metalinguagem escrita por montilyet, socordia


Capítulo 5
capítulo 4: lily


Notas iniciais do capítulo

estamos de volta! esperamos que vocês gostem!



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Juro por todas as entidades que ousam se preocupar com a bagunça que é o Planeta Terra que, se Alice e Frank inventarem mais um apelido meloso para usarem entre si na minha frente, eu vou gritar. Tudo bem eles namorarem ― Deus sabe que Ali merece toda a felicidade que existe no universo ―, e tudo bem eles quererem demonstrar seu carinho um pelo outro, mas precisa ser tão… excessivo? Talvez seja minha aversão geral por demonstrações públicas de afeto ― resultado, diz a psicóloga da Academia, de minha infância passada na “pobreza material e emocional” ―, e posso estar soando um tanto quanto amarga, mas eu só queria…

Taí, não sei o quê eu queria exatamente. Pelo menos não num sentido profundo e transcendental. Nesse momento, tudo o quê eu quero é que Alice volte a usar sua voz normal e pare de falar com Frank como se ele fosse uma criança. Isso é errado em tantos níveis que não vou nem me preocupar em analisá-los por aqui.

Marls limpa a garganta de forma audível mesmo por cima do barulho do motor do trem, e eu olho para ela com gratidão. Marlene nunca foi melosa com suas namoradas ― Ali pode aprender alguma coisa com ela…

“Estão todos confortáveis?,” quero saber, sacando meu iMac da minha mochila e abrindo-o em meu colo. Estou sentada debaixo da janela da cabine, no chão mesmo, e Panqueca se aninha contra minhas pernas cruzadas em posição de lótus. “Provavelmente não sairemos daqui tão cedo.”

Ali, Marls e Rem concordam com a cabeça em uníssono, olhares determinados em seus rostos. Frank só parece confuso e abriga a namorada nos braços, ajeitando os óculos no rosto em seguida.

“Hm,” ele começa, seu pomo de adão subindo e descendo num movimento frenético. “Lily, por que você parece estar me recrutando para uma seita secreta?”

“Porque é exatamente isso, Frankie-Bear,” Marls arrulha, numa imitação quase perfeita de Ali, que enrubesce furiosamente em resposta. “Não nos force a fazer com que você assine um acordo de não-divulgação.”

À menção da burocracia legal, Frank soergue uma sobrancelha.

“Sou todo ouvidos.”

Eu pego fôlego antes de falar. Vai logo, digo a mim mesma. Faça como se estivesse arrancando um band-aid.

“Frank, eu sou ThePensieve.”

Ele demora visíveis segundos para absorver a informação. Consigo notar de forma distinta o instante em que ele percebe o impacto das minhas palavras ― seus olhos se arregalam, ele lambe os lábios e abraça Ali com maior intensidade.

“V-você? A criadora de As desventuras de Henry Peterson?”

“Estou tentando bastante não ficar ofendida com a incredulidade em suas palavras, Little Flan,” alfineto, rolando os olhos e ajeitando a minha postura. Estou subitamente consciente de que o olhar de Frank está sobre mim, avaliando cada centímetro de minha aparência, passando dos diversos brincos em minhas orelhas para as minhas mãos calejadas de tanto desenhar. “Você está encarando,” advirto-o, estreitando meus olhos.

Ele fecha a boca ― pois seu queixo tinha literalmente caído ― e de novo ajeita os óculos no rosto.

“Agora eu entendo porquê você sugeriu a assinatura de um termo de confidencialidade, Marls,” Frank diz, com uma risada nervosa pontuando as sílabas cá e lá. “A identidade de ThePensieve é o maior mistério da St. Fillan’s desde quem tingiu a água do Grande Lago de rosa.”

Me remexo de forma desconfortável. Eu não gosto da lembrança das dimensões que HP tomou ― dentro e fora da Academia. Minha vida antes do artigo de Rita Skeeter n’O Profeta Diário era mais fácil. Sei que não posso reclamar, porque foram as vendas na loja online que pagaram meu celular, meu computador e a segunda hipoteca em nossa casa. São os lucros que obtenho em cima do sucesso estupendo de HP que vão bancar a minha universidade, e provavelmente o meu primeiro apartamento.

