Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 12
O Túmulo e o Fumo


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal! Aqui estou com mais um capítulo, boa leitura! ^-^



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Caso seu corpo fosse um pouco mais forte, se ao menos não houvesse tantos ossos amostra, quem sabe aquela menina poderia ter sobrevivido. Contudo, a realidade era que remédio ou poção alguma conseguiria fazer grandes efeitos em alguém tão fraco tentando lutar contra a doença. Pouco lençol foi necessário para cobrir o cadáver mirrado e de cova estreita.

Friedrich não queria perder a esperança, mesmo quando o padre fora chamado para dar a unção. Visto que ele mesmo havia quase retornado dos mortos um dia, esperava que tal milagre pudesse se repetir em outras pessoas. Contudo, seu caso mostrava-se cada vez mais raro ao não ser capaz de presenciar tal situação noutros. E aquela esperança que havia no princípio tornava-se apenas mágoa e dor, ficando amargas bem no fundo da garganta ao ver-se novamente no lugar de anjo da morte.

— É mais fácil quando você se prepara antes. Nem sempre dá para esperar por um milagre. – Disse-lhe Loki enquanto observavam a alguns passos de distância a cova sendo coberta de terra. Seus olhos estavam tão escuros feito musgo. Ficaram daquela forma ainda antes da morte da menina, onde apesar de não desistir de seus pacientes até o último suspiro, Loki já havia aprendido os sinais de uma derrota para poder prevê-la.

— Não sei se conseguiria. – Friedrich suspirou, cansado pela noite sem sono e do luto logo em frente.

— Fará uma hora ou outra, ou enlouquecerá. – O druida disse em devaneio, quase que falando para si mesmo. Fazia uma manhã cinzenta e com um ar que não trazia frescor algum. Uma fogueira estava acesa não muito longe, fazendo voar as cinzas em seus ombros como neve que pousa sem perguntar. Aquela parecia ser uma primavera de poucos frutos.

Ficaram mais tempo naquele feudo do que planejavam, não apenas pela morte da paciente, mas pela própria indecisão de ambos. Não sabiam se avançavam para o leste ou se aventuravam pelo litoral do Mar do Norte. Já haviam andado sem rumo por tempo demais, era perigoso se perderem em uma terra vasta, podiam parar em armadilhas de saqueadores caso não soubessem onde estava indo.

Contudo, era de se aproveitar quando encontravam um lugar que parecia tranquilo. Apesar de haver pessoas com peste definhando nos becos e interior das choupanas, não havia problemas maiores além da falta de abrigo e de ter de negar por aquilo que todos realmente precisavam.

— Peste? Não senhor, nós não tratamos da peste. – A resposta era rápida, quase sem precisar pensar tamanha era a certeza de suas palavras. Havia vergonha pela covardia, medo da morte e decepção pela ignorância da moléstia. Algumas pessoas acabavam por largarem insultos após isso, visto que eles se apresentavam a princípio como médicos e teoricamente deveriam saber curar qualquer enfermidade. Bom se o fosse, mas apenas havia o pouco conhecimento que acumularam pela vida.

Outras apenas saíam cabisbaixas ao se verem sem mais alternativas para curar os entes queridos, porém nunca surpresas, pois a morte sempre vinha como um animal faminto ao pote quando se tratava de tal caso.

O que sobrava á eles era sempre o mesmo silêncio e vazio, tal qual a resposta que recebiam ao questionarem as mazelas que assombravam todos. A peste havia aparecido como um sinal de que não havia ao que se agarrar naquele mundo, pois não havia como lutar contra ele.

Era noite, com as estrelas escondidas pelas nuvens que insistiam em permanecerem cinzentas. Uma leve brisa podia ser sentida, trazendo certo frescor para o clima abafado que se preparava para chuva. Por mais que infortúnios e desgraças assolaram pessoas daquela vila com morte e peste - muitas vezes as duas relacionadas - havia previsão de boa colheita naquele ano que poderia trazer grande prosperidade aqueles que tanto necessitavam de uma posição mais digna. Assim, era possível se ouvir o dedilhar de um violino a distância, junto há um pouco de música cantada sem grandes pretensões de ser afinada, atraindo uma pequena roda de dança e conversas solta entre vizinhos e amigos junto a uma fogueira.

A dupla observava de longe aquele pedaço mínimo de bonança, era comum como forasteiros acabarem apenas por serem espectadores de tais atividades dentro de uma comunidade. Além do mais, ambos faziam parte da parcela que não se sentia animada o bastante para dançar.

Com a ponta afiada de uma faca, Friedrich fizera pequenos furos nas extremidades de seus papéis, todos nos mesmos lugares e proporções. Com linha e agulha os costurou com cuidado, deixando os fios deslizarem e se entrelaçarem nos papéis que se uniam. Um pedaço de couro estava separado, apenas um pouco maior que as folhas para formar a capa. Aquele seria de longe o seu melhor trabalho de encadernação, no mosteiro possuía a disposição de uma abundância de materiais que permitia transformar folhas soltas em exemplares de livros graciosos. Contudo, apesar de ter deixado para trás os acabamentos em ouro, conseguia formar alguma coisa decente apenas com o que tinha a disposição.

— E quanto à linha desperdiçada? – Indagou Loki de pé e recostado num montante de feno, o observando com o canto dos olhos. Segurava na mão seu longo cachimbo, deixando a visão de seus olhos incandescente nublada pela fumaça que saía quase como uma chaminé.

— Por quantas moedas o fumo? – Friedrich retorquiu erguendo a cabeça e olhando o druida com os olhos estreitos e cenho franzido, desafiando-o. Ficaram naquela batalha silenciosa por alguns segundos, esperando por uma réplica ou derrota enquanto se fulminavam apenas pelo olhar de desdém um do outro.

— Justo. – Disse Loki por fim, revirando os olhos. Friedrich não conteve um sorriso mínimo, desviando o olhar para não parecer tão arrogante assim frente à vitória. Mas logo voltou olhar em direção ao emaranhado de fios ruivos, visto que o companheiro lhe apontava com o cachimbo. – Se bem que já estivemos em situações melhores, estava até mesmo pensando em finalmente mandar a espada para um ferreiro desentortá-la e afiá-la. Entretanto, nunca se sabe por quanto tempo teremos sorte, melhor não começarmos a exagerar nos gastos.

— De acordo. – Concordou, fazendo com que terminasse aquela curta desavença.

— Aceita? – Loki estendeu o cachimbo em sua direção mais uma vez, dessa vez oferecendo-o. Friedrich olhou para o objeto com receio, mas acabou aceitando-o mesmo assim, tragando o fumo. Acabou engasgando-se com a fumaça, tossindo enquanto recebia apenas risos do companheiro.

— Perdi o costume há muito tempo, agora creio que é melhor nem retorná-lo. – Friedrich comentou finalizando com uma última tosse.

— Poupa algumas moedas. – O druida deu de ombros, voltando a analisar de longe a festividade no centro do vilarejo, deparando-se com alguém olhando em sua direção. Ergueu as sobrancelhas surpreso, porém curioso. – Aquele homem está olhando para mim? É. Definitivamente sim.

— E no que isso implica? – Questionou o antigo frade que não tirava os olhos das folhas da qual costurava.

— Depende. Seria de afronto, curiosidade ou interesse? Poderia me apresentar ou levaria apenas escárnio? Para ser sincero, nem lembro como se apresenta de maneira adequada.

— Deduzo que não é simples e inocente apresentação. – Friedrich comentou sentindo um amargo no fundo de sua garganta, incomodado com a ideia. Esperava ser por conta dos preceitos da Palavra, ou era o que queria pensar.

— Se depender da minha sorte, não. Aquele definitivamente não é um olhar de interesse. – Loki bufou, decepcionado frente ao rosto de asco que o desconhecido lhe lançou ao ter seu olhar retribuído. ‘’Malditos andarilhos’’, provavelmente era o que ele dizia a si mesmo. – Eu diria que é você quem está me azarando, contudo possuo má sorte desde sempre. Sabe meu nariz quebrado? Ganhei ao confessar meu primeiro amor, maldito seja Gerald de Lancaster. Nunca se deixe levar por olhos bonitos.

Concordo. Friedrich se sentiu tentado a dizer, mas não deixou se levar pelo ímpeto.

— Creio ser plano divino.

— O murro na minha cara?

— Permanecer longe do pecado. – Esclareceu, se contendo para não revirar os olhos, mas era difícil ser levado a sério por Loki que apenas se sentou ao seu lado enquanto ria.

— Peça para seu deus parar com isso então, está ficando enfastiante. – Disse enquanto fazia anéis de fumaças, divertindo-se em irritar o outro ao invés de lamuriar por sua própria desgraça.

— Não posso questionar a vontade de Deus, mas posso questionar a dos homens. Dando-lhe algum crédito, acho que um soco é uma atitude exagerada.

— Meu rosto esmurrado agradece.  – Loki deu um sorriso seco, virando parte de seu rosto em direção de Friedrich que se viu perdido naquele olhar sem perceber, deixando a agulha parada por longos segundos. – E quanto a você? Não vai procurar por ninguém para dançar?

Friedrich arregalou os olhos, não sabendo se por notar o efeito que o outro fazia em si ou por conta da pergunta.

— Acredito que a dança para mim está como o fumo, não o faço há tanto tempo que seria um verdadeiro desastre a tentativa. – Justificou, desviando o olhar e voltando a prestar atenção na própria obra. – Ademais, não sei que tipo de criatura gostaria de dançar comigo.

— Eu dançaria. – Falou sem pestanejar, dando-se conta do peso de suas palavras apenas quando foram soltas no ar. Contudo, Loki não era do tipo de pessoa que media o que dizia, não se preocupando tanto com o que falara, e sim com Friedrich que pelo espanto acabou espetando o próprio dedo. – Está tudo bem?

— Nada de grave. – Friedrich disse estando mais preocupado com o coração saltitando do que com o furo em seu dedo. – E não me diga tais sodomias! Mesmo que caçoando, há um limite para esse seu humor incurável.

— Desculpe se fui indecente, apenas quis dizer que não és ruim aos olhos. Aposto que conseguiria uma dança facilmente. – O ruivo se explicou. – Pode ter saído do mosteiro Freddie, todavia parece que ainda continua frade.

Friedrich ficou calado, pois num primeiro momento não havia resposta para tal. Olhando para a costura das páginas com pesar, sentindo a verdade das palavras do companheiro penetrar seu âmago.

— Não é fácil perder o costume, por vezes até esqueço-me de ao menos tentar quebrar a rotina. – Divagou, sem tirar os olhos da linha e da agulha.

— Bem, creio que a melhor forma de o fazê-lo é querendo. Disse que a dança não lhe apetece, então é só esperar por outra oportunidade para deixar de tanta santidade. – Loki falou com seu sorriso sacana, recebendo um leve empurrão do outro.

— Irei procurar parar com certos dogmas agora que vivo da estrada, mas continuo católico seu herege indisciplinado! – Friedrich rebateu, fazendo de falsa mágoa enquanto o outro já abria um enorme sorriso.

— Sabes que minha boca é maior que o próprio juízo. – Loki tragou mais do cachimbo, soltando alguns anéis de fumaça e lançando seu sorriso sacana de sempre. Friedrich era orgulhoso demais para lhe ceder o sabor da vitória tão facilmente, contudo por mais que Loki acabasse com sua paciência e ultrapassava os seus limites, acabava sempre sorrindo por sua causa em situações bobas como aquela.

— Há previsão de partida? – Friedrich indagou, procurando mudar para um assunto que não fosse ele próprio. O companheiro parou de segurar o cachimbo com a mão, segurando-o apenas com a boca enquanto matutava sobre a questão.

— Hm... Agora é um bom horário.

— Agora?

— Agora mesmo. – O druida levantou-se, começando a recolher os pertences e a colocar as sacolas nas costas enquanto era observado com descrença por um Friedrich atônito.

— Está falando sério? Por vezes não consigo dizer se está apenas sendo tolo ou se realmente quer dizer isso. – Por via das dúvidas, Friedrich já começava a guardar a linha e o caderno ainda sem uma devida capa.

— Claro que estou! O clima está agradável e estamos reabastecidos de pão. E apesar de ser noite vamos pegar a estrada real, logo não é difícil perder-se. Apenas reze para que nenhum malfeitor nos pegue de surpresa, seja para meus deuses ou ao seu, mas isso não deixa de ser nosso risco diário de qualquer forma. – Loki lhe estendeu a mão para ajudar a se levantar, coisa que o alquimista aceitou de bom grado, levando já consigo uma trouxa de tralhas nas costas.  O ruivo assoviou com os dedos, chamando pelo cão que apareceu trotando alegremente até eles.

— Já se decidiu que caminho tomar? Sei que andou pensando nisso nos últimos dias, gostaria de ter sido mais útil nas opiniões, mas infelizmente ainda sou novo nesse mundo de peregrino.

— Realmente não é uma decisão tão fácil, há muito a se levar em conta, ainda mais agora com essa maldita peste acabando com tudo e todos. Porém é ainda mais perigoso andar sem rumo, é preciso ter ao menos um objetivo para percorrer essas estradas, que quando alcançado será substituído por outro. Não é preciso se desculpar por isso Freddie, com o tempo também pegará jeito. – Loki deu um aperto no ombro do amigo, demonstrando apoio.

— Espero que sim, contudo não me respondeu minha pergunta inicial. – Friedrich apontou com um sorriso audaz no rosto.

— York. Estive lá somente uma vez quando era mais jovem, no primeiro ou segundo ano desde que fui embora de casa. É uma cidade de ruas confusas e apertadas, mas cheia de vida assim como todo grande centro, seria interessante revê-la agora depois de tanto tempo. – Loki disse relembrando-se da época triste que foi sua primeira visita a cidade, visto que ainda sofria pela perda da família. Contudo, foi neste mesmo lugar que conheceu Joshua, alguém que se tornou um grande amigo e que lhe ajudou muito no processo de luto. Visitar a cidade agora seria como uma resposta para a própria vida de como havia conseguido dar a volta por cima, podendo vislumbrar uma York diferente da que conheceu pela primeira vez.

— Já estive em grandes cidades, mas nunca tive a chance de conhecer as do norte do reino, como York. Sendo assim, confio em você como meu guia.

— Como se eu já não o fosse. – Disse rindo, levando um leve empurrão de Friedrich que mostrava os dentes sem perceber num largo sorriso que Loki não se cansava de espiar quando o tinha oportunidade.

York estava longe, mas a distância não era o que realmente importava.


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Notas finais do capítulo

Comentem o que acharam, nos vemos no próximo capítulo!



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