Ode aos desafortunados escrita por Angelina Dourado


Capítulo 10
A Taverna e as Estrelas


Notas iniciais do capítulo

Olá gente! Começando o capítulo com um grande agradecimento a todos vocês, mas em especial a Eleanor Lane pela recomendação maravilhosa que Ode aos Desafortunados recebeu! Dez capítulos e já com duas recomendações? Vocês me matam de amores assim ;;-;;
Boa leitura pessoal! Nos vemos nas notas finais.



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Havia uma grande diferença entre comer e se alimentar, tal que nossos dois protagonistas conheciam muito bem.

Se alimentar para tapar o estômago quase esburacado, para ser capaz de ainda andar e não morrer de ossos amostras em alguma vala por aí.  Composta por nacos de pão duro e esmigalhado, mingau de centeio, trigo, ou a já tão conhecida e barata aveia, tendo somente pedaços secos de carne quando tinham algumas moedas a mais, todos sem gosto como papel e incrementados com fava para dar alguma consistência. Caso houvesse a sorte de haver algo fresco à disposição, a quantidade possivelmente seria de uma pobre mordida.

Entretanto, a partir do momento em que é necessário um prato para conter a refeição, já é um bom indicativo de que aquilo seja uma comida de verdade. Daquela que se sente o sabor apenas pelo aroma, fazendo a boca salivar e sentir-se plenamente satisfeito ao seu término. Com todo prazer imensurável que qualquer boa refeição é capaz de causar.

— A vida voltou a ser boa novamente. – Loki disse com um largo sorriso no rosto após lamber os dedos gordurosos pela carne de cordeiro, enquanto Friedrich a sua frente ficou com a mesma expressão logo após tomar um gole de vinho que sentia falta há tempos. Ambos continuaram apenas se fitando por vários segundos, apreciando o privilégio de estarem com o estômago cheio.

Haviam ganhado uma boa quantia pela pele e a carne que não puderam guardar do cervo, apesar do preço estar um tanto desvalorizado por conta daqueles tempos difíceis. Porém, foram moedas o bastante para conseguirem sair do estágio de quase miséria. Viram-se livres de andarem nas estradas mais remotas do reino e até mesmo arriscaram permanecerem na estrada real, onde apesar de haver um maior risco de serem pegos pelo clero, o fluxo de pessoas era muito maior. Por ali era mais fácil viajar até as cidades e por vezes podiam encontrar estabelecimentos, como hospedarias e tavernas.

Dividiam uma pequena mesa redonda encostada nas paredes de pedra, um tanto espremidos pelo lugar lotado e repleto de movimento. O ambiente não era tão bem iluminado, tendo apenas uma vela para as mesas menores, algumas fileiras cobrindo os batentes, e meia dúzia espalhadas pelas mesas maiores que ficavam no centro da taverna.

— O lugar é... – Friedrich começou a dizer, mas resolveu pausar a fala após um caneco de cerveja voar em direção ao chão, por conta de uma briga de queda de braço um tanto quanto bárbara acontecendo na mesa ao lado. – Deveras interessante.

— Me intriga que nunca tenha vindo á uma taverna. – Loki escorou o rosto no punho direito com os olhos retos ao rosto do companheiro. Friedrich sentiu seu estômago arrepiar-se com as esmeraldas brilhando em meio aquele ambiente mal iluminado. Por mais que lutasse para não ser levado pela paixão, havia momentos como aquele que o pegava de surpresa e de forma inoportuna.

— Minha vila era isolada demais, e após me tornar frade era de se esperar que jamais frequentasse esse tipo de ambiente.

— Espero que não esteja tão assustado com toda essa novidade. – Loki comentou com seu típico sorriso risonho, virando o rosto para dar uma boa olhada no local.

Todas as mesas estavam abarrotadas com canecas, copos e cálices com bebida até a borda. Homens levando machados, clavas, espadas e outras armas comiam com as mãos de forma selvagem enquanto conversavam aos berros uns com os outros, por vezes não sendo possível distinguir uma conversa amigável de uma ferrenha discussão. Grupos de pessoas se reuniam para apostarem e competirem em jogos de mesa, ou para ouvir algum conto inacreditável de um peregrino ou bardo qualquer. Alguns casais mais desavergonhados se amassavam em cantos onde a luz das velas não podia alcançar, podendo apenas se ouvir alguns risinhos e arquejos. Músicos dedilhavam seus instrumentos e convidavam o povo a cantar as músicas populares ou ouvirem os versos de uma balada.

Enquanto isso, aqueles que vieram apenas pela comida e por alguns minutos de descanso – como no caso da dupla – se amontoavam nas extremidades das paredes, próximos a porta da entrada ou das janelas. Como meros figurantes daquela barulhenta peça.

— Prometo não sair correndo. – Friedrich disse com um leve sorriso, tentando mostrar confiança. Antigamente provavelmente estaria muito mais apavorado em tal situação, quiçá até negasse adentrar tais portas, mas não é por que se acostumara com parte daquele ambiente mais bruto que se sentisse encaixado naquele lugar. Afinal, crescera em um berço extremamente religioso e devoto, além de todos os anos de vida regrada e silenciosa do mosteiro. Ainda sentia-se estranho em contato com tal lado da sociedade, entretanto, tendo Loki ao seu lado o fazia se sentir um pouco mais seguro frente a tudo aquilo.

Uma melodia bem conhecida havia tomado conta da taverna, sendo levada por um coro tímido das pessoas presentes. Porém a voz principal vinha dos lábios de uma mulher baixa, de cabelos castanhos presos em tranças rodando acima das orelhas, com uma touca cobrindo sua fronte, mas sem fazer o uso do véu comumente usado pelas mulheres casadas. Sua voz era melodiosa, de forma que faziam todos os olhares virarem em sua direção e convidava todos acompanharem a letra. Ao seu lado uma dupla de músicos a acompanhava ao som de flauta e alaúde.


Lentin  ys come with love to toune

With blosmen and with briddes roune,
That al this blisse bryngeth;
Dayes eyes in this dales,
Notes suete of nyhtegales;
Uch foul song singeth.

 

The threstelcoc him threteth oo – Friedrich acompanhava a música cantarolando baixinho, fazendo a atenção do companheiro ruivo desviar-se por completo para sua direção. – Away is huere wynter wo, when woderove springeth.

— Sabes a letra! – Loki comentou surpreso, pois sempre ouvira o outro apenas cantar músicas sacras. Friedrich se sobressaltou um pouco, mal notando que estava cantando alto o bastante para o amigo ouvir.

 

This foules singeth ferly fele,
Ant wlyteth on huere wynter wele,
That al the wode ryngeth.

 

— Minha mãe costumava a cantar essa canção quando eu era criança. Por isso ainda sei os versos. – Respondeu tímido e com um singelo sorriso.

— Deveria tentar cantar, tem uma voz magnífica. – Loki disse tranquilamente, fazendo Friedrich corar e pigarrear sem jeito antes de dizer algo.

This foules singeth ferly fele,
Ant wlyteth on huere wynter wele,
That al the wode ryngeth.

 

— E-eu não tenho a coragem para tal coisa...

— Mas tu me disseste que sempre o fazia no mosteiro.

— Em coro Loki! É diferente, não sei se possuo a capacidade de um solo.

— Claro que tens! Sempre o escuto cantar, afirmo-te que possuis talento o bastante para tal. – Friedrich sentia o rosto enrubescer mais ainda à medida que Loki o enaltecia. Já se sentia tímido com qualquer espécie de elogio, mas vindo especialmente do ruivo lhe causava um embaraço ainda maior.

— Espere, por acaso me escutas escondido? – Friedrich questionou, pois tinha certeza que quando arriscava cantarolar sempre procurava ficar sozinho. Loki coçou atrás da nuca com um sorriso de vigarista enquanto ria-se.

— Oras, que outra forma eu poderia ter a chance de te ouvir? – Disse e ganhou como resposta o estreitar dos olhos azulados, lhe encarando de forma severa. – Certo, se te incomodo eu paro. Mas seria uma lástima para mim.

Wowes this wilde drakes;
Miles murgeth huere makes,
Ase strem that striketh stille.

 

— Não... Creio que não me afeta ter você a me assistir. – Friedrich disse com um tanto de incerteza na voz. Não é como se não desejasse cantar para o outro, porém não conseguia controlar aquela insegurança que o apossava nesses momentos. Talvez fosse fruto do treinamento tão regrado do mosteiro, quiçá apenas sua própria timidez. – Mas somente tu.

Friedrich não sabia se arrependia-se ou simplesmente morria por vergonha ao notar o que acabara de dizer. Desviou o olhar focando-se aos seus pés, sentindo seu rosto corar até a ponta das orelhas. Enquanto Loki tinha seu coração bombeando a toda velocidade ao ouvir aquilo, não conseguindo conter um sorriso bobo em seus lábios.

Mody meneth, so doth mo;
Ichot ycham on of tho,
For love that likes ille.

— Fico lisonjeado por tal exclusividade. – Disse fazendo os orbes azuis voltarem em sua direção por algumas frações de segundo. – Contudo, se preferes cantar em grupo, estou no clima de festividade. Mas já me desculpo por minhas terríveis habilidades vocais.

— Não deve ser tão ruim... – Friedrich murmurou voltando a olhar para Loki com mais confiança.

The mone mandeth hyre lyht – Cantarolou junto ao tímido coro da taverna, de voz um tanto rouca e desafinada, mas com um carisma típico que apenas Loki possuía.

So doth the semly sonne bryht — Friedrich o acompanhou, sentindo-se parte de alguma coisa que lhe aquecia o peito, algo do qual estava presente nos olhares que ele e Loki dividiam.

When briddes singeth breme

Deawes donketh the dounes

Deores with huere derne rounes

Domes forte deme

Wormes woweth under cloude

Wymmen waweth wounder proude

So wel hit wol hem seme

Yef me shal wonte wille of on

This wunne weole y wole forgon

Ant wyht in wode be flame

 

Loki não era do tipo de pessoa que conseguia ficar quieto, não demorou sequer duas canções para se entediar. Levantando-se do lugar que estavam e se dirigindo para o aglomerado de pessoas. Gostava de movimento, do barulho e de conversas mirabolantes, afinal sua convivência com oito irmãos o fez se afeiçoar com a bagunça de uma multidão. Apesar de ter se acostumado com a solidão nos seus anos como andarilho, vez ou outra ele sentia a necessidade de se socializar com as pessoas.

E por Deus como ele falava! Logo nos primeiros dias convivendo com ele, Friedrich notou o quão tagarela o amigo era, no começo achando que era por estar entusiasmado de ter alguém para conversar, mas durante aqueles meses apenas foi confirmado que aquela era a verdadeira natureza do ruivo, como um pássaro que não para de cantar. No início das conversas – ou monólogos, pois por vezes Loki se empolgava tanto que sequer dava chance dos outros darem resposta – Friedrich até prestava atenção no que ele dizia, mas chegava um momento em que seus ouvidos ficavam tão exaustos de ouvir a tagarelice do outro que pareciam ficar surdos, apenas vendo sua boca se mover e não conseguindo mais compreender o que ele dizia, por vezes só prestando atenção para o brilho de seus olhos cheios de vida.

Ao menos ali Loki podia dividir com muito mais pessoas seu espírito franco e acalorado, além de ouvir outras histórias, notícias e ideias do qual o povo tinha para dividir. Aproveitava as oportunidades em que era aceito, pois sabia que quando sabiam de suas crenças geralmente tornava-se um excluído da sociedade, sendo afastado dos outros como se fosse a própria peste. Felizmente, ali naquela taverna era só um mero peregrino cansado, e tentaria não passar uma imagem que fosse além dessa.

Friedrich não era tão falante quanto o companheiro, era mais reservado e até apreciava a solitude. Entretanto, por vezes também gostava de debater com outras pessoas, especialmente agora onde não tinha certeza de quando teria contato com a sociedade mais uma vez.

Ele conversou com algumas pessoas, mas ainda vez ou outra seu olhar se desviava para o ruivo em algum outro ponto do estabelecimento. Até por que não era difícil encontrar Loki, pois ele fazia questão de ser notado. Em determinado momento o druida estava de pé em cima de uma das mesas, recitando aos plenos pulmões alguma balada de Robin Hood ou rindo alto demais de alguma piada que provavelmente nem era tão cômica.

E no meio de toda aquela confusão, falando com tantas pessoas ao mesmo tempo e ouvindo suas histórias, por pouco Loki não percebeu a saída do companheiro que se dirigiu para a porta de forma taciturna. A princípio não deu grande atenção à saída repentina do outro, entretanto os minutos foram correndo e Loki chegou a aprender a cantarolar uma nova música e a declarar alguns versos de uma balada de cavalaria. Naquele ponto sabia que poderia achar estranho tal demora, ainda mais sem ele tê-lo avisado.

Já havia pagado a dívida do jantar ao deixar alguns pences na mesa, assim despediu-se das pessoas da qual conversava no momento de forma rápida, mas cordial, saindo do estabelecimento com os olhos preparados para procurar pelo companheiro. Mesmo que a primavera já tivesse começado, havia uma brisa que eriçava a pele naquela noite, coisa que Loki sentiu assim que deixou o ambiente antes aquecido pela lareira.

Olhou ao redor até onde a luz da Lua era capaz de deixar nítido aos seus olhos, não avistando Friedrich de forma alguma. Deu mais alguns passos, numa tentativa falha de estudar melhor o lugar, porém não vendo alternativa melhor além de fazer com que o amigo fosse até ele.

— Friedrich! Friedrich! – Gritou, numa tentativa de chamar a atenção do outro seja lá onde estivesse. – Friedrich filho de Jeremiah de Hampshire! Onde se encontras?!

Ouviu-se o farfalhar de folhas e passos apressados, em seguida o alquimista ressurgiu das sombras com o rosto dividido entre a surpresa e a ira.

— Que espécie de escândalo é este Loki? Queres nos atolar na vergonha?! – Loki riu do tom indignado do amigo, pois aquela era a exata reação que havia previsto.

— Que de outra forma poderia fazer para lhe achar? – Indagou divertido, não recebendo resposta além de um olhar sem jeito de Friedrich. – Não ia atrapalhar seus planos seja lá o que estava fazendo, contudo já é um tanto tarde da noite e uma hora teríamos que nos encontrar.

— Não havia plano algum, apenas estava aqui por perto com esse medíocre. – Disse dando um afago na cabeça do cão que também havia surgido das sombras, abanando o rabo contente.

— Imaginei que talvez todo aquele festejo pudesse te incomodar uma hora.

— Oh, pelo contrário, até estava achando interessante. A questão é... – Hesitou por um instante, mas não queria mentir para Loki. – Eu não estava me sentindo tão bem.

— Por todos os deuses! – Loki até deixou cair no chão uma das sacolas que levava no ombro e levando as mãos até o rosto de Friedrich, checando por algum sinal de febre ou qualquer outro sintoma. – O que está sentindo?

— Vertigem e meus braços começaram a formigar faz um tempo.

— Por que não me avisou seu tolo? E se por acaso algo tivesse acontecido sem que tivesse alguém para ajudar? – Indagou preocupado, mas também irritado com Friedrich que parecia não lhe dar ouvidos nunca.

— Você estava se divertindo, não queria incomodar. – Friedrich disse embaraçado, pois só ao dizer em voz alta percebeu que fora uma ideia realmente tola. Entretanto, não estava habituado em receber qualquer ajuda, e por mais que confiasse em Loki ainda precisava se acostumar com tal ideia.

— Combinemos o seguinte, não importa o que eu esteja fazendo, se estiver sentindo-se estranho você irá me avisar. Achei que isso já havia ficado claro, mas se preciso o lembrarei de novo que podes confiar em minha pessoa. – Loki falou com o rosto firme, os olhos tornando-se de um verde escuro como musgo.

— Tenho ciência disso Loki. – Afirmou quase que em um murmúrio, em seguida tendo seu braço atado com o do ruivo que o guiou de braços dados pela estrada iluminada apenas pela Lua. Apesar de toda a desconfiança que se impregnara em seu ser, Friedrich ainda assim acreditava na amabilidade de Loki, sentindo-se tocado pela forma que ele se preocupava com seu bem estar. Claro que esse cuidado era mútuo, afinal ele apreciava muito o druida, porém com todo seu histórico, o alquimista não estava mais acostumado a ter qualquer tipo de retribuição e por isso se impressionava tanto com as ações do companheiro.

— Melhor procurarmos por um lugar mais calmo e assim acamparmos, parece que infelizmente não seremos agraciados com hospedarias tão cedo. – Loki disse enquanto guiava Friedrich que sentia a visão turbulenta vez ou outra. –Podes andar por mais alguns instantes?

— Claro, haveremos de prosseguir. – Afirmou, apesar de na realidade não ter certeza disso dado a aleatoriedade de sua doença. Contudo, Friedrich não queria preocupar ainda mais o druida e ambos não podiam ficar parados no meio da estrada daquela forma.

Loki não pensou muito nos animais selvagens, pois em uma estrada real o maior perigo eram as próprias pessoas, por isso guiou o amigo para cada vez mais dentro da floresta, procurando por um local com a mata não tão fechada. Por não ser inverno não havia a necessidade de um acampamento muito elaborado, mas se deu ao luxo de fazer ao menos uma fogueira para iluminar e acalentar aquela brisa irritante.

— Sempre sabe quando vai acontecer? – Questionou ao ver o quão quieto Friedrich estava ao seu lado, sentado na grama e remexendo as mãos e os dedos como se o incomodassem.

— Não. Sequer sei agora. – Respondeu soltando um riso sem qualquer alegria. – É comum realmente acontecer quando aparecem esses sinais, porém não é sempre o caso. O pior é quando vem sem qualquer aviso prévio, em um minuto está tudo bem e no outro... Você viu.

O silêncio reinou, sobrando apenas o crepitar das chamas e o vento insistente a farfalhar as folhas das árvores. Algum animal se remexeu entre os arbustos, fazendo seus olhos se desviarem por alguns instantes, porém ao menos dessa vez ambos se deram ao luxo de ignorar, ao invés de espiarem e analisarem se podia ser comestível. Logo voltaram a se encarar, sem nada a dizer.

— Eu conheço esse rosto, está pensando demais. – Loki na realidade sempre tinha algo a dizer, como agora vestindo um sorriso convencido. Friedrich parou de franzir o cenho assim que o ouviu, como se inconscientemente tentasse esconder a verdade naquela frase. – Não és qualquer empecilho se é o que pensas, gosto de tua companhia de qualquer forma Freddie.

Pergunto-me se agora sequer consigo viver sem ela. Pensou por um instante.

— Agradeço imensamente pelas palavras, contudo... Do que me chamaste? – Indagou com as sobrancelhas elevadas, surpreso.

— Freddie. Convenhamos ser bem mais simples do que Frie-D-Rich. – Disse dizendo cada sílaba quase que com chacota, mas arrancando um riso desavisado do outro que até então estava tão sério quanto uma rocha. – Te incomodas?

— De forma alguma. Lo-Ki.

— Viu como minhas quatro letras são bem mais simples de lidar?

— Quem dirias, sabes que são quatro! – Friedrich constatou, sabendo que essa era a intenção de Loki desde o princípio. O ruivo ergueu o queixo orgulhoso, exibindo mais da barba em formato de ponta.

— Praticamente um letrado! – Loki disse orgulhoso de si e Friedrich não conseguiu evitar esboçar um sorriso ao ver aquilo, encarando com encanto os orbes esverdeados brilhando na pouca luz enquanto fitava o céu em suas cabeças. – É uma noite especialmente bela, quase não há nuvens tapando as estrelas.

Friedrich olhou para cima, encantando-se com o brilho das estrelas emolduradas pelos galhos mais altos das árvores, formando desenhos abstratos com seus inúmeros pontos de luz destacados pelo azul escuro do céu noturno, de uma beleza tamanha que era de se tirar o fôlego. Loki até resolveu deitar-se na grama para poder visualizar melhor, sendo acompanhado pelo amigo em seguida.

— Realmente é uma bela noite. Acho que conseguiria até encontrar alguma constelação. – Friedrich comentou, não tirando os olhos do céu noturno.

— Está se referindo aqueles desenhos no céu? Já ouvi falar, mas pouco sei.

— Também não sei muito sobre o assunto, meu amigo Bernard era fascinado por isso, o pouco que sei é por sua causa. – Disse refletindo por um momento se ainda dava para chamar o antigo companheiro de hábito de amigo depois de tudo que ocorreu, além de se questionar como as coisas estariam por lá. – Deixe-me ver... Ali! Três Marias, são fáceis de reconhecer, por elas é possível localizar Órion com facilidade. Consegues achar?

Friedrich apontava para o céu usando o indicador para traçar uma linha imaginária, como se pudesse contornar a forma da constelação. Loki acompanhou seus movimentos com atenção, estreitando os olhos para forçar sua visão a compreender alguma coisa naquilo.

— Consigo notar um padrão. – Loki comentou percebendo as estrelas mais brilhantes que formavam o agrupado.

— Há quem diga que as estrelas podem informar sobre nossa vida, baseada em sua posição no mês de nosso nascimento, dentre outros aspectos. Astrologia o nome. – O alquimista comentou lembrando-se de livros que havia lido há tempos. – Admito que meu conhecimento nisso só se resuma á sua área médica, pois para mim não via o porquê de estudar além disso. Afinal sequer sei qual seria meu signo como diriam, não sei ao certo quando eu nasci, só disseram que foi durante o inverno de 1322.

— Minha mãe tinha um pensamento parecido. Só que se tratava de uma árvore para cada mês. Eu sou uma aveleira. – Loki contou e em seguida ouviu o companheiro falhar em segurar um riso. – Que foi?

— Desculpe, mas é engraçado você se dizer como uma árvore.

— Quis dizer que ela me representa, não que sou uma! – Loki defendeu-se, mas também rindo da situação.

— De que mês ela se trata?

— Agosto, de 1324 pra ser preciso.

— Oh, nunca imaginei que fosse mais novo. – Friedrich disse levemente surpreso.

— Sempre acham que sou mais velho, acho que é por causa da barba. – Disse mexendo inconscientemente no próprio queixo ao dizer isso. – Quiçá pela voz, é um tanto grave. Que achas?

— O que acho? – Friedrich sentiu todo seu rosto esquentar com aquela pergunta e o peito palpitar mais rápido, não compreendendo o motivo para tal, sendo apenas um dos momentos tolos do qual Loki fazia-o sentir coisas da qual não deveria. – Não vejo qualquer problema.

Friedrich já não encarava mais as estrelas fazia um tempo, e após sua resposta Loki virou o olhar em sua direção com um singelo sorriso sem dizer única palavra, apenas lhe fitando através daquele esverdeado único. O olhar que era de se esperar ser curto, acabou se prolongando mais do que a boa educação permitiria. Afundaram-se nas íris um dos outros, perderam-se nas formas de seus traços, apaixonando-se por cada fio de cabelo. Em dado momento souberam que aquele não era um olhar qualquer, sentindo suas veias pulsando mais rápido e com uma vontade súbita de se aproximarem mais um do outro. Porém nenhum ousou arriscar.

Se pudesse, Loki com certeza teria dito á Friedrich naquele momento que o amava, ao sentir tamanha emoção apenas olhando em seu rosto. E ele disse, mas não com suas palavras, apenas em seus pensamentos como se afirmasse ainda mais esse sentimento para si mesmo. Acreditava que nunca poderia admitir em voz alta, então o fazia em sua cabeça, esperando que em alguma outra realidade pudesse fazer tal feito. Porém, como aquela poderia ser uma visão unilateral se Friedrich também o retribuía com tal olhar? Valeria a pena arriscar ou estava apenas louco? E se o fosse, valeria realmente seus riscos ou seria apenas uma maré de mais desgraças?

Friedrich havia prometido a si e a Deus que não alimentaria tais desejos, contudo naquele momento se via praticamente incapaz de desviar o olhar de Loki. O ruivo o enfeitiçava, fazia-o se arrebatar a cada hora que passava, ansiando em ter seu corpo e alma por perto. Mas dali vinha o sentimento da culpa, de sucumbir ao pecado, de desonrar ao Senhor. Por mais que doesse em seu âmago, sabia que jamais poderia ter o pagão de tal forma.

— No zodíaco tu serias de Leão, talvez de Virgem. – Foi Friedrich quem desviou o olhar, soltando parte do ar que segurava e sentindo-se mais vazio ainda. Focou o olhar nas estrelas novamente, porém dessa vez não as enxergava, via apenas Loki. Por que teve que ele de tomar a iniciativa de acabar com aquilo? Se Loki achava que aquilo se tratava de um jogo ou uma aventura, Friedrich não se permitiria cair em tal armadilha. Já havia sido tolo o bastante de se sentir atraído por tal pessoa, não precisava se afundar ainda mais.

Definitivamente louco. Loki disse para si, não sentindo sequer vontade de aproveitar a deixa para uma piada infame.

Pouco falaram após isso, demorando-se vários minutos para aquele clima estranho de constrangimento se dissipar, afinal não havia exatamente para onde cada um fugir. Loki chegou a sentir as pálpebras pesarem em dado momento, mas não arriscou dormir sem ter a certeza que Friedrich continuaria bem. O ouvia rezar aos murmúrios, tão baixo que em dado momento demorou para perceber que havia parado definitivamente.

Levantou-se para ter certeza que estava tudo bem, vendo o outro na mesma posição com os olhos ainda em direção ao céu. Aparentemente não havia nada de errado, mas ao se inclinar em sua direção percebeu que Friedrich não parecia acordado apesar do azul aparente de seus olhos.

— Friedrich? – Indagou com preocupação, não recebendo resposta alguma do outro que mais parecia uma estátua. Levou um susto quando o corpo do companheiro estremeceu, para só assim relaxar e ficar com as pálpebras fechadas. Loki suspirou, em parte pelo cansaço, mas também de alívio, afinal estava esperando por uma crise muito pior.

Todavia, aquilo não significava que sua solicitude havia abaixado a guarda. Loki decidiu por deitar-se virado em direção á Friedrich, – coisa que não costumava fazer – mas não próximo demais para assustá-lo caso acordasse. Sendo daquela forma que dormiu, quase que com um olho aberto e outro fechado.

Pois apesar daquele dito que não fora dito, ainda eram parceiros daquela viagem sem destino.


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Notas finais do capítulo

Contexto histórico nosso de cada dia:
— A Estrada Real na época tinha a função parecida com as rodovias hoje em dia, sendo consideradas estradas oficiais do reino. Os lugares no qual ela passava eram obrigados a pagarem uma taxa de imposto por conta disso. O mais interessante era a forma que ela era oficializada, era apenas preciso que alguém da realeza passasse por alguma região para ser considerada uma estrada real.
— A música cantada no capítulo se chama ''Lenten ys come'' (Spring is come), e se caso tenha soado estranha é por que não é o inglês normal e sim o arcaico que era dito na época.
Comentem o que acharam e nos vemos no próximo capítulo! ^-^



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