Não é que eu sou ingrata em relação ao fandom. Longe disso. É que HP começou como um hobby, uma coisa entre Marls, Rem, Sev e eu ― uma ideia boba que me veio assim que botei os pés na Academia e que não me deixou em paz até que resolvi desenhá-la. Era divertido e despretensioso, um passatempo, que existia apenas como válvula de escape da minha vida acadêmica corrida e vida familiar desastrosa.

Quando eu criei As desventuras de Henry Peterson, minha intenção passava longe de fazer da HQ o meu meio de sustento. Mas, quase quatro anos depois do primeiro número publicado no site que Marls construiu para mim, cá estamos. Todas as pessoas dessa cabine estão empregadas na manutenção de algum aspecto do site ― menos Frank, mas isso vai mudar em breve.

“E por isso mesmo que você vai ficar de boca fechada, não é, Frank?,” Marls questiona, de forma doce mas definitivamente ameaçadora. “Lily não quer que ninguém saiba.”

Frank faz o gesto universal de quem fecha a boca com um zíper, tranca-a com um cadeado e joga fora a chave.

“Seu segredo está seguro comigo, Lil,” ele promete, e alguma coisa em seus calorosos olhos oblíquos faz com que eu relaxe. Se Ali confia em Frank, eu também confio. “Se bem que não entendo porquê você gostaria de manter isso em segredo.”

Marls e Ali bufam ao mesmo tempo. Levanto meu olhar para Remus, que dá de ombros.

“Nós também não entendemos, sweetie,” sussurra Ali, como quem tem medo de ser repreendida. Lanço para ela um olhar completamente exasperado.

Eu abro minha boca para responder―

“Deixe isso pra lá, Alice,” Remus pede, tentando acalmar os ânimos.

Ali e eu baixamos a guarda e deixamos a discussão de lado. Não quero brigar sobre isso de novo ― não com as minhas amigas, não agora, não quando as palavras de Petunia ainda estão frescas em minha memória e ainda partem meu coração todas as vezes que penso nela.

As meninas só sabem que Petunia saiu do negócio. Não mencionei as coisas horríveis que ela disse para mim, nem mesmo o clima pesado que se instaurou em minha casa durante o verão, que tive de carregar para cima e para baixo como a um cadáver. Meus pais nem olhavam direito para mim, o descaso tão grande que nem se importaram em me deixar de castigo, tampouco gritaram comigo sobre minha decisão. Quando Petunia saiu de casa, eles foram ajudá-la a se mudar e eu fiquei quase uma semana sozinha, trancada no meu quarto escuro, desenhando o tempo todo em que estive acordada.

Mas continuei respondendo as mensagens de meus amigos e a postar os capítulos de HP. Continuei fingindo que tudo estava bem, que nada havia mudado, a não ser por alguns detalhes logísticos que decidiríamos agora.

Lambo os lábios e solto os cabelos, só para ter algo para fazer com as mãos que não seja arrancar minhas cutículas com os dentes até tirar sangue.

“Certo…” Frank rompe o silêncio, sentindo a tensão afrouxar na cabine quase superlotada. “Lils, o quê você precisa de mim?”

“Que você use seus contatos e sua espantosa capacidade empreendedora,” falo, de forma sucinta, tirando uma pasta sanfona enorme de papel craft de dentro da minha bolsa. Estendo os papéis para ele, que lhes aceita com o brilho nos olhos de quem admira um dossiê bem organizado. “Petunia deixou tudo sobre a administração da loja pra trás. Fornecedores, transportadoras, estoques… Até mesmo orçamentos e inventários. Eu conferi, tá tudo bem completo.”

“Pelo menos isso,” Marls suspira, desgostosa, e Ali concorda enfaticamente.

