30 Dias, 30 Contos escrita por kunquat


Capítulo 3
Dia Três – O Fio.


Notas iniciais do capítulo

Opa! Primeiro original dos Trinta.



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Eu o observava. Todo dia eu o observava.

Eu não era a mais popular. Eu não era a mais bonita. Eu não era a mais inteligente ou a mais divertida. Eu não tinha tantos amigos, não saía para festas ou para encontros sexta à noite. A verdade é que eu ficava em casa, agarrada em meus travesseiros enquanto assistia meus desenhos, animes e séries preferidas. Eu não era interessante.

Mas ele? Ele também não. Não era o mais bonito, popular ou inteligente. Não tinha tanto talento e era ridicularizado por seus amigos quando se virava para ir embora. E ele sabia. Ele sabia disso; ele sabia que eu sabia.

Nós nunca conversamos. Mas eu sempre ficava até o término de sua aula para ouvi-lo tocar. Não era o mais afinado, harmônico ou ritmado, mas isso não importava, para mim, o que importava era ele.

Mesmo colégio, mesma turma, mesma idade. Nós éramos colegas desde o ano passado, mas nunca conversamos. Ele, um garoto alto, de cabelos crespos e castanho e olhos escuros. Eu, uma garota baixinha de cabelos lisos e escuros. Nós, tímidos, introvertidos, sem grandes amigos, apenas decididos a aguentar a escola enquanto durasse. Mas o que será que ele fazia para se divertir?

~x~

Eu não era o mais popular. Eu não era o mais bonito. Eu não era o mais inteligente ou o mais divertido. Eu não tinha amigos, não saía para festas ou encontros sexta à noite. A verdade é que eu ficava em casa, deitado sobre meus travesseiros enquanto jogava vídeo-game. Eu não era interessante.

Então, por quê? Por que ela me seguia? Ela não era “furtiva”, era um tanto atrapalhada. Me encarava descaradamente, corava e desviava o olhar. E ela sabia, ela já me vira chorando.

Nós nunca conversamos. Mas ela sempre ficava no colégio após a aula, lendo seus cadernos enquanto eu estudava piano na sala de música. Por quê?

Mesmo colégio, mesma turma, mesma idade. Nós éramos colegas desde o ano passado e nunca conversamos. Ela, uma menina de vestes passadas, focada em seus estudos e fã de criaturas 2D. Eu, um menino, de vestes amassadas, focado em meu mundo e fã de criaturas 3D. Nós, os esquisitos da turma que não falavam ou interagiam e passavam o intervalo comendo um pastel da cantina em um canto obscuro do pátio da escola. O que será que ela pensava?

~x~

Era estranho. Era estranho ter ele todo dia próximo a mim, mas ao mesmo tempo tão distante. Ele sentava na cadeira do lado oposto da sala, próximo a janela, uma fileira para frente, o que me dava uma visão mais do que privilegiada para poder enxerga-lo. Ele não sabia, eu espero. Todo dia ele se perdia em um mundo particular, viajando enquanto olhava para a janela ou balançando a cabeça afirmativamente enquanto olhava diretamente para o professor. Ele era engraçado. Mas naquele dia ele ficou triste e eu não pude ajudar.

Era início do intervalo quando eu cheguei na cantina para comprar meu salgado. Ele já estava lá, sentado em uma das mesas enquanto falava com seus amigos, eu não o vira sair da sala. Enquanto eu permaneci na fila ele ficou conversando com seus amigos sobre suas aulas de piano e outros assuntos sobre terceiros.

Eu comprei meu lanche e o comi sob a sombra de uma palmeira, próximo a escadaria do pátio. Lá eu podia observar as crianças brincando de pega-pega e meus colegas avaliando os outros como uma mercadoria em uma estante. Próximo ao bar eu o vi saindo pela porta, parando e pegando seu celular. Alguns minutos se passaram e ele já não prestava mais atenção em seu aparelho, mas o apertava com raiva a ponto de deixar seus dedos avermelhados.

Ele correu, tão rápido quanto conseguia e desapareceu. O que será que aconteceu?

Eu me preocupei. Pensei em correr atrás dele e dizer que ia ficar tudo bem. Mas. Só que. É que. Eu não.

Eu me levantei cabisbaixa e cruzei o pátio. Coloquei meu lixo em uma das latas e caminhei pelo longo corredor em direção a minha sala. Eu pensei nele. Será que estava tudo bem?

Quando olhei para cima, em direção a porta do banheiro masculino, ali estava ele. Me olhando, com os olhos inchados e vermelhos. Ele segurava um dos braços e segurava o choro na garganta. Uma lágrima escorreu.

Nós ficamos nos olhando por um tempo que pareceu eterno, até ele levantar um de seus braços e secar as lágrimas de seus olhos, entrando novamente no banheiro.

O maior arrependimento de minha vida foi não ter tido reação. Eu queria ajudar, mas não consegui. Droga.

~x~

Era estranho. Era estranho ver uma pessoa todo dia, estar tão próxima a ela, mas estar tão distante ao mesmo tempo. Ela sentava na cadeira ao lodo oposto de onde eu ficava, próximo a janela, uma fileira para trás. Ela devia achar que eu não via, mas como já disse, ela não era muito furtiva. No reflexo do nosso quadro branco eu podia enxerga-la, com o rosto virado em minha direção, me observando enquanto eu fingia prestar atenção nas palavras do professor. Eu não prestava, ela também não. Eu a via rabiscar no seu caderno, mas não as palavras que estavam no quadro ou sendo ditadas pelo nosso professor. Desenhos? Talvez. Ela era uma pessoa interessante. E ela sabia.

 

Eu saí da aula antes do intervalo começar com a desculpa de ir no banheiro e fugi para a cantina onde alguns de meus “amigos” estariam me esperando para conversar. O sinal tocou e, tão rápido quanto, ela chegou, indo para a fila de pedido/pagamento. Nós permanecemos na mesa até depois dela sair, conversando sobre minhas aulas de piano e conversando sobre conhecidos que não estavam mais entre nós.

O intervalo passou, eu lanchei junto deles e levantei antes do sinal com a desculpa, novamente, de ir ao banheiro. Fora da cantina a criançada corria solta e após quase servir de mureta para uma, senti meu celular vibrar. Minha irmã havia me mandado mensagem para passar no supermercado e comprar guloseimas para ela, mas fora a conversa ao fundo que chamara minha atenção. Meus ditos amigos estavam falando sobre mim, achando que eu já estava longe. Xingamentos, rebaixamento, desencorajamento, vergonha alheia, pena, ridicularização. Eu sentira raiva, mas, mais do que qualquer outra reação, eu só queria chorar.

Eu corri tão rápido quanto consegui e cheguei no banheiro, trancando-me em uma das cabines. Eu chorei. Solucei e apertei minha camiseta forte a ponto de deixar marcas avermelhadas em meus dedos. Respirei. Saí da cabine com esperança de não encontrar alguém ali e lavei meu rosto em uma das duas pias do banheiro.

Eu me olhei no espelho, olhos inchados e vermelhos. Balancei a cabeça negativamente e ri, de nervoso. Me dirigi a porta e quando a atravessei, ali estava ela, me olhando, com os olhos preocupados. Ela apertava seu casaco, mexendo os dedos de leve. Uma lágrima escorreu.

Nós nos olhamos por um tempo que pareceu eterno. Eu sequei as lágrimas de meu rosto e voltei para o banheiro. Droga!

O maior arrependimento de minha vida foi não ter tido reação. Ela queria ajudar, mas eu não conseguia dizer, eu não consegui pedir. “Me ajuda”.

~x~

Isso já faz três anos, o metrô balançou. Três anos que me formei e deixei para trás a culpa que sentia, mas não o sentimento que tinha por ele. Onde quer que eu estivesse, que a vida o tenha abençoado com a mais pura felicidade.

~x~

A porta abriu ao som do aviso de cuidado e eu desci do metrô já atrasado. Por que eu estava sempre atrasado? Não adiantava, uma multidão se formou e só a paciência me tiraria daquele lugar. Onde será que ela está? Três anos já se passaram. Eu devia ter falado algo. Por que eu sempre pensava isso?

~x~

Todo mundo desceu com pressa, atrasados para seus trabalhos e entrevistas, mas eu estava calma. Depois de muito tempo, estava voltando para casa. No caminho, subi as escadas rolantes para o segundo andar e me distraí com o cartaz de um novo filme que lançaria este mês. Por estar alheia ao momento, caminhei cega no meio da multidão e me choquei de frente contra um garoto que caminhava na direção oposta, derrubando seu livro no processo.

Pedi desculpas inúmeras vezes e me abaixei para pegar seu livro de capa vermelha cujo o título se lia “O fio vermelho do destino: A história.”. Ele era alto, com cabelos negros e olhos claros. Aceitou minhas desculpas de prontidão e pôs-se a percorrer seu caminho novamente. Eu corei, com vergonha de ser tão distraída.

Depois de arrumar meu cabelo, voltei a caminhar o extenso corredor do metrô. Até parar no meio da multidão e sorrir de forma de estranha. Ele estava ali, sentado em um dos bancos enquanto comia um dos sanduiches da lanchonete em frente.

Ele me viu. Ela acenou. Eu a chamei. Eu me sentei. Parece que nós teremos muito assunto para conversar. Oi. Oi. A gente sorriu.


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