Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 21
A Busca e o Encontro


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal! Capítulo programado vindo para vocês, isso mesmo vocês estão vendo uma ''mensagem gravada'' por que vou estar ocupada nesse domingo, mas não os deixo sem atualização ♥ Desculpa por não ter respondido ainda os últimos comentários, mas assim que tiver tempo vou responder todos como sempre faço!
Boa leitura pessoal! ^-^



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A grande questão do caso que tanto passava pela cabeça de Friedrich naquele momento de epifania – e provavelmente na sua, caro leitor que está lendo esta história com admirável paciência – era de como um reles andarilho e curandeiro feito Loki ganharia os ouvidos e suposições da Lei que no momento parecia querer caçá-lo.

O que aconteceu foi mais natural do que se imaginava. Notícias e causos podem correr mais rápido que uma flecha recém-lançada, principalmente tratando-se de desgraças. E numa sociedade que grande parte delas se espalham mais pelo boca a boca do que pelos telegramas e pergaminhos, algumas frases podem ser incrementadas, um que outro fato modificado pela interpretação de cada um, uma pitada de exagero durante a fala, acabando por resultar em uma história com pedaços remendados das centenas de palavras proferidas tantas vezes naquele caminho, meias verdades clamadas como grandes fatos em que o povo prontamente acreditava por ser tão carente de mais informações.

Quiçá antes já houvesse boatos em um ducado e outro sobre o trabalho de Loki, contudo nada que fosse além dos relatos sobre seus melhores casos de cura, histórias isoladas que pouco efeito faziam para sua reputação. Contudo, más notícias correm muito mais rápido do que as boas sejam elas verdadeiras ou falsas, ainda mais se tratando de bruxaria... Pois o povo ansiava por um motivo simples para suas misérias e infortúnios, por mais fantasiosos que fossem, precisavam colocar a culpa no alvo mais fácil que encontrassem. Botavam todo o rancor e desespero sustentados nas suas superstições, afoitos para esbravejaram de alguma forma simplória e brutal o bastante para saciarem seus desejos mais perversos. As histórias fantasiosas de monstros a devorarem crianças na floresta e de bruxas a dançarem nuas com o diabo podiam ser menos assustadoras que a própria realidade, tornando sua suposta destruição um júbilo temporário para seus corações vazios. Por isso acreditavam nelas tão piamente, pois do contrário estariam cientes do quão realmente miserável eram suas vidas, tornando-se uma forma de se distraírem dos verdadeiros problemas.

Há várias semanas após Friedrich se assustar com um alvo da forca e gritar para aldeões raivosos largarem o druida que queriam condenar, nenhum dos dois andarilhos se colocou a pensar que haveria consequências após a fuga de ambos que fossem além dos pesadelos que aquele dia os trouxe. Nem mesmo Loki e toda sua experiência contava com a proporção de tudo aquilo.

 Como ele poderia saber que aquele grupo de fanáticos conseguiria convencer o dono das terras e o clero local a enviar um relato ao Santo Ofício? Por mais que a mensagem tivesse sido vista com desdém pelos inquisidores – afinal, denúncias de bruxaria eram constantes, não tendo como saber a real veracidade de cada uma das denúncias recebidas a maior parte era simplesmente ignorada –, os boatos pela região espalharam-se e começaram a ganhar confirmações dos feitos de Loki, até mesmo de pessoas que antes o agradeceram pelo seu trabalho, onde ao ouvirem os supostos horrores de seus atos começaram a narrar sua aparição de forma totalmente diferente da verdade. Dessa forma, os relatos incrementados com lendas e achismos misturados, em dado momento toda aquela lenda acerca do druida acordou os olhos da Inquisição, agora podendo a qualquer momento lançar suas garras em direção Loki com toda a sua fúria mascarada de justiça.

Contudo, por mais que Friedrich não compreendesse por completo o que estava em jogo, possuía a certeza que deveria encontrar Loki urgentemente antes que pudesse ser tarde. O que seria do companheiro era o que mais temia no momento, sentindo na essência de sua alma um grande ardor de agonia lhe martelando a intuição, sentindo a gravidade da situação correndo seu corpo.

Quando toda a cólera e ira que havia sentido ao presenciar as ameaças contra Loki começaram a se dissipar, a apreensão iniciou a tomada de sua cabeça, deixando parte de toda aquela determinação, mas trazendo uma dose de razão no meio de tal atitude tão precipitada. Sabia muito bem que poderia jamais encontrá-lo novamente, por mais que tentasse seguir os passos que ele possivelmente pisou, quiçá pelo obscuro motivo de sua demora que possivelmente o desviou do caminho, ou simplesmente pela impossibilidade de se reencontrarem naquele vasto reino, entre tantas outras hipóteses ainda mais horrorosas que imaginava. Tal constatação criava um nó em sua garganta, enclausurando soluços formados por uma chance perdida de algo do qual só tomara consciência tarde demais. Quem sabe tal situação trágica fora um dos motivos que levaram Friedrich ter a certeza do que mais desejava, a escolha perdida deixava em maior evidência seus sentimentos que antes tanto batalhavam contra seus dogmas.

Era um sentimento forte, intenso e que abalara completamente o seu ser. Por isso por mais irrisória e desafiante a possibilidade de reencontrá-lo, Friedrich não deixaria também escapar a mínima chance de pelo menos tentar buscá-lo. Deixaria as lágrimas caírem somente quando seus pés não aguentassem mais aquela procura e sentisse o druida escapar de suas mãos para sempre, somente quando a última gota de esperança caísse é que desistiria de Loki.

Pediu por informações sobre a estrada percorrida por Loki de peregrinos e outros viajantes que circulavam aos arredores dos muros de York, querendo compreender cada curva que ele poderia ter passado e pelo qual pretendia tomar caminho. O tempo não era dos mais favoráveis, com as cinzentas e típicas nuvens inglesas tornando-se mais escuras com o passar da manhã e iniciando uma chuva ruidosa e repleta de ventania. Porém Friedrich pouco sentia as gotas cortantes em sua pele, seguindo o caminho quase sem interrupções, olhando para todos os lados atento e com o coração a retumbar de ansiedade no peito.

A cólera que antes sentira com tamanha intensidade havia se abrasado, contudo apesar de dormente ainda pulsava em seu âmago ao simplesmente refletir sobre toda a fatalidade que se pregava tanto nele quanto no amado. Ao dar-se a liberdade de questionar não apenas a si mesmo como a tudo e todos ao seu redor, a injustiça da qual tanto havia sofrido parecia ainda mais alarmante, toda a dor e tragédia causada em suas vidas de forma que parecia desproporcional aos pecados que pagavam. Sempre fora mais indagador que outros monges, mas podado de suas ideias ao lhe ser ensinado sobre uma potencial blasfêmia de suas questões. Calara-se, e permaneceu de tal forma desde então, só parando para refletir com cuidado ao ver sua vida quase ser tomada, e naquele momento acabou por finalmente destruir todas as barreiras em sua mente ao ter alguém que tanto prezava em perigo.

Amava Loki. Tanto que naqueles dias de introspecção soube o quão bem tal amor lhe fazia, por mais errado que sempre haviam acusado, descobrindo a total intensidade daqueles sentimentos ao ter enfim a real possibilidade de jamais tê-lo ao seu lado novamente. Não poderia viver uma vida sem ele, não sem jamais esquecer tudo que haviam passado, nunca mais tiraria de sua mente as esmeraldas e os fios do inferno, o seguindo como fantasmas pela eternidade de sua alma. Amava-o ao ponto de seguir andando por aquela floresta densa e desconhecida, os galhos desfiando a túnica, as folhas batendo em seu rosto e a lama a lhe cobrir os pés, somente pelo objetivo de poder lhe dizer tais palavras com todo o fervor de seu espírito.

A chuva e o tempo passavam, o dia trocava pela noite e suas juntas ficavam doloridas pelo esforço, enquanto os pulmões pesavam na caixa torácica de tanto cansaço. No início seguira apressado pela estrada, mas quanto mais andava e exausto ficava, mais o medo e aflição lhe atingiam ao não ver sinal algum de que um dia Loki pudesse ter passado por ali. Recusava-se a descansar, parando em certos momentos somente para pegar o ar que já não conseguia mais adentrar seu peito, onde assim que parcialmente se recuperava retornava a andar. A escuridão chegava, mas mesmo a visão fraca pela mera luz das estrelas e da única vela que tanto havia economizado aqueles meses não o impedia de prosseguir, sentindo os olhos pesarem de cansaço, mas temendo perder tempo demais com qualquer cochilo enquanto o paradeiro do druida permanecia incerto.

Três noites, três dias, uma manhã e quarto de tarde foi o tempo dedicado em sua busca. Sentindo com o passar das horas um luto constante a sussurrar em seus ouvidos, ainda adormecido com a esperança que ainda lhe sobrava, mas próximo o bastante para lhe alertar sobre um doloroso desfecho. Já fazia quase uma semana desde que deveria ter encontrado Loki na catedral, tornando cada segundo um martírio ao imaginar o que se passava com o próprio por todo esse tempo.

Sua atenção não estava mais tão focada como nas primeiras horas, parte pelo cansaço que lhe tomava o corpo, mas pela esperança que definhava aos poucos em seu interior. Percorria a mata simplesmente observando a sua frente, com as costas levemente curvadas e os pés se arrastando, não notando quando o cão parou sua caminhada de súbito. Orelhas em pé, o focinho percorrendo o ar feito uma lupa.

Friedrich sequer teria notado a ausência do animal por um bom período devido à exaustão física e mental, contudo o animal passou por ele de maneira abrupta e veloz, desviando a estrada e mergulhando na escuridão das árvores. O antigo frade observou atônito o caminho pelo qual o cão se meteu, perguntando-se se era alguma presa ou simplesmente uma travessura da parte dele.

Ele realmente precisa de um nome. Pegou-se a pensar em tal frivolidade que nunca havia se passado por sua mente antes, quiçá por estar prestes a se deparar com algo que faria aquele sabujo merecer uma verdadeira alcunha.

                                                    ***

Adormeceu sem pretender ou perceber, parou a caminhada somente quando a dor tornou-se insuportável ao ponto de desabar o chão. Estava exausto, faminto e assustado. Não, em desalento. Tão apático que a luz sempre vívida de seus olhos esverdeados se apagara por completo, tornando-se da cor forte dos musgos que sugam vitalidade das árvores. Na realidade era exatamente o que sentia, haviam arrancado de si todo o vigor que possuía, massacrado o pouco que tinha, destruído a esperança por qual tanto lutava a crer e deixando sua alma mergulhada em marasmo. Poderia ter morrido, mas a sensação é que poderia estar morto. Quiçá morresse.

Não teve sonhos, somente descobrindo que havia adormecido ao sentir o despertar e toda a morosidade que o acompanhava. Abriu o olho que ainda se movia e por um instante se questionou se talvez não estivesse sonhando ou alucinando de alguma forma. O focinho do cão que tanto conhecia percorria curioso por todo seu corpo, enquanto a cauda eufórica movia-se com tanta força que chegava a desequilibrá-lo. Para o druida, não havia possibilidade de aquele animal estar ali, o fazendo percorrer a mão no pelo áspero e questionando a própria sanidade.

Cão! — Por mais apático que estivesse, foi inevitável não sentir seu corpo inteiro se arrepiar ao ouvir aquela voz que tanto havia procurado nos últimos dias. A voz mais melodiosa que conhecia, da pessoa que mais prezava em todo o mundo. Seria aquilo uma criação de sua mente perturbada, lutando para presenciar o mínimo de júbilo em meio ao caos? Estava tão cheio de desesperança que era a única resposta que conseguia criar frente aquilo.

— Vamos, não tenho tempo para seus jogos animal tolo! – Em carne e osso Friedrich surgiu por entre as árvores, á vários passos de onde estava, mas ainda assim visível mesmo para sua embaçada visão. Permaneceu estático e atônito frente à impossível imagem do companheiro da qual acreditava estar à milhas de distância até o presente momento. Estando naquele estado de desalento tal aparição não parecia ser normal, para ele se assemelhava a um quadro que observava de longe como um mero espectador, sem poder notar seus maiores detalhes, mas ainda assim discernir a figura que representava.

— Freddie...? – Murmurou tão baixo que ele mesmo quase não se escutou, no mesmo momento que os olhos azulados finalmente focaram em sua direção após olhar para tantas direções, descobrindo a árvore da qual o andarilho estava escorado como se fosse sua própria cova. O alquimista ficou boquiaberto, tentando falar mas estando surpreso demais para dizer qualquer coisa, as lágrimas se formaram quase na mesma hora enquanto os primeiros passos ainda hesitantes de descrença se faziam de forma quase inconsciente.

Loki! — Gritou eufórico quando a surpresa inicial se esvaiu, correndo em direção ao caro amigo que tanto buscava já sem grandes esperanças. Teria sido finalmente abençoado com uma pitada de sorte?! Praticamente se jogou em seus braços e o apertou com força, onde por mais que a dor tomou o corpo do ruivo de forma excruciante e imediata, ele não soltou um único grunhido ao ter aqueles braços ternos novamente, tendo a certeza que tamanho milagre era real até para um azarado feito ele. Precisavam sentir o corpo um do outro novamente, o cheiro de suas peles, olhar nem que seja para o corpo exaurido que possuíam, somente para que tivessem certeza que tudo aquilo não se passava de um sonho.

Friedrich afastou-se ligeiramente e a expressão de alívio e emoção foi tomada pela surpresa do verdadeiro estado que o druida se encontrava. Se não fossem pelos cabelos ruivos, os olhos verdes e por conhecer tão bem suas feições, possivelmente sequer o teria reconhecido. O rosto estava inchado e com os dois orbes roxos, principalmente o direito em que as pálpebras intumescidas escondiam por completo o olho, além de haver sangue seco ao redor e por baixo das narinas, com cortes nos lábios também manchados com o humor. Os cabelos estavam imundos de terra, com manchas de sujeira a mancharem a pele como se Loki tivesse sido esfregado na estrada. O corpo não deveria estar em estado melhor, dado a túnica parcialmente rasgada, assim como as chausses repletas de buracos e rasgos, faltando-lhe ainda o cinto com o bolso que tinha sempre pendurado com moedas e a bainha da espada. Não havia qualquer sinal do restante da bagagem, e por um breve momento de confusão Friedrich procurou com os olhos ao redor pelo manto colorido que era tão conhecido entre eles.

— Minha nossa, estás ferido! Fui deveras bruto, sinto muitíssimo. Como se sentes? Oh meu bom Deus, o que houve? – Friedrich indagava exasperado ao ver o estado do outro, e teria continuado a se agitar mais ainda se não fosse por Loki a lhe tocar a face com a mão direita, observando seu rosto como se fosse uma mera miragem.

— És realmente tu... – Loki suspirou abrindo os olhos o máximo que os hematomas permitiam, dando em seguida um terno sorriso de alívio onde antes não se imaginava mais capaz de fazer.

— Tolo, quem mais seria?  - Friedrich tocou a mão que repousava em seu rosto, devolvendo o solene sorriso misto de alívio e melancolia que compartilhavam. Era um momento pesaroso a ambos, mas que enfim recebia um pouco de paz com tal reencontro inesperado e dado ao impossível. Contudo tal sensação de paz se dispersou para Friedrich, ficando com a feição taciturna ao estar com o companheiro em tal estado. – O que fizeram contigo?

Loki ficou com o cenho impassível, com os olhos sempre tão vívidos que o alquimista admirava exalando dor e fraquejo, algo que jamais deixara transparecer até nos momentos mais difíceis. Porém, ali parecia que uma parte de seu âmago havia perecido, pegando sua alma e quebrando em centenas de cacos espalhados no além, sem deixar que sobrassem quaisquer forças para que pudesse juntá-los mais uma vez. Tal imagem repleta de desfortuna machucava Friedrich em seu interior, culpando-se por algo que sequer tinha haver, uma forma de buscar um motivo para tamanha desgraça que abateu sob o druida. Pensou que Loki não quisesse falar sobre o assunto, mas o silêncio foi interrompido pela exclamação do mesmo:

— Eu lutei, eu tentei lutar, este foi o meu erro! Porém, sempre lutei, nunca deixei que passassem por cima de mim, jamais deixei ser abatido! Foi assim que sobrevivi pela estrada por tantos anos, guerreei como meu pai e Joshua sempre ensinaram... Nunca ladrões e malfeitores foram meu maior problema. Só que desta vez, esta maldita vez...! – Loki mordeu o lábio inferior e o alquimista pode notar os olhos dele ficando marejados, dando-se conta que nunca havia o visto chorar antes, por maiores que fossem os motivos ele jamais havia derramado uma lágrima sequer, quase o oposto de si que se emocionava facilmente. – Não fui capaz de enfrenta-los, eram tantos, mas tantos! Completamente ferozes e sedentos por sangue, certeza que teriam me matado só para pegarem uma moeda. Senti-me no meio da guerra, com um monte de desesperados se matando para sobreviver e ganhar algo o mínimo que fosse. Largaram-me sem nada, nada! Sumiram com absolutamente tudo que me restava, até as poucas coisas que ainda guardava pois possuíam um significado. Sem piedade, sem piedade nenhuma! O que há com esse mundo? Que espécie de aflição os deuses passaram na mente do povo? Era cruel, bárbaro, mas jamais a esse ponto! Iriam me matar, certeza que iriam, mas me fingi de morto antes que prosseguissem...

‘’Tempos difíceis. Atos cruéis’’ Friedrich lembrou-se de tal frase frente a um momento tão doloroso para eles. De certa forma sentia o alívio de encontrar Loki vivo e longe dos olhos da Inquisição, contudo a desolação de seu olhar, o corpo ferido, a eloquência de sua fala, o relato tenebroso e a falta de elementos tão icônicos como o manto de mil cores se distanciavam muito da figura original que compunha o druida. Tal constatação parecia marcar mais o próprio ruivo, dilacerado em seu interior ao se encontrar miserável de tal forma, abatido como uma lebre tola na sua própria toca.

Friedrich queria chorar diante de tamanha desgraça, mas sabia que aquelas lágrimas não eram suas. Precisava recompor o pouco que havia restado á eles, nem que fosse somente a própria vida nua e indefesa.

— Eu sinto muito Loki, isso jamais deveria ter ocorrido, não mereces uma única centelha de toda essa dor. Queria poder ter evitado tal infortúnio, e por mais que eu não possa recuperar o que foi perdido ou terminar com suas dores, desejo ajudá-lo de toda forma que posso alcançar. – Friedrich estava ajoelhado em frente à Loki recostado num bordo, aproximando-se dele e o enlaçando num abraço cuidadoso à medida que a conversa evoluía e ambos procurassem quase sem pensar o alento em seus braços, um gesto tão natural como o ar que inspiravam.

— Agradeço sua comoção, contudo me dói à ideia de perder todo meu trabalho e o pouco que me restava daqueles que jamais tornarei a ver. Além de toda a humilhação sofrida a me ferir a honra que resta. É difícil esquecer... – Loki deu um longo suspiro, controlando as lágrimas que ameaçavam cair e tentando respirar fundo para acalmar as dores que tomavam o corpo. Logo olhou para o companheiro com um olhar de dúvida entre as sobrancelhas grossas. – Porém... Que fazes aqui Freddie? Como viestes parar por cá? É deveras perigosos andar por aqui, visto o que me acometeu.

— Por ti Loki! Eu o procurava por todo este tempo.

— Devido a que? Foi por não ter aparecido na Catedral? – Loki indagou e o loiro poderia muito bem ter simplesmente aquiescido, mas ao passar em sua mente o motivo de tal jornada não pode conter um momento de silêncio. Não queria expor fatos tão aterradores para o druida já tão fragilizado. Contudo, se pensava em esconder o que ouvira, já não poderia, pois o outro o conhecia bem o bastante para perceber suas dúvidas estampadas no cenho franzido de preocupação. – Por favor, sejas sincero.

O alquimista hesitou por mais alguns instantes, mas não queria mentir diante de Loki naquela situação. Por mais dolorosa que fossem as palavras.

— Tenho motivos para crer que estás sendo procurado pelo Santo Ofício.

Para sua surpresa Loki não parecia impressionado, quiçá não houvesse mais notícia ruim demais para ele que já havia sofrido de tudo um pouco. Deu somente um riso nervoso, como se achasse a situação engraçada ou soubesse que isso aconteceria algum dia de qualquer jeito. Todavia, havia uma frieza que se apossou em seu olhar que intrigou Friedrich, uma reação lúgubre de um homem coberto de pragas e maldições na vida regada á tragédia.

— Foi nobre de sua parte se arriscar para que pudesse me alertar, realmente sou grato mais uma vez. Não conseguimos resolver as coisas da forma que planejávamos, infelizmente. Por isso, ajude-me somente se quiseres e sentir que deve, e se o fizer entenderei se partir após minha recuperação. Se desejar ir agora, também não direi nada, já não há mais o que se salvar de qualquer maneira. – Era difícil ouvir Loki falar de maneira tão séria, com as palavras soando de forma falsa de sua boca enquanto mal olhava para o rosto do companheiro. Friedrich estreitou os olhos, refletindo o que o ruivo acabara de dizer e se perguntando se aquilo realmente saíra de sua voz.

— Do que estás falando Loki? Óbvio que não o deixarei aqui para os lobos e abutres!

— Do acordo oras. Creio que tens razão, não podemos continuar de tal forma.

— Eu não quero partir, quero permanecer em tua companhia. – Friedrich disse com tamanha convicção que Loki se sobressaltou com a atitude, jamais imaginando ouvir tais palavras naquele momento. Pensava que ficaria feliz com tal declaração, contudo só permaneceu confuso com tal afirmação vinda do amigo que acreditava conhecer tão bem.

— Por quê? – Indagou incrédulo, com uma ponta de escárnio bailando em sua língua ao encarar Friedrich com certo desdém. – Logo você querendo embarcar em tais atos ‘’profanos’’, ‘’hereges’’, ou seja lá que outras atrocidades deves imaginar. Não vejo qualquer sentido em tua fala.

— Cabe somente a minha pessoa afirmar as próprias crenças e opiniões, Loki. – Friedrich o disse com a seriedade de um juiz, onde ambos haviam instaurado uma situação tão conhecida entre eles, das diferenças claras de criação e ideias que possuíam e pelo qual sempre discutiam entre si de forma sóbria para não perderem o tato. Ao se encontrarem não imaginavam que entrariam em tal espécie de impasse tão rapidamente, contudo com tantas coisas envolvidas ao redor era de se esperar que jogassem todas as peças no tabuleiro.  Suas diferenças ainda eram um grande cerne da questão.

— O que me intriga, é o que mudou á você. Se é que realmente mudou. – Retrucou desconfiado, o tom denotando certa insegurança que tentava esconder. Foram tantos socos que havia levado, fossem literais ou não, que se tornara ainda mais difícil em acreditar nas palavras até dos próprios deuses.

Por um breve momento o silêncio se fez entre eles novamente, com Friedrich buscando as palavras que pudessem ao menos exprimir uma parcela do que sentia. Pensava que sequer um livro inteiro pudesse explicar todos os pormenores de suas ideias, causando conflitos a este narrador que não sabe se está fazendo seu trabalho direito.

E após encontrar as palavras que podiam ao menos demonstrar uma porção do que tinha a exprimir, Friedrich declarou:

— Antes mesmo de conhecê-lo eu já não era mais o mesmo de outrora, desde minha experiência na guerra eu passei a observar tudo o que me foi proibido notar e a repensar sobre. As pessoas não são como eu acreditava e nem mesmo o mundo que vivemos se porta como esperamos. Esta transformação deu-se aos poucos, pois tentei negar a verdade e as novas ideias que me rondavam de todas as formas possíveis, por que me fora pregado que tais conceitos estavam impregnados com a tão temida heresia. Por isso lutei para permanecer igual ao monge recluso de antigamente, ignorando que a cada novo passo que eu desbravava desse mundo mais eu me distanciava de tal imagem, pois me era provado a cada instante que tais pensamentos eram concretos e longe da blasfêmia que me pintaram.  Estava assustado com tal fato, tinha muito medo de estar minimamente errado, não queria deixar para trás o frade dos tempos em que tudo parecia tão simples de se compreender... Entretanto, depois de tantos acontecimentos regados a infortúnio não sou mais capaz de permanecer o mesmo. Ainda possuo a minha fé inabalável, mas agora me nego a ter uma venda a tapar meus olhos outra vez.

O fôlego lhe faltou ao terminar a ode, respirando de maneira descompassada enquanto se impressionava com as próprias palavras subversivas em tantos aspectos no que havia sido doutrinado. Não as temia como antes, mas ainda se surpreendia com a liberdade. Loki também se impressionara com o discurso, voltando a olhar na direção do outro e ficar com a boca entreaberta esperando moscas. Por incrível que parecesse, tais conceitos não pareciam estranhos frente à pessoa que era Friedrich, somente tornando-se uma novidade por conta de sua postura costumeira de antes. O druida não esperava que houvesse ainda mais a ser dito pelo companheiro, contudo, logo concluiu estar errado:

— Presenciei o derramar de cada gota de sangue dos soldados a morrerem em guerra. Andei entre a nobreza e o clero a vestir o ouro do povo que morre de frio e fome no inverno cruel e sem colheita. Ouvi a hipocrisia dos lábios que se dizem santos, a ira dos que prometem a paz e o ódio de quem se afirma justo. Senti em minha própria pele o medo e desespero que a ignorância causa nas pessoas, do quão perverso seus atos podem se tornar em nome de suas falsas virtudes. Pior ainda foi espelhar tais gestos em tua direção e agradeço aos céus por não ter me tornado tão cruel quanto meus traidores, acabando por presenciar tantas injustiças á vós, a mim e a todo desafortunado que anda por essa terra tão impiedosa quanto à peste que também a destrói. Não quero crer em um mundo que aplauda tanta maldade e sacrilégio contra os próprios irmãos, mas abomina todo o amor que possuo por meu igual. E se mesmo com tamanha inconsistência eu ainda esteja errado em meus questionamentos, não mais me importo de estar errado, pois me foi dado o dom do conhecimento, e nunca mais irei me abster de meus próprios pensamentos. – Friedrich discursou num tom emotivo e obstinado como se não declarasse tais palavras somente á Loki, mas ao mundo. Sentia a garganta apertar-se depois de expor tudo que passou em sua mente, olhando para o companheiro ferido com comoção. O silêncio os tomou mais uma vez, os fazendo refletir tudo o fora dito e ouvido, a situação em que se encontravam e todos os rumos da qual poderiam seguir.

— Tanta coisa lhe passou, para ainda assim querer permanecer junto á um andarilho jogado as traças? – Loki indagou com um singelo sorriso, voltando uma fração de seu eu carismático e pândego. Friedrich devolveu o olhar um tanto mais alegre, envolvendo o rosto do outro com suas mãos e aproximando mais as duas faces.

— Amo-te Loki, tanto que tal sentimento foi capaz de acabar com as correntes que ainda me prendiam a repressão. – Friedrich afirmou sentindo o coração pulsar o corpo inteiro, tomando a coragem de tomar Loki em um beijo curto e inocente, mal selando os lábios que logo se afastaram pela modéstia e embaraço do antigo frade. – Permanecerei ao teu lado, se esta também for tua vontade...

O druida permaneceu em silêncio em segundos tortuosos para Friedrich, com o típico sorriso sacana que somente observava a ansiedade por sua resposta. Achava que sequer precisava responder, visto que somente a presença do outro já era capaz de tornar o pior dos dias um pouco mais suportável. Desejando puxá-lo novamente em sua direção e mostrar o que era um beijo de verdade e jamais larga-lo de novo.

— Temi por muito tempo ter arrancado de mim tudo aquilo que me importa, por isso decidi ter nada. – O riso de vigarista tornou-se novamente um sorriso curto e soturno, todavia com algo que beirava a esperança perdida por ele. – Porém, mesmo assim este nada me foi confiscado. Logo, talvez o que me resta a fazer seja agarrar a felicidade que me é oferecida ao invés de negá-la, e caso ousem tirá-la de mim novamente, ao menos saberei que lutei por ela.

Loki deu um longo suspiro, exausto de tudo que ocorrera por melhor que fosse a presença do alquimista. Ainda estava em pedaços.

— Não será uma luta fácil. – Afirmou quase num murmúrio, sentindo a mão de Friedrich lhe acariciar a face e o fazer olhar na serenidade azulada.

— E quando foi para nós?

Contudo, não estava mais sozinho.


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Notas finais do capítulo

Fim da segunda parte.
O próximo capítulo já tem data para chegar gente, dia 9 de fevereiro, vulgo aniversário de Ode aos Desafortunados! Vai ser um capítulo especial junto á outra surpresinha antes de iniciarmos a nova etapa da história que vai ser bem interessante, hehe
Depois disso a história talvez entrará em um pequena pausa CALMA NÃO SE DESESPEREM, é por pouco tempo no máximo um mês. Vai ser a primeira vez durante esse um ano de escrita que vou passar do tempo de 15~20 dias sem atualização, é algo bem programado mesmo para eu conseguir ajeitar as coisas. Serão apenas dez ou quinze dias a mais sem novo capítulo. É mais para eu focar em outro projeto menor meu que vocês poderão conferir em breve no meu perfil e também programar com mais calma os capítulos da terceira parte de Ode (que vão ser bem interessantes por sinal).
Em breve responderei os comentários! Digam o que acharam desse reencontro e nos vemos em breve! ^-^



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