“A Floreios & Borrões faz envios internacionais, né?,” pergunto a Frank, ignorando as duas. A livraria indie da família de Frank e seu desempenho na aula de Matemática Financeira são os motivos pelo qual revelei meu segredo para ele. Sem Petunia, precisamos de alguém que saiba mexer no Excel.

“Sim, mas por ora só para a União Europeia.” Frank faz uma careta. “Se bem que, com o Brexit, não sei em que pé ficaremos…”

Todos nós gememos em uníssono. A bagunça da política europeia britânica é algo que está martelando em nossas cabeças desde a última Páscoa, quando tivemos exames que cobriram o assunto. Além do mais, imigração é um tema muito importante para todos nessa cabine: somos, em nossa maioria, filhos de imigrantes…

Não deixo o foco desviar do assunto em questão, no entanto. Podemos falar mal de David Cameron e Theresa May em breve.

“A nossa esperança é que pudéssemos usar a infraestrutura da Floreios e mesclá-la a loja online de HP.” Respiro fundo e tiro ainda outra pasta de minha bolsa. “Ali e Marls me ajudaram a fazer uma proposta. Todos os papéis estão em dia, os impostos também. Mas imagino que você queira revisar o contrato…”

Passamos as próximas horas esmiuçando os detalhes legais da pseudo-junção da nossa lojinha com a livraria dos Longbottom. No final das contas, anoto todas as correções que Frank sugere no contrato no meu computador, e trocamos os contatos de nossos advogados. Posso dizer, sem sombra de dúvida, que essa é a coisa mais adulta que já fiz na vida, depois de ter registrado HP como minha propriedade intelectual e ter contratado o já citado advogado e um contador para se certificar que meus impostos estão em ordem.

Somos eficientes, até, permanecendo em curso, com o resto da minha equipe levantando questões que passavam despercebidas por Frank e eu. No final das contas, saímos com um acordo que será mais que favorável para ambas as partes. A F&B terá os direitos exclusivos de merchandising de HP, desde que não aumente muito os preços e continue com a proposta de enviar 10% dos lucros a instituições de caridade para crianças carentes e mantenha minha identidade em segredo. Frank fica exultante com a possibilidade porque é exatamente a oportunidade que seu pai queria para expandir os negócios para os EUA.

Quando por fim terminamos, todo mundo se espreguiça como se tivéssemos acabado de percorrer uma maratona. Eu até mesmo escondo um bocejo nas minhas mãos, e descanso minha cabeça nas pernas longas de Rem, que passa os dedos de pianista em meu cabelo, num cafuné descontraído.

Fecho o computador e Panqueca pula no meu colo, exigindo carinho, e passamos os próximos minutos conversando a esmo. Ao levantar o olhar e ver a paisagem através da janela, percebo que já deixamos os arredores urbanos e desbravamos o belo interior da Inglaterra. Não acho que tenhamos chegado na Escócia, ainda, porque ainda falta metade da viagem até Stirling.

“Terminamos?,” Marls pergunta, depois de seu celular cantarolar o toque das mensagens algumas vezes. “Dorcas quer saber se estou livre pra almoçar.”

“É claro,” concordo, com a voz mole, sonolenta por conta do carinho de Remus. Eu amo quando mexem em meu cabelo. “Vai encontrar a sua namorada.”

“Espera aí,” Frank interrompe. Todos os olhos da cabine voltam-se pra ele. “Tenho uma última pergunta.” Gesticulo com a mão para que ele continue, mas Frank limpa a garganta antes de fazê-lo. “Quem mais sabe que Lily é ThePensieve?”

“As pessoas dessa cabine,” enumero aos poucos. “Minha família, e, hm, meu advogado e o contador.” Começo a enrolar uma mecha de cabelo entre os dedos enquanto penso. “Ah, a Madame Pomfrey.” É impossível deixar de fora a enfermeira da Academia que faz as vezes de minha psicóloga não-oficial. “E Severus.”

“Ok.”

“Mas você não pode contar para ninguém, Frankie,” é Alice quem insiste, segurando o rosto do namorado entre as mãos.

