Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 11
O Pagão e o Manto


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal! Acho que é a primeira vez que posto em dia de semana, mas como eu já estava demorando para postar resolvi fazer agora mesmo que terminei de revisar. Percebi que o número de favoritos e acompanhamentos aumentou um pouco, por isso quero agradecer a todo pessoal novo que apareceu e os que favoritaram, vocês são incríveis ♥
Espero que gostem do capítulo! ^-^



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Como narrador dessa história, creio que o leitor acredite que continuaremos do ponto em que paramos. Não os culpo, afinal isto é o que vinha acontecendo até este momento, uma linha reta em direção á o que virá ser a última página. Entretanto, vamos entortar esta linha, fazê-la virar e voltar ao tempo, mudar nosso cenário e acompanhar outros acontecimentos na vida de tais personagens.

Não é mais primavera de 1349, e sim o outono de 1337. Permaneça no reino da Inglaterra, mas vire seus olhos em direção ao norte do país para o condado de Lancashire, em um pequeno feudo isolado próximo do Mar da Irlanda.

Com uma diferença de mais de uma década do primeiro encontro entre os dois, não havia qualquer sinal da existência de Friedrich para Loki naquele momento. Quase no outro extremo do país, o noviço ainda estava se acostumando com a rotina do mosteiro e esforçando-se para aprender a ler.

Loki naquela hora estava concentrado, abaixado para esconder-se na vegetação e com os olhos estreitos e em direção a um tordo, que bicava um pedaço de tronco oco em busca de alimento. Sua perseverança era maior que o cansaço de seus braços e pernas exaustos de um dia de trabalho com os animais, especialmente os bodes que lhe causavam mais problemas. Passaria o dia aprendendo a caçar se pudesse, mas aí precisaria enfrentar a ira dos pais, sendo preferível enfrentar os cornos de um caprino ao invés disso. Por sorte, conseguira se escapar das tarefas no entardecer, tendo sobrado tempo para seus próprios interesses antes que escurecesse.

Lentamente levantou o arco que vinha segurando até então, mirando a ponta da flecha em direção ao pássaro, levemente estremecendo suas mãos ainda inexperientes. Focando-se no alvo por longos segundos, até ter a coragem e certeza o bastante para atirar.

— Falharás. – Sentiu o arrepio de um sussurro e praticamente deu um salto, soltando um arquejo pelo susto e deixando que o arco caísse no chão. O pássaro saiu voando, fugindo da ameaça que antes se escondia. Loki olhou para cima, deparando-se com o irmão rindo enquanto apontava para ele de forma zombeteira. – Falhaste!

— Por sua culpa! – Loki levantou-se irado e de punhos cerrados, porém não fazendo grande diferença já que ainda precisava deixar o queixo bem para cima para conseguir olhar nos olhos de Owen. Sendo nada amedrontador, Loki era no máximo a imagem cômica de um garoto vermelho dos pés á cabeça.

Todos os seus irmãos até aquele momento haviam herdado a altura da mãe e os cabelos castanhos do pai. Entretanto, Loki fora o azarado que havia ficado com os traços do qual ninguém queria dos progenitores, sendo os cabelos ruivos de Fionnuala e a falta de estatura de Eoghan. Sua irmã Lynnet era a única a dividir os fios de fogo junto a ele e a mãe, mas sendo um bebê de colo praticamente não havia muito com o que o garoto se espelhar frente aos outros sete irmãos.

— Sabias muito bem que ia errar. Era um alvo muito pequeno para um mero aprendiz. – Owen deu um peteleco no nariz do mais novo enquanto se abaixava para pegar a flecha derrubada, fazendo com que Loki trincasse os dentes de raiva. – Deixe tal trabalho para os habilidosos.

— Como eu! – Sua irmã Edith apareceu por trás de Owen, esvoaçando os volumosos cabelos encaracolados. Os dois garotos lhe olharam com desdém, mas sabendo que realmente não podiam negar tal fato.

— Convencida. – Owen disse revirando os olhos.

— O que estão fazendo aqui de qualquer forma? – Loki questionou ainda irritado, cruzando os braços enquanto olhava de forma fulminante para os gêmeos.

