30 Dias, 30 Contos escrita por kunquat


Capítulo 7
Dia Sete - O Necromotor.


Notas iniciais do capítulo

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— Lorelei? Lorelei, cadê você?

Eu sabia que algo havia dado errado. Nós estávamos no sótão e enquanto eu falava em meio a tossidas, eu abanava o ar em minha volta para afastar a densa névoa preta que nos cobria por completo. Nós duas estávamos presas no momento, e eu não conseguia enxergar sequer a vela em volta do círculo.

— Lorelei! – Voltei a chamar, voltei a tossir.

— Miau.

— Ah, merda!

Eu abanei o mais rápido que pude no intuito de dispersar o bloqueio, mas a fumaça preta não cedia e no processo, bati meus dedos no pilar de sustentação. Doeu. Tateei o chão próximo a mim em busca de um lápis e utilizando um pedaço de papel rasgado que estava no bolso, esbocei um encantamento e o rasguei.

— Omnia Munda! (Tudo Limpo)

O som do rasgar transformou toda névoa escura em um branco leitoso, acendendo-se como pólvora logo em seguida. As chamas queimaram a realidade como um filme velho queimando em projeção e deram lugar ao nosso já conhecido sótão de madeira, tão velho e empoeirado quanto os móveis.

Ali, em minha frente, estava Lorelei com uma sobrancelha arqueada e um sorriso esboçado da forma como conseguia, mostrando os pequenos caninos que se projetavam para fora de sua boca.

— Miau. – Ela miou grave, da mesma forma como nós achávamos que nossas gatas falariam se fossem pessoas.

— Garota, acho que deu tudo errado.

Ela miou e espreguiçou-se, olhando para os lados em seguida e indo a procura de algo sobre a extensa pilha de livros que guardávamos aqui em cima. Ela colocou a pata sobre um.

— Necromotor. Você tem certeza? – Ela assentiu.

Retirei o livro da pilha e coloquei-o no chão em minha frente.

— “Abandone o que lhe resta em troca da virtude”. Super direto.- Ri. – “Aquele que utilizar deverá tomar cuidado, para um realizado outro contra se fará. Do descontrole ao Pó, sua existência apagada. Para aqueles cuja sanidade não mais lhes pertencem, suas almas também não pertencerão”. Garota, se você acha que eu vou usar isso aqui, você vai ser uma gata para sempre.

Lorelei me afastou e tomou a frente, lambendo as páginas para encontrar o que procurava.

— “Em Própria Pessoa”, página quarenta e cinco. – Comecei a ler. – “Utilize o livro como próprio catalizador e invoque aquele que desejas. Transfigure ou conserte. Contra: Não erre. Cuidado. Ilustração”. Como é que é?! Como se faz isso com uma mão? – Eu enfiei minha cara no livro, tentando entender.

Olhei para Lorelei que retribuía o olhar com sua pupila dilatada. Eu não podia deixa-la neste estado para sempre.

— Tá bom! – Levantei-me e me posicionei, segurando o livro com uma mão e tentando fazer aquilo com a mão direita.

Respirei, esvaziei a mente e senti as linhas convergirem para o livro. Ele era a ferramenta, por isso não existiam grifos. Movimentei a mão.

— In Propria Persona! – Gritei.

O livro brilhou esverdeado, esquentou e eu o derrubei. O chão começou a tremer e diversos círculos brotaram nas tábuas de nosso chão. A casa estalou e os círculos flutuaram como mandalas, descolando-se de sua origem e flutuando em meio ao ar, seguindo sua própria corrente.

Eles convergiram para o livro e unindo-se, um após o outro, deram forma há uma figura tão complexa que eu nunca pensaria ser formada por camadas bidimensionais. A figura se partiu em ângulos retos e estilhaçou-se em vários fragmentos.

Do livro, onde o a figura se encontrava, uma criatura magra, de costelas a mostra, respirava lentamente e exalava uma nuvem azulada que caía vagarosamente, como se evitasse misturar-se com o ar. Ela virou-se rapidamente, mirando seus olhos esverdeados nos meus e avançou.

O monstro veio em minha direção com um único salto, mirando meu pescoço com sua gigantesca mandíbula. Ele chegou perto o suficiente para eu poder ver sua garganta, mas algo me puxara no último instante e como se eu fosse atraída por um imã, caí de lado enquanto observava a criatura se chocar contra a parede, sendo engolida pela madeira e desaparecendo na estrutura da casa.

Eu estava ofegante, mal reparando no fio avermelhado que conectava o rabo de Lorelei a minha cintura. Magia básica, Locomotor Corpus. Eu levantei e corri em direção ao livro, virando a página em busca de respostas.

— “Diabo da Bretanha. Uma criatura invocada de seu ninho pode fundir-se com o local no qual surgiu, caçando toda e qualquer presa que cruzar o seu caminho. Sabe-se que retorna ao seu ninho ao devorar aqueles que ali estão, entretanto, seu banimento é desconhecido.” – E logo abaixo, escrito em giz de cera. – Luz solar.

— Ótimo. - Continuei. - São duas da manhã! - A criatura rugiu nos andares inferiores. – Tambor!

Com medo e agindo por impulso eu abandonei o círculo e desci pela escada vertical até o primeiro andar. Os quadros dos corredores estavam tortos ou jogados no chão; o carpete, rasgado onde as garras da fera o cortaram, mostravam um piso de parquet que eu nunca havia visto. As portas de nossos quartos estavam abertas e um rasto vermelho escorria escada abaixo.

Dá li de cima, da grade da escada eu pude ver a criatura deliciando-se com nosso coelho de estimação. Ele estava virado para a rua, mastigando a carne como um senhor que toma café observando a rua.

Em minhas mãos o livro vibrou, e uma enxurrada de nomes antigos brotou em minha mente. O conhecimento começou a ser construído, mas antes que eu pudesse entender a sua maioria, a criatura me encarou novamente.

— Obscuris Vera Involvens. (A verdade sendo envolvida por coisas obscuras.) – Disse a criatura em uma voz gutural.

Ao terminar sua magia, um dedo de sua mão caíra em um estalo seco. Sem sangue, sem dor. A criatura o ignorou e caminhou em minha direção, ainda com a boca manchada de sangue.

Em minha cabeça o conhecimento do livro parou de aparecer, e em minhas mãos o livro apodreceu, dando lugar a traças e larvas que iniciaram o processo de decomposição de sua matéria.

Era matar ou morrer. E eu tinha um arsenal, agora, com o conhecimento do livro, entretanto, me faltava prática.

Com um salto impossível a criatura chegou ao segundo andar e derrubou-me ao acertar meus pés com sua cauda. Ela se jogou contra mim, colocando minha cabeça dentro de sua boca. Eu não conseguia me mexer devido a força exercida sobre meu corpo. Não até uma voz surgir em minha cabeça e eu a repetir suas palavras em voz alta.

— Primum Mobile. (Primeira coisa em movimento.)

O mundo congelou e então se refez. As ações foram desfeitas e como se o filme estivesse sendo rebobinado, as ações se executaram de trás para frente, chegando no estado primário onde a criatura iniciara o movimento. Porém, ela não saia do lugar. Como um Holograma a criatura dava o primeiro movimento e voltava a posição inicial. Esta era a magia! O primeiro movimento agora era meu!

Eu precisava de sol, mas demoraria quatro horas para os primeiros raios. Eu não tinha tanto tempo. Tinha que haver algo no livro para me ajudar. Fiz força. O conhecimento estava incompleto, mas eu tinha de tentar.

— Tempus Fugit. (O tempo voa.) – Erguendo meus braços para o ar eu gritei. O céu, fora de minha casa, pareceu girar como uma esfera em rolamento, deixando os traços esbranquiçados das estrelas no céu e rompendo-as com a esfera solar em sua décima posição.

Era dia. Já eram dez horas.

Com o término da magia eu pude observar as consequências. Com o tempo acelerado eu paguei com a juventude de minhas mãos. Com a pele enrugada, veias entupidas, unhas amareladas e uma tremedeira constante, eu havia envelhecido mais tempo do que pedira para as horas passar.

A criatura saiu de seu estado congelado e efetuou o mesmo salto de antes parando em minha frente e derrubando-me com sua cauda, mas não avançando para cima de mim. Entre nossos meios o sol criava uma barreira contra a monstruosidade. Sua cauda, a única parte que se banhara no sol, chamuscava como um bife derrubado em brasa quente. A criatura resmungou de dor e se afastou, ela pegaria impulso, ela atravessaria a barreira.

— Morituri Te Salutant (Aqueles que estão prestes a morrer te saúdam). – Disse a criatura.

Ela correu e atravessou a coluna luminosa, tendo sua pele pegando fogo enquanto sua cauda era carbonizada pelo contato direto com a luz solar. Eu agarrara suas patas com meus braços e tentava afastar sua mandíbula para longe de meu rosto. Ela era forte e a cada segundo chegava mais perto. Sua saliva azul escorria por entre seus dentes e baforadas quentes de um gás mau cheiroso eram jogadas em meu rosto constantemente. Suas garras cravavam em minha carne, abrindo talhos e fazendo-me sangrar. Ela gostava, isso a motivava.

Eu chorava de medo e raiva. Eu estava perdendo. Se Lorelei não tivesse virado gato provavelmente eu teria, e então esse monstro não estaria nos perseguindo. E em águas claras a solução brotou em minha cabeça. O livro, o mesmo que me amaldiçoara, me dera uma solução.

— Sem terceira opção. – Eu disse entredentes, fazendo força para afastar a criatura. - Tertium Non Datur.

E então, tudo irrompeu em uma fumaça densa e escura que bloqueava toda nossa visão. A criatura desaparecera de cima de mim, aliviando meu corpo que tremia e parecia encolher como uma luneta.

— Lux Sit. (Que haja luz) – Disse Lorelei do outro lado da cortina de fumaça, acendendo-a como pólvora.

Com uma pata sobre o grifo, eu a reconheci em forma de gato. Daquele lado as velas ainda queimavam, enquanto no meu, as velas exalavam o típico perfume de velas apagando. Meu rabo balançou.

— Garota, você está um arraso neste estilo siamês de ser. Pelo todo branco e patas pretas.

Eu não consegui falar. A segunda opção não era eu virar um gato, mas nós duas nos tornarmos.

— Você está bem? Vou dar um jeito de arrumar isso. Pega o Necromotor para mim.

Miei.


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