Antes que possamos rir do drama desnecessário de Ali, a estática do sistema de áudio do trem anuncia que estamos prestes a ouvir a voz do maquinista. Só que, ao invés da voz granulada do condutor, o quê jorra dos alto-falantes de forma fluída é Never Gonna Give You Up.

O tempo para por alguns segundos e todos permanecem congelados no mesmo lugar. Sou a primeira a reagir ― tiro Panqueca do colo e me ponho de pé.

Eu olho pra Rem. Rem olha pra mim.

“Black,” eu declaro, resoluta, estreitando os olhos.

Remus está pálido, as olheiras debaixo de seus olhos ficando mais pronunciadas.

“Lily, eu…”

“Remus, a gente sabe que você não tem nada a ver com isso,” diz Marls por cima da música, conferindo alguma coisa no celular. Eu concordo com a cabeça. “Vejo vocês mais tarde!,” ela diz, abrindo a porta da cabine e saindo para o corredor, o vai-e-vem do trem batendo a porta contra a fechadura.

Alice e Frank estão cantando junto com a música, e eu preciso apertar meus lábios numa linha fina pra que não me junte a eles. Remus levanta do banco e limpa as mãos nas calças, claramente desconcertado. Entendo o sentimento ― o ano letivo nem começou ainda e já teremos que distribuir detenções! Aperto o braço de Rem em solidariedade enquanto suspiro.

Só queria ter uma viagem de volta a St. Fillan’s sem problemas e sem ter que ficar gritando pedindo por ordem por aí. Já que estamos temáticos, é como diz a música: nem sempre podemos ter o quê queremos. Me pergunto se Black botará Journey pra tocar na próxima, mas fico quieta.

“Eu vou atrás deles,” Remus se prontifica, e logo sai da cabine.

Penteio meus cabelos com os dedos e prendo tudo de novo, me sentindo a própria Violet Baudelaire tendo que sair de mais uma das armadilhas do Conde Olaf. Eu respiro fundo, a mão na fechadura da porta da cabine, e é só quando expiro que saio.

O corredor está apinhado de gente, de todos os anos, todos rindo e cochichando, cantarolando junto com a música. A estática do sistema de som terminou, o quê faz com que eu suspeite que acabamos por perder um anúncio do maquinista; se a música está contida nos vagões reservados aos alunos do St. Fillan’s, isso não é problema, porque descemos na estação final. Mas se a interrupção for no trem inteiro…

Quando penso nisso, percebo que a música mudou, e os arranjos dramáticos entoando um alô à escuridão faz com que eu tenha que sufocar um riso histérico. Vejo Remus mesmo no meio do mar de gente ― é impossível não vê-lo, na verdade, o desgraçado tem quase dois metros de altura ―, juntamente com os cabelos caóticos de Potter, e piso fundo na direção dos dois. Acho estranho Remus ter escolhido justamente Potter para interrogar ― depois de seis anos, dá até pra reconhecer um padrão nas pegadinhas estúpidas que os meninos insistem em pregar, e eu sinto muito mais o dedo de Black nas músicas imortalizadas em forma de memes do que de Potter.

Abro a boca para perguntar onde todos eles estavam nos últimos cinco minutos, mas não tenho chance de falar nada. Severus aparece, os olhos brilhando em satisfação, e eu franzo as sobrancelhas conforme ele quase grita para ser ouvido por cima do burburinho de tantos adolescentes juntos no mesmo lugar.

“Aí está você!” Não gosto desse tom de voz ― é como se eu fosse a serva dele e Severus estivesse me procurando por toda a sua fortaleza medieval para que eu remendasse as suas ceroulas. Ele está sendo flanqueado por Mulciber e Parkinson, os monitores da Sonserina, e eu quase posso sentir a dor de cabeça se formando por detrás dos meus olhos. “Eu vi Potter e seus amigos no corredor logo antes da música começar,” afirma, com um sorriso presunçoso. “Eles eram os únicos aqui fora. Só podem ter sido eles. Tudo isso tem a cara de Sirius Black, não acham?”

Olha, concordo. Essa coisa toda tem a marca registrada Sirius Black, e eu tenho noventa e cinