Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 20
A Procissão e a Catedral


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal! Como prometido mais um capítulo saindo em menos de uma semana, espero conseguir fazer essa façanha mais vezes durante as férias.
Boa leitura! ^-^



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Te Deum laudamus, te Dominum confitemur.

Te aeternum Patrem omnis terra veneratur.

Tibi omnes Angeli; tibi caeli et universae Potestates

Tibi Cherubim et Seraphim incessabili voce proclamant

Era possível esquecer-se de algo tão inerente quanto caminhar? Não era o tipo de acontecimento que Friedrich já havia se questionado, por mais engajado nas questões filosóficas que fosse. Porém, ao desabar no chão em meio a grande York, chegou à conclusão que no seu caso era possível. As palmas de suas mãos ralaram-se até expor a carne, uma parte do tecido da túnica rasgara na manga e seu queixo chegou a tocar o chão úmido de lama. A confusão inicial logo deu lugar para o constrangimento, sentindo o olhar de dezenas de pessoas em sua direção com alguns risos contidos propagados por sua desgraça em meio ao coro devoto da procissão.

Sanctus, Sanctus, Sanctus, Dominus Deus Sabaoth.

Pleni sunt caeli et terra maiestatis gloriae tuae.

Ás vezes sentia formigamentos pelo seu corpo, por vezes seus membros moviam-se sem que notasse, sentia o gosto de algo estando com a boca vazia, ou até mesmo escutar algo que não existia. Ele imaginava que fossem sintomas diversos de sua desconhecida doença, pequenas propagações de algo maior que tanto temia ser flagrado. Eram situações estranhas e passageiras que aprendeu a lidar com o tempo, ás vezes denunciavam uma crise maior e intensa, mas também apareciam de forma esporádica e sem grandes motivos. Tinha algumas suspeitas que caso ficasse perturbado, nervoso ou passado por grande exaustão as chances de algo ocorrer aumentavam, mas não sabia como ter certeza disso, tratando-se apenas de hipóteses no meio da ignorância do desconhecido.

Naquele momento em específico, pareceu que suas pernas se desconectaram do corpo, parando-as de sentir por um momento curto, mas o bastante para que se desequilibrasse e tombasse de forma humilhante no meio da multidão.

Te gloriosus Apostolorum chorus,

Te Prophetarum laudabilis numerus,

Te Martyrum candidatus laudat exercitus.

Te per orbem terrarum sancta confitetur Ecclesia, Patrem immensae maiestatis

Ao menos recebeu a ajuda para se levantar de um casal de meia idade, e ao ser questionado se estava bem assentiu positivamente, mas por uma fração de segundos temeu não ser capaz de permanecer em pé novamente. Friedrich os agradeceu enquanto tirava o pó da túnica, olhando para todos os lados com desconfiança, temeroso que alguém tivesse percebido algo a mais em seu desequilíbrio. Conseguiu prosseguir a caminhada normalmente, mas com a incerteza de uma criança aprendendo a andar pela primeira vez.

Venerandum tuum verum et unicum Filium

Sanctum quoque Paraclitum Spiritum

Nas últimas duas noites percorreu a cidade como um rato a se esconder pelos esgotos, andando pelos cantos mais obscuros para não ser notado, vivendo somente do sustento que trouxera, junto ao medo da violência tão comum em locais como aquele. Não conhecia o lugar ou os locais seguros para se alojar, somente evitando permanecer nos locais infestados de peste ou que proibiam sua presença. O ócio e o tédio tomou conta de si, enfurnado somente com sua cabeça repleta de dúvidas. Provavelmente o oposto do que seria este dia em que reencontraria Loki de uma vez por todas.

Continuou a seguir a procissão, um agradável acaso para alguém que precisava descobrir o caminho para a catedral daquela cidade ainda desconhecida. Não era nenhum dia santo ou comemoração sacra específica, Friedrich certamente saberia disso bem antes.  Era uma cerimônia dedicada à súplica pela piedade divina, para que olhasse seus filhos definhando pela peste e os livrasse de tamanho sofrimento, acreditando que tal onda de mortalidade só pudesse ser interrompida pelo comando de Deus. Friedrich não seguia a multidão somente por direção, mas também por ser um fiel que também passava por aquele tempo sombrio. Cantava os cânticos com emoção e convicção nas palavras entoadas, ainda sabendo cada letra das orações que entoava todos os dias no mosteiro.

Tu Rex gloriae, Christe.

Tu Patris sempiternus es Filius.

Tu ad liberandum suscepturus hominem,

non horruisti Virginis uterum.

Prosseguiam a caminhada como formigas a retornarem para a colônia. Um abundante número de pessoas participavam da liturgia, seguindo o grupo de clérigos que levavam os símbolos religiosos a frente e conduziam toda a procissão. Eles vestiam longas túnicas brancas por baixo dos escapulários negros, mostrando virtude e humildade, simbolizando o luto por todas as almas perdidas, carregando uma grande cruz de marfim e ouro, junto a uma porção de outras cruzes menores de madeira, que não serviam apenas como símbolos, mas como um guia para todos os fiéis. O início havia sido nas proximidades da igreja de São Martin Le Grand, andando de forma paralela ao rio Ouse até chegar ás proximidades de São Michael Le Belfrey, onde se davam os últimos passos até chegarem à grandiosa Catedral de York.

 

Tu, devicto mortis aculeo,

aperuisti credentibus regna caelorum.

Tu ad dexteram Dei sedes, in gloria Patris.

Iudex crederis esse venturus.

 

Mesmo absorto nas orações e na missa que se realizava, vez ou outra Friedrich se pegava pensando sobre o fatídico reencontro com Loki, algo inevitável da qual tomava conta de seus pensamentos de forma ainda mais intensa agora que estava tão próximo de revê-lo. Sua ansiedade se intensificava e bagunçava suas emoções, fazendo com que desejasse não reencontrá-lo e resolver fugir da cidade na mesma medida em que gostaria de abraçá-lo e jamais deixá-lo partir novamente. Afinal, sequer sabia se aquela seria ou não a despedida definitiva, mesmo com todo o tempo que tivera para refletir, ainda assim não conseguia chegar a uma decisão que o deixasse completamente satisfeito. Imaginava que acabaria acatando qualquer que fosse a decisão do outro, contudo até este cenário o desagradava, visto que sempre buscava pensar por si mesmo, não apreciando se colocar tão resignado num assunto deveras sério.

 

Te ergo quaesumus, tuis famulis subveni

quos pretioso sanguine redemisti.

Aeterna fac cum sanctis tuis in gloria numerari.

 

Friedrich sempre gostou de conhecer novas igrejas, não apenas por conta de sua fé, mas por apreciar a arquitetura dedicada a tais monumentos. Era interessante o quanto elas podiam se diferenciar, seja em tamanho ou em estrutura, mas mesmo assim ao olhar para qualquer uma era possível dizer que se tratava de uma casa de Deus. Lembrava-se o quanto ficou maravilhado com a grandiosidade da Abadia de Westminster anos atrás como frade, acreditando que seria difícil ficar novamente tão surpreendido. Por mais que soubesse por descrições alheias sobre a tão famosa catedral de York, mal havia pensado sobre ela por conta dos inúmeros problemas que o assombravam, terminando de se impressionar imensamente a se ver frente a uma das mais belas e grandiosas construções góticas do mundo.

 

Salvum fac populum tuum, Domine, et benedic hereditati tuae.

Et rege eos, et extolle illos usque in aeternum.

Per singulos dies benedicimus te;

Et laudamus Nomen tuum in saeculum, et in saeculum saeculi.

Dignare, Domine, die isto sine peccato nos custodire.

 

Por vários minutos ficou simplesmente admirando a catedral como um entusiasta da arte. Feita de pedra em um tom levemente amarelado, com telhados de madeira pintados de forma que imitassem o mesmo tom, alguns triangulares, outros planos e com detalhes nas ameias, algumas cúpulas de pedra também a enfeitavam. Olhou para cada detalhe das três torres, tão altas que precisava levantar por completo o rosto para ver o seu topo, adornadas com as dezenas de janelas repletas de vitrais que contornavam todas as paredes do edifício, achando a mais bela de todas uma em forma de rosácea. Queria chegar perto de cada uma para estudar o que suas imagens queriam dizer, sobre qual história ou simbolismo elas traziam. Infelizmente não conseguiu adentrar em seu interior, visto que a igreja se arrebatou com tantas pessoas a acompanharam a cerimônia, acabou ficando para trás. Contudo, resolveu contornar o edifício, uma caminhada considerável que contornava a igreja em formato de cruz, podendo assim admirar cada belíssimo detalhe que aquela grande obra tinha a oferecer.

 

Miserere nostri Domine,

miserere nostri.

Fiat misericordia tua, Domine, super nos,

quemadmodum speravimus in te

In te, Domine, speravi, non confundar in aeternum.

Por alguns momentos foi capaz de focar-se em qualquer outra coisa que não se relacionassem com todas as suas perturbações. Fosse sua doença, a peste que desolava tudo ao seu redor, ou a paixão proibida que o levara até ali. Sentiu-se novamente como um jovem frei a simplesmente apreciar os caminhos de uma cidade grande pela primeira vez, com a novidade ao andar pelas ruas de tijolos e olhar para tanta diversidade nas centenas de pessoas que passavam por ele em um único dia. Nas pequenas vilas a divisão entre as classes era mais evidente, mas em um grande centro feito York tal segregação tornava-se um tanto sutil. Podia-se ver nobres andando com suas vestimentas caras e pomposas, de tecidos de todas as cores e bordados deslumbrantes, enquanto nas mesmas ruas perambulavam o povo descalço e de mãos ásperas de trabalho.  Contudo, passavam uns pelos outros feito fantasmas, numa relação que quando muito se tratava da velha condição senhor e servos. Em tantas diferenças que a cidade grande tinha a oferecer, a mudança entre a relação feudal não era uma delas.

Passado o momento de admiração por todo aquele ambiente novo, logo sua mente voltou-se para o verdadeiro objetivo de por que estar ali. Preocupava-se se conseguiria realmente encontrar Loki, pois apesar do acordo, todo o lugar ao redor da catedral era vasto e tomado por uma multidão constante. Olhava para todos os lados sentindo o nervosismo percorrer suas veias, uma parte de si não querendo reencontrar Loki, causada por tamanha ansiedade e vergonha de vê-lo após o que havia se passado dias atrás. Temia as possibilidades daquele reencontro, queria acovardar-se e escapar das escolhas que precisaria tomar, pois sabia que ao encarar os olhos de feiticeiro mais uma vez se preencheria com aqueles sentimentos divididos que o enlouqueciam, o medo de dizer palavras que o traria arrependimentos, que pudessem machucar tanto ele quanto ao druida. Todavia tinha a ciência que precisava encarar aquela responsabilidade, prometera reencontrá-lo e o faria de corpo e alma, por mais que custasse para suas emoções ele enfrentaria a ocasião como já havia enfrentado tantos outros problemas em sua vida.

O coração acelerava-se e a espinha parecia se arrepiar cada vez que avistava algum fio de cabelos ruivos passando pelas ruas, que se destacavam ainda mais no meio da multidão para ele que esperava com tamanha ansiedade alguém com tais características. Começara a detestar a moda das barbas de ponta cada vez que um homem qualquer passava por ele e acabava se confundindo por alguns segundos com a imagem de Loki. A inquietude lhe pregava peças e chegava a se questionar se estava enlouquecendo ao ver o druida por todos os lugares. A sensação era que o tempo havia se congelado como os rios no mais tortuoso inverno, passando lentamente e o fazendo agonizar cada segundo sem saber o que seria dele nos próximos minutos, estes que jamais chegavam.

As pernas reclamaram após horas andando de um lado e para o outro, acabando por sentar em uma das várias escadarias do centro junto a tantas outras pessoas, seja para conversarem entre si, descansar alguns instantes antes de retornar ao trabalho, ou também por que esperavam por alguém. Os sinos da igreja badalavam a cada hora que se passava e preenchiam quase toda a cidade, as ondas sonoras viajando até os campos de aveia e levantando as orelhas dos animais em repouso. De uma força comunal, tendendo ao divino ao fazer os ossos e o fundo dos ouvidos retumbarem em sincronia com cada badalada do cobre e bronze. No início Friedrich havia se assustado, depois ficara maravilhado, mas com o passar das horas e com mais sinos a tocarem passou a detestá-los. Não exatamente os sinos, mas as horas que eles contavam.

Sabia que Loki poderia não aparecer aquele dia, afinal a estrada que percorria era mais longa e nunca se sabia que impropérios poderiam ocorrer para atrasá-lo mais. Afinal, ele próprio quase não havia conseguido entrar na cidade, quiçá o ruivo estivesse tendo problemas semelhantes. Mas ao contrário dele que há pouco havia se tornado andarilho, Loki sabia lidar com esse tipo de situação e Friedrich tinha a certeza que o encontraria ali uma hora ou outra - ou era o que sua mente tentava lhe dizer para que não enlouquecesse em mais preocupações -. Provavelmente teria maiores esperanças no dia seguinte, pois mesmo se Loki chegasse pela madrugada nenhum dos dois ousaria perambular por aquelas ruas tortuosas durante a noite.

Era pleno pôr do sol quando Friedrich ouviu o rosnar do cão que lhe acompanhava a alguns passos longe, virando o olhar em sua direção para saber do que se tratava. O animal com a pelagem eriçada de ira mostrava os dentes afiados em direção a um par de crianças que tentavam roubar um rato que havia sido caçado pelo cachorro. Vestiam roupas de linho esfarrapadas e sujas, a poeira e lama tomava conta de seus pés, mãos e até partes do rosto, com os cabelos desgrenhados precisando ser cortados e repletos de piolhos que caminhavam pelo couro cabeludo claro.  Tentavam pegar o roedor já com as vísceras de fora, esticando os braços e pulando assustadas para trás quando o cão ameaçava avançar sobre elas. Aquela ação se repetia, e teria findado até que as crianças conseguissem o que queriam ou o cão reclamasse de vez o que era dele, se Friedrich não tivesse se aproximado já preocupado com o que o animal quase o dobro dos infantes poderia fazer em meio ao instinto territorialista.

Friedrich poderia ter ajudado aquelas crianças, por mais que mal tivesse como se manter era mais provável que o que oferecesse fosse melhor que a carne de roedor. Contudo, sequer teve a chance de cogitar alguma atitude, pois assim que notaram que ele se aproximava elas correram em disparada até desapareceram na confusão das tendas de comércio, feito baratas a se esconderam em fendas. Uma delas chegou a fita-lo com um semblante arisco, os olhos arregalados parecendo ainda maiores pelo rosto magro, o tipo de olhar bárbaro de alguém faminto o bastante para roubar o rato de um cão.  Friedrich conhecia aquele olhar, via-se nele nos tempos da juventude, em cada um de seus irmãos a raspar o musgo das árvores para ter algo com que se alimentar. Até mesmo nele e em Loki durante o inverno, quando uma caneca de leite parecia um grande banquete depois de dias com o estômago vazio. Era o olhar da fome, num estado cru e frequente em que arrancava a racionalidade do ser humano e trazia os trejeitos mais animalescos à tona, focados somente na sobrevivência e no desespero ao sentir os ossos aparecerem sob a pele.

A peste não era o maior dos problemas, apenas um acréscimo no meio de tantos. Era o que Friedrich pensara naquela noite, dando-se ao luxo de dormir em uma hospedaria de baixo padrão ao menos uma noite, comendo a lavagem que ofereciam como jantar e mesmo assim se sentir grato por ao menos possuir aquele pouco, enquanto temia ao pensar em outros invernos e más colheitas que viriam.

Afinal, eles sempre eram os primeiros a morrerem.

Era como na guerra que havia presenciado, onde os soldados da linha de frente eram os que geralmente eram dizimados pelos opositores, sendo os corpos por qual havia passado por cima enquanto buscava os feridos. Sobravam sempre poucos, alguns em que a última saída era a unção dos mortos, ou grandes sequelas caso vivessem.

Naquela noite teve pesadelos com a guerra, acabando por acordar assustado e suando bicas no meio da madrugada, tendo a vaga impressão de ter visto Loki no meio dum campo de batalha. Os olhos de gato brilhando de forma mística enquanto o mundo desabava ao seu redor, o manto de mil cores esvoaçava-se ao vento enquanto ele lhe estendia a mão. Porém, antes que Friedrich pudesse correr em sua direção, Loki acabou desaparecendo como névoa quando soldados de lados opostos chocaram-se no exato lugar em que o druida estivera.

Retornou á catedral no primeiro raiar do sol, querendo reencontrar Loki de uma vez por todas. O receio daquele encontro ainda permeava pelos seus sentimentos, contudo já estava exausto por tamanha espera e logo começaria a preocupar-se com o paradeiro do amigo, se é que já não estava numa pilha de nervos em seu subconsciente. Os sinos tornaram-se novamente seus inimigos, deixando-o mais soturno a cada badalada que se lançava, passando as horas sem um único sinal do paradeiro de Loki.

Começava a temer se o druida realmente retornaria. Poderia Loki ter mudado de ideia e partido de uma vez por todas? Negando a Friedrich mais uma vez a despedida de alguém querido. Teriam seus sentimentos sido realmente verdadeiros? Abandonando-o em uma cidade estranha como se nada fosse, deixando-o á mingua assim como o restante dos que um dia vira como amigos fizeram. Viu-se tomado por tais inseguranças enquanto notava o sol se por mais uma vez sem que o ruivo retornasse, envenenando-se com tais pensamentos ingênuos. Quiçá era uma forma de sua mente encontrar desculpas para não imaginar algo mais trágico durante a caminhada de Loki. Preferindo se ver ferido ao invés do outro.

Não. Pensou em determinado ponto, repreendendo seus próprios pensamentos Loki jamais faria isso. Se o fizesse, então não há mais o que crer na humanidade.

Mas tal constatação não o acalmava, na realidade somente piorava todos os seus temores. Não queria imaginar as barbaridades que poderiam ter desviado Loki de seu caminho, recusando-se a sair do centro da catedral enquanto não tivesse o vislumbre do amigo. Enquanto o medo o remoía, as lembranças também o encobria para tornar seu desespero ainda mais turbulento. Sentia falta de admirar os olhos esverdeados como a mais preciosa das joias, do raro toque em seus cabelos de fogo, o cheiro arbóreo de sua pele, de sua voz gutural a sempre sacaneá-lo ou a dividir suas histórias. Queria sentir seu abraço novamente e mergulhar de vez nos sentimentos que tivera ao ter os lábios selados com o dele. Contudo, por mais fortes que fossem seus sentimentos por Loki, o receio por sua fé ainda o incomodava no fundo da alma.

Todo o tempo extra que teve para pensar não pareceu o bastante para resolver seu dilema final, não conseguia ver um sinal concreto de qual seria a melhor decisão quando reencontrasse Loki. Detestava não saber o que fazer, se seguiria os dogmas que sempre seguiu ou abraçaria de vez seus sentimentos pelo pagão, agora não possuindo ao menos a certeza se teria tal escolha difícil. Isso o fazia querer chorar mesmo em meio a tantas pessoas, contudo ele continuava firme, os olhos azulados olhando para todas as direções a todo o momento, desafiando os sinos que badalavam e o sol que se punha.

Teria esperado durante toda a noite por Loki, quiçá por toda uma vida, naquela situação não temia mais a escuridão e os malfeitores que a acompanhavam. Estava tão afoito em vê-lo novamente, ter a certeza de que estava bem, que parte de sua racionalidade se dissipara, permanecendo sozinho e determinado no centro daquela grande e desconhecida cidade. Deixou que a brisa da madrugada incomodasse sua pele, vendo os lampiões se apagarem um por um e até os sinos terminarem de badalar para o descanso de todos. Seu maior medo naquele momento era o raiar do sol sem o aparecimento de Loki. Provavelmente sairia de York, contudo, será que tentaria encontra-lo pela vastidão da Inglaterra sem ao menos saber por onde ele poderia ter passado? Por mais que ainda não tivesse sua decisão, não queria que o destino a tomasse para si, tirando Loki dele sem mais explicações.

Em dado momento se viu obrigado a sair de seu estado de vigília, ao perceber a aproximação de um grupo pequeno de cavaleiros se aproximando, acabando por se esconder por trás de uma das várias muralhas que contornavam as escadarias da cidade feudal. Não pareciam estar patrulhando, andavam de forma pândega e conversando despretensiosamente um com o outro, provavelmente estavam retornando de algum serviço requisitado. Friedrich encolhia-se mais e mais ao ouvir as vozes tornando-se mais claras e próximas, não desejando ser visto e levado a uma masmorra.

Não havia exatamente como se refugiar. No meio das ruas simples da baixa plebe tinha o temor do assalto e assassinato, enquanto nas ruas centrais e próximas aos grandes senhores ele poderia ser preso por vagabundear. Assassinato também, nada impedia. Ao permanecer nas ruas voltava ao estado de rato, andando sorrateiro e depressa dos predadores.

— [...] insistindo em largamos a casa e sair da cidade, todavia retruquei ‘’E para onde iremos Amabel? Existe lugar no reino sem que haja portas marcadas em vermelho? ‘’. Chorastes após o colóquio, mas fiz pouco caso, pois não hei de me arriscar perder as terras de vosso pai. – Ao começar a discernir as falas, Friedrich encolheu-se ainda mais em seu lugar, sentindo a lama ao seus pés mergulhar ainda mais a barra da túnica. Tentava conter a respiração nervosa, acelerada pelo fluxo sanguíneo ainda mais constante.

— Digas á ela que se o bom Deus continua a protegê-los de todas as mazelas, peste alguma adentrará vossas portas. Oras, vós sois gente de renome, não há com que se afligir com causos dos fâmulos e lavradores. – A voz de mais um cavaleiro na conversa somente tornava os ouvidos do mero plebeu ainda mais atentos, preocupado com a descoberta de seu paradeiro e sem dar a mínima sobre os problemas de Sir Richard Culbert e seus conterrâneos nobres.

— Pelo contrário companheiro Packard, sabemos que o Senhor possuí sua mão sobre essa mazela, contudo os degenerados aos arredores são capazes de espalhar a perversidade até as almas puras. Há pouco recebi a notícia da casa dos Bowen azarada pela temível peste negra. – Mais alguém contribuiu com a discussão, fazendo com que Friedrich fechasse os olhos agoniados numa forma inútil de proteger seus temores. Estremecia, sentindo a lama molhada penetrar em suas roupas as ensopando.

— Aposto meu melhor cavalo que foram os ciganos a trazerem essa desgraça ao reino! Não é atoa o colapso que se tornou a terra dos francos, estando repleto com esse tipo de gente. – Sir Culbert disse exasperado e Friedrich pode ouvir o tilintar da armadura em movimento tornando-se ainda mais próximo.

— Não somente eles, todos os hereges e adoradores do Diabo respingam sua perversidade em nós que de nada possuímos culpa. É um alerta divino para o dever de purificarmos a terra. – Disse o cavaleiro, a voz começando a tornar-se levemente distante mais uma vez, provavelmente com o grupo deixando o centro para adentrar em uma das ruas que o contornavam. Friedrich não pode conter um suspiro de alívio saindo de seus lábios, que prendiam a respiração até então.

— Em verdade, aquela bruxa que invocava feitiços pela torre do Monge não deve ser a única criatura degenerada a espalhar o pecado por essas terras! – Packard bradou e pela forma que o colóquio prosseguia Friedrich conseguia imaginar os outros dois assentirem para tal afirmação. – Forca e pira não são nada pra esses demônios, que de toda forma pagarão por seus atos no Inferno, mas em vida continuarão a perverter a santidade da criação do Altíssimo. Lembram-se como ela se demorou a padecer com a corda no pescoço? Sinal de sua natureza pagã e maléfica.

— Estás correto Sir Packard, estamos rodeados por esses tipos! Digo-lhes pelas denúncias do ducado, ouvi sobre um dito barbeiro a criar poções que se dizem milagrosas, contudo não passas de um feiticeiro de pacto com Satã, que em troca de tais poderes ficara marcado com a cabeça vermelha e os olhos substituídos pelos de um gato!

Friedrich levantou a cabeça antes encolhida nas próprias pernas, sentindo um arrepio lhe correr a espinha ao ouvir aquilo. Pois facilmente uniu os fatos, tendo a imagem de Loki com aquela descrição, pois ele próprio já havia pensado tais ideias mirabolantes e absurdas ao conhecê-lo.  O medo que antes sentia por si fora repassado no amigo distante, temeroso com o rumo que aquela conversa alheia estava levando. Pois por mais que não fosse do próprio druida que discutiam, sabia que Loki poderia muito bem ser comparado com tal história.

Arriscando-se mais, praticamente se esquecendo do medo que tanto o dominara antes, Friedrich levantou-se do chão enlameado. Ficando abaixado, mas rastejando-se para ouvir com exatidão o que os cavaleiros tinham a dizer. Atento, o alquimista sentia algo como fogo a lhe percorrer as veias ao escutar as declarações cheias de fel dos desconhecidos.

— Afirmo que se me aparecer tal blasfemador herético por essas terras, aplicá-lo-ei a infalível pena de uma estaca a atravessar o corpo! Não há de espalhar suas profanações de tal forma! – Já estava em certa distância para que Friedrich pudesse ouvir Sir Culbert, contudo o mesmo bradara em tamanho alvoroço que compreendera cada palavra, junto aos risos aterradores de seus companheiros. Por um tempo que pareceu se congelar em sua existência, Friedrich permaneceu estático, os olhos arregalados e o peito acelerado tentando digerir o que se passava.

Raiva. Ira. Fúria. Palavras que jamais pensou serem usadas para descrevê-lo em qualquer que fosse a situação agora tomavam conta de toda sua pessoa. Nunca fora uma pessoa violenta, mesmo com tantas desgraças que havia passado em vida, mas desta vez ele havia atingido seu limite de pacifismo. O ódio fomentava sua pele tingida de rubro no rosto, os punhos foram cerrados com força, querendo correr atrás do grupo de soldados e acertar em cada uma de suas faces, sentir suas mandíbulas estalarem em suas mãos.  Só não o fazia pelo medo que ainda o tornava racional no meio daquele turbilhão de cólera, tomado pelo asco de ouvir tais ameaças dirigidas para a pessoa que tanto estimava. Quiçá não teria sentido tamanha revolta se tais impropérios fossem dirigidos a si, todavia como se direcionaram a Loki uma luz pareceu se acender em seu âmago, um sinal a lhe mostrar tudo àquilo que se negava a escutar, sendo a última gota de um veneno do qual seu corpo lutou por tanto tempo.

Ao analisar as palavras cruéis, o medo que tanto o perturbava até mesmo a túnica mergulhada em lama naquela noite, Friedrich levantou-se de forma convicta. O dilema que tanto o massacrou por todos aqueles dias, agora dissipava-se feito as nuvens após uma tempestade, um verdadeiro sinal para que conseguisse finalmente perceber o que realmente precisava fazer.

Para alguém sempre imersos em dúvidas e receios, Friedrich jamais esteve tão convicto no que fazer.

Encontraria Loki, ou queimaria o mundo inteiro aos seus pés.


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Notas finais do capítulo

FOGO NO PARQUINHO!!!! Como se essa história já não tivesse confusão suficiente
O canto que aparece durante o capítulo é o Te Deum.
Comentem o que acharam - estou pensando em chamar os Ghostbusters para caçar esses fantasmas - e nos vemos no próximo capítulo! ^-^