extravasar toda a dor que havia guardado dentro de si, o apoiando solenemente e com cuidado, ouvindo com pesar e paciência seus soluços sofridos.

— Tu me disseste que nossa força advém da união, logo, lutarei contigo até nos piores momentos, assim como lutou por mim. – Friedrich disse quando Loki sentia-se mais calmo e apenas permanecera em silêncio de olhos inchados e aceitando por fim os braços do companheiro ao seu redor. – É o homem mais forte que conheço Loki, não acredite que um único momento de fraqueza seja capaz de destituir toda a pessoa admirável que és.

 Loki fungou o nariz e limpou os olhos com o braço, fitando o companheiro com os grandes olhos esverdeados tomados de melancolia, mas sentindo-se mais leve depois de derramar todo o mar que tinha preso dentro de si, por mais envergonhado que também se sentisse no processo.

— Quando chorei pela última vez, ajoelhado no túmulo deles, prometi que jamais deixaria os deuses beberem de minha dor outra vez. – Disse com a voz fraca e um tanto embargada ainda, olhando para Friedrich como se procurasse qualquer espécie de resposta e empatia entre seus olhos serenos. O alquimista lhe acariciou os cabelos de fogo, dando-lhe um olhar compassivo e secando seu rosto com cuidado.

— Tu és o dono de tuas próprias lágrimas Loki, ninguém mais tem o direito de se apoderar delas.

O druida sentiu os olhos umedecerem mais uma vez, só que não mais com lágrimas de desespero, apenas deixando-as cair solenemente de seu rosto, sentindo o peito acalmar-se aos poucos nos braços de quem amava e dos sentimentos que deixava por fim serem livres.


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Notas finais do capítulo

É meio difícil saber que se está namorando alguém quando o conceito de namoro sequer existia no seu século. ¯_(ツ)_/¯ haha, por isso não estranhem as conversas já sobre casamento (mesmo que hipotético ou simbólico pra eles), pois era o normal na época mesmo. Não havia muito espaço entre conhecer e gostar de uma pessoa e se casar com ela nesse tempo, então era o que eles e o restante do povo entendiam e conheciam sobre relacionamentos.
Os últimos lobos foram vistos na Grã-Bretanha durante o século XIX, hoje em dia eles estão extintos na região.
Como sempre, comentem o que acharam e nos vemos no próximo capítulo! ^-^



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