— A mãe deseja falar com tu. – Disse Edith.

— E mando-nos buscá-lo. – Owen completou.

Foi como se visse todos os seus pecados passarem por sua mente em um único segundo. Loki sentiu um arrepio lhe percorrer a espinha, perguntando-se o que poderia ter feito de errado daquela vez. Ele não era nenhum exemplo de bom garoto, vivia aprontando alguma travessura ou se metendo em encrenca, por mais que fosse castigado em seguida, como um bom teimoso ele persistia no erro. Porém naquele momento, Loki não conseguia se lembrar de nenhuma torta roubada ou peça pregada que já não tivesse sido repreendido, fazendo-o ficar não só curioso como também temeroso do que Fionnuala queria lhe dizer.

Seja qual fosse seu fadário, Loki seguiu os irmãos pela floresta que se abria conforme chegavam ao centro das terras de Lorde Damian. Desciam por um terreno íngreme e ardiloso, com folhas de outono cobrindo a estrada como um tapete, escondendo pedras e buracos esperando para serem tropeçados.

— Opa! – Disse Owen agarrando o braço do mais novo rapidamente antes que despencasse morro abaixo.

— Obrigado. – Loki murmurou um tanto constrangido. Malditas folhas!

— Toda guarda do mundo para nosso pequeno Loki. – O mais velho deu três leves batidas em seu cabelo ruivo como em um cão. Mas Loki deu um tapa em sua mão, cruzando os braços irritado. A dupla riu da reação do caçula.

Começaram a passar pelas primeiras choupanas e casebres, com o caminho tornando-se mais estreito e coberto de lama e dejetos. Ao se depararem com os primeiros aldeões, eles começaram a andar de cabeça baixa e evitando qualquer tipo de contato visual, uma forma de tentarem passar despercebidos e se mostrarem obedientes. Ainda assim sentiam os olhares em suas costas, os cochichos e dedos apontados.

O que havia dado em Lorde Damian para permitir tal laia em suas terras? Era o que quase todos se perguntavam, sendo que a resposta era muito simples: Eoghan.

O pai de Loki era uma figura austera, sendo estoico e resistente feito um corcel. Era acostumado com o trabalho duro, sabia lutar e dar a volta por cima em qualquer adversidade que visse, pois o que não tinha de modos possuía em engenhosidade. Seguia piamente todos os seus princípios e crenças, mas também era um homem extremamente leal e justo. Não havia pessoa melhor para o nobre para lidar com toda a mercadoria que precisava levar para a capital do condado.

Não importava se lhe dessem cavalo, mula ou os próprios pés. Eoghan partiria num dia e voltaria exatamente no previsto, sem uma única moeda seja de ouro ou prata faltando. Nunca nada fora saqueado, mesmo empunhando apenas uma machadinha e arco o homem conseguia assustar qualquer malfeitor que aparecesse. Além de ter sua penca de filhos sempre o acompanhando, que o ajudava em qualquer viagem. Até mesmo Loki, não tendo nem quatorze verões completos já havia viajado com o pai diversas vezes junto aos irmãos.

Entretanto, apenas o Lorde não se importava com a presença de Eoghan e sua família – contando que continuasse o servindo e pagando os impostos. O padre os abominava, consequentemente os demais aldeões não os toleravam. Evitavam falar com o restante das pessoas para evitarem conflitos, indo para o centro da vila apenas para passagem ou quando estritamente necessário. Não criavam qualquer tipo de laços com outras famílias por segurança, morando quase nos limites das terras de Lorde Damian.

A única confiança que tinham era neles mesmos.

Os irmãos ouviram certo tumulto próximo à igreja enquanto passavam pelas ruelas. Não costumavam passar por aquele lado, por isso apenas viraram suas cabeças por alguns segundos, curiosos com seja lá o que havia agitado aquele pacato vilarejo. Teriam simplesmente continuado caminho, se uma voz conhecida não tivesse se sobressaltado.

— Edgar?! – Os três disseram em uníssono antes de correrem em direção da desordem que até então tentavam evitar.

O centro da vila era um pouco mais organizado do que seus arredores, tendo um curto trecho de pavimentação de pedra que cobria parte dos arredores da igreja, da casa do tabelião e do poço, indo em direção ao manso senhorial protegido por um paredão de madeira e alguns guardas. Um grupo de aldeões estava reunido em círculo, incentivando o que parecia ser uma briga. Owen começou a adentrar o tumulto empurrando quem estivesse na frente sem qualquer delicadeza. Loki o seguiu, quase sendo impedido pela irmã que tentou pegá-lo pela túnica e não alcançando a tempo.

No centro daquela plateia eufórica, Edgar – mais um dos vários irmãos de Loki – rolava e digladiava na poeira do chão com outro aldeão, ambos lutando de punhos cerrados e sangrentos. Assim que Owen começou a tentar trazer o irmão para fora da briga, um dos cavaleiros do Lorde apareceu para acabar de vez com o tumulto, fazendo todas as pessoas que antes assistiam a cena se dispersarem com medo de uma represália.

— Qual o motivo da perturbação da paz alheia? – Perguntou o soldado que trajava uma cota de malha por baixo do manto com o brasão da família do Lorde, já segurando o cabo da espada em sua bainha com uma mão enquanto a outra segurava a gola da camisa de linho do adversário de Edgar.

— Foi o herege quem iniciou a briga Sir! – Defendeu-se o homem que tinha a barba suja de sangue escorrendo de seu nariz quebrado.

— Mentira tua, seu miserável! – Edgar esbravejou tendo que ser contido tanto por Owen quanto Loki, que teve de agarrar um de seus braços para não avançar no outro mais uma vez.

— Diante deste impasse, é necessário que chame Vossa Senhoria para julgar seus atos? – O cavaleiro questionou de queixo erguido, analisando com um ar de superioridade o silêncio dos dois camponeses. Óbvio que não aceitariam o risco de uma penitência de chicotadas ou serem postos no pelourinho por alguns dias. – Foi o que imaginei. Não quero vê-los por perto pelos próximos dias, ou terei de tomar as devidas providências da Lei do Lorde ou de Deus.

Dito isso, jogou o homem em direção ao chão, que ainda assim se levantou e cuspiu na direção deles antes de dar as costas. O olhar que o soldado lançou para eles foi aviso o suficiente para que se afastassem, tendo os irmãos de praticamente levarem o mais velho a força.

— Sabemos que és uma fera Edgar, mas qual foi o motivo de tal loucura? – Owen questionou recebendo do mais velho um revirar de olhos e um bufo descontente. Havia sangue começando a secar ao redor de seu nariz e o olho direito estava ficando roxo, as roupas estavam mais esfarrapadas do que nunca.

— Aquele verme desprezível insultou nossa mãe e disse desonras sobre nossa família. Tinha merecido muito mais do que um murro na face! – Respondeu com raiva em seu tom, cuspindo as palavras com sangue de seus dentes quebrados. Sua cólera parecia contagiosa, pois ao ouvir tal afronta Loki sentiu o fervor lhe subir a cabeça, cerrando os punhos e fechando a cara quase sem perceber. Os gêmeos permaneceram em silêncio por alguns segundos, provavelmente sentindo a mesma coisa, porém não transparecendo tanto.

— Papai não irá gostar nada disso. – Edith apontou com preocupação na voz.

— Pois que fique! Eu não me arrependo. – Edgar falou determinado, mantendo o olhar firme enquanto pisoteava chutando as folhas do outono.

Naquele ponto, Loki nem se lembrava do porquê de ter sido chamado.

Briana – a mais velha de todos os irmãos – deu um grito assim que chegaram dentro de casa, quase derrubando a panela de sopa que tirava do fogo. Contudo, passado o susto de encontrar o irmão em sangue e farrapos, ajudou a tratar dos ferimentos de Edgar e a costurar o que podia de suas roupas – afinal, com tantos parentes e tão poucas libras, dificilmente havia pano extra para conseguir substituir uma peça.

— O que estava fazendo no coração da vila para início de conversa? – Ralhou Briana enquanto costurava a túnica do irmão que arquejava conforme Edith limpava seu rosto com um lenço. Geralmente a mais velha era uma das mais doces criaturas que já pisara na terra, contudo quando conseguiam a façanha de irritá-la acabava se tornando um poço de fúria.

— Que eu saiba pagamos os mesmos impostos que todos, não posso andar no lugar que pago para viver? – Edgar disse cínico antes de arquejar mais uma vez ao ter os ferimentos tocados por Edith.

— É o homem mais velho depois do pai, mas comporta-se feito um garotinho. – Briana resmungou, antes de virar-se em direção á certo ponto ruivo do recinto que remexia nos vários potes de argila da mãe. – E no que está demorando Loki?! Eu mandei só pegar água para limpar a sujeira do rosto desse traste!

— Água não vai fazer nada com esse olho quase saindo pra fora! – Loki gritou de volta, frustrando-se ao não encontrar sequer uma folha de cidreira. Para piorar a situação, um de seus irmãos mais novos apareceu tentando lhe ajudar, mas acabou apenas derrubando os potes e derramando as flores e ervas da mãe. – Que merda Tristan!

— Não fale assim Loki! – Briana o repreendeu mais alto do que estimara, fazendo com que a pequena Lynnet, antes adormecida, despertasse sua voz em um choro desesperado por conta daquele pandemônio. A jovem se levantou, deixando a túnica para trás e indo acudir o bebê. – Termine isso para mim Edith, Loki assuma o lugar dela, Tristan arrume essa bagunça.

— E todos me expliquem o que isso significa.  – Acompanhada com o que faltava de toda aquela ninhada, Fionnuala apareceu exibindo seus volumosos cabelos ruivos iluminados pelo crepúsculo, exibindo um olhar de condenação tão profundo que não foi preciso mais nenhuma palavra para todos saberem que aquele era só o começo de uma longa discussão.

Apesar de repreendê-los pela bagunça, a mulher ajudou a acalmar os filhos e colocar ordem naquela casa, que começava a ficar pequena agora que havia quase todos os membros da família dentro. Não opinara ainda sobre o rosto esfolado de Edgar pois pensava que a verdadeira discussão viria depois, acompanhada do marido que retornava dos campos sempre alguns minutos depois de sua chegada, dado que era sempre ele quem devolvia as foices e enxadas. Afinal, só haviam conseguido criar nove filhos fortes e saudáveis – mesmo naquela situação de miséria – com ajuda mútua.

Todavia, o jantar fez hora ficar pronto e Eoghan não retornou. A preocupação se instaurou em todos os presentes, e Fionnuala mandou um de seus filhos procurá-lo, no qual felizmente Cedrik retornou pouco tempo depois junto com o pai.

— Encontrei-o no caminho, já estava voltando. – O garoto disse aliviado e em seguida Eoghan entrou no recinto afastando a cortina esfarrapada que era usada de porta da frente. Coçou a barba que ia quase até o peito, passando o olhar pelo rosto de todos os presentes. Os olhos de Eoghan, que sempre eram de um verde folha vivo, estavam tão escuros quanto as penas de um corvo.

Contou de forma truncada e rápida, quase resmungando dado que não era um homem de muitas palavras, o que acontecera. Um dos lacaios do Lorde viera lhe alertar sobre o comportamento de seus filhos, e lhe dando um aviso para que os controlasse para não sofrer as consequências de acordo com o que causassem. Confiscação de bens, cárcere, exílio, chicote, forca, ou qualquer outra penitência que viesse a mente de vossas senhorias.

Era praticamente impossível continuar a conversa naquele ponto. De certa forma, a mensagem que queriam passar para Edgar estava clara o bastante ao relatarem que havia chamado a atenção do próprio Lorde. Ninguém tivera uma mínima refeição desde o início da manhã, ficando difícil pensar em qualquer coisa que não fosse a comida no fogo.

Foi um jantar insosso e repleto de desconforto. A sopa de caldo nada encorpado mal enganava o estômago, apenas prestava o fantasma do gosto de carne. Com uma mesa pequena demais para tantas pessoas, Loki se encontrava espremido pelos irmãos Melvin e Cedrik, no qual brigavam por espaço se dando cotoveladas nada sutis. Os olhares fervorosos entre o pai e Edgar não ajudavam nem um pouco naquela situação.

— Depois de tudo que lutei pela segurança dessa família... – Eoghan resmungou enquanto limpava com o antebraço a barba molhada de caldo. Edgar abaixou o prato vazio com ferocidade na mesa, balançando-a e fazendo derrubar um pouco de sopa dos pratos ainda cheios.

— Ei... – Tristan reclamou, mas foi ignorado por completo.

— Que segurança? Vivem acuados feito lebres. Ao menos defendi o que sobrou de nossa honra.

— Não fale em honra quando não passa de um garoto tolo em corpo de homem! – O pai levantou a voz, fazendo todos os filhos encolherem os ombros. Menos Edgar que continuava com os olhos castanhos fervorosos em direção do patriarca. – Não será capaz de dizer bobagens se estiver com o corpo atravessado em uma estaca, por que este vai ser seu destino se continuar insolente dessa forma.

— Se sou insolente, então tu não passas de um covarde.

— Covarde é quem chamas o próprio pai de tal forma. E se eu o sou como diz, não me importa, pois foi esse medo que salvou todos vocês. Tem noção do quanto eu e sua mãe andamos por essas terras procurando um lugar para viver? Todos os perrengues que passamos nesse reino afora?  Tu não passavas de um infante quando Lorde Damian foi o único a nos aceitar, por isso fala tantas tolices.

— Não é tolice dizer que nossa situação é deplorável. Quiçá fosse melhor terem ficado na Ilha ao invés de virem diretamente á toca de lobos.

— Pensas que algo mudaria? A Hibérnia está cheia de cristãos assim como aqui, com a diferença de que morreríamos de fome!

— O ponto a qual quero chegar, é que não passas de um acomodado. Fazes tudo o que lhe mandam e aceita que sejamos tratados no mesmo nível que ratos! – Edgar levantou-se da mesa furioso, ficando com as palmas encostadas na madeira com força.

— Então vá! Se não consegue lidar com a hierarquia, sobreviva no meio da mata para veres o quão terrível é a natureza!  - Eoghan imitou a posição do filho, inclinando-se para frente como se o provocasse. A impressão que dava é que se digladiariam em cima daquela mesa, com o resto das crianças amedrontadas sem saberem como agir frente aquele impasse na própria família.

Contudo, sentada no centro estava Fionnuala com uma expressão nada satisfeita. Acabou se levantando também, olhando do filho para o marido com o rosto quase tão vermelho quanto seus cachos.

— Saiam da minha mesa. Agora. – Disse de maneira firme, mas controlada. Os dois chegaram a arriscar retrucar, mas a mulher não deu oportunidade. – Se querem resolver isso através de briga que o façam lá fora, bem longe dos móveis que poderão quebrar e das crianças que precisam dormir.

Ambos obedeceram a ordem de Fionnuala, porém o ambiente  desconfortável ainda permanecia, visto que os gritos deles eram facilmente ouvidos mesmo dentro de casa.

— Acredito que Edgar esteja certo, não é justo tudo pelo que passamos. – Cedrik comentou enquanto ele e Loki afofavam a palha onde dormiam, junto com Melvin e Tristan, amontoados quase um em cima do outro. Erguiam a mesa e a encostavam contra a parede para ganharem espaço na minúscula casa e adormeciam no centro. Edith e Briana dormiam juntas no canto ao leste da choupana, enquanto Owen e Edgar descansavam no outro extremo. Contudo, naquela noite o filho mais velho resolveu sair e dormir fora de casa, provavelmente embaixo da ponte de pedra que ligava o manso senhorial.

— Mas papai também está certo, que outra escolha temos? – Indagou Edith.

— Calados. Não precisamos levar a discussão adiante. – Briana mandou.

— Nem tive tempo de dizer algo! – Loki protestou, percebendo em seguida os olhos de seus irmãos virarem em sua direção.

— E o que tens a dizer? – Questionou Owen com certo escárnio.

— Nada. – Disse exibindo um sorriso travesso, fazendo todos revirarem os olhos. Contudo, apesar de ter tido a intenção de apenas incomodá-los, Loki realmente não sabia o que pensar sobre aquela situação. Era tudo tão complicado, sem que houvesse uma saída simples e segura para todos eles. Pensar naquilo o entristecia, pois sentia que não havia lugar no mundo para ele e aqueles que amava.

Loki já havia se deitado ao lado de Tristan quando após a mãe colocar Lynnet para dormir, se dirigiu até ele lhe tocando o ombro e o olhando com um sorriso afável.

— Desculpe por tirá-lo da cama querido, essa confusão com o Edgar e seu pai não nos deu tempo de conversar. Venha cá Loki, tenho algo para te mostrar. – Disse lhe dando a mão para que se levantasse e o guiando para fora de casa. O restante dos irmãos levantaram a cabeça, curiosos, mas sem ousar questionar o que ele e a mãe fariam.

Loki sentia as canelas frias por conta do frescor do outono à noite, dado que já havia retirado as chausses para dormir. Esperava sentindo-se ansioso pela mãe, que procurava por algo entre as pilhas de lenha, jogando a madeira no chão sem se importar com a desordem.

— Foi algo que fiz? – Questionou nervoso e ouviu a mãe rir baixinho, mas o suficiente para que conseguisse escutá-la.

— Não Loki, dessa vez não é sua culpa. – Fionnuala lhe respondeu, se aproximando com uma peça de tecido nas mãos, batendo para tirar o pó e a serragem acumulados. Vendo aquilo Loki ligou os pontos, não conseguindo conter sua excitação.

— É o meu manto? É o meu manto!

— Cuidado para não acordar seus irmãos! – Lhe repreendeu, mas logo em seguida voltou a lhe dirigir um sorriso amável, lhe estendendo a peça. – E sim Loki, este é seu manto.

— Tu disseste que só havia cinco! – Disse pegando o manto e desdobrando, admirando o desenho bordado em sua frente e verso. – Nossa, são tantas cores!

— Loki, acha que sua mãe deixaria de presentear a todos os filhos? Sabe que amo cada um de vocês. – Ela lhe acariciou a face, lhe olhando com candura nos olhos castanhos. – Tu gostas de encrenca Loki, mas não é má pessoa. És o que mais tem interesse dentre seus irmãos nas plantas de cura, e assim como fez hoje sempre tenta colocar seus conhecimentos em prática. É responsável e não se deixa abalar facilmente pelas adversidades, já mostras que estás se tornando um homem. Merece um manto assim como seus irmãos mais velhos, nem que eu mesma o tenha feito com as próprias mãos.

— Então, este não pertenceu a nenhum de nossos ancestrais? – Questionou tentando não se mostrar decepcionado, pois não queria ser ingrato. Visto que o maior sentido daquelas peças era o de serem as únicas lembranças que tinham dos tempos da Irlanda. Fionnuala o pegou pelos ombros, olhando-o nos olhos com candura.

— Pode não ter a história de nossa família nele, mas tu Loki é quem fará tua própria história. Quero que conte sua jornada com esse manto, e lembre-se de tudo aquilo que fez você ser o que é. – Fionnuala disse fazendo o filho sorrir repleto de devaneios, acabando por gostar ainda mais desse conceito.

— Obrigado mãe, obrigado por tudo que fizestes. – Loki disse repleto de júbilo, sendo puxado pela mãe de olhos marejados para um abraço acalentador. Aproveitando aquele momento de alegria da forma mais simples e especial que podiam fazer.

— Eu que sou grata em ter todos vocês. – Disse a mãe limpando as lágrimas dos olhos. – O que está esperando Loki? Vamos, vista! Quero ver como fica em você.

A noite terminou com um menino quase homem, contente e orgulhoso com o presente que recebera, podendo se ver nem que por um breve momento longe de toda a calamidade de sua família.


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Notas finais do capítulo

Fugindo um pouco do rumo, mas espero que tenham gostado do capítulo assim mesmo, logo voltamos com nossa programação normal ;p
Comentem o que acharam e nos vemos no próximo capítulo! ^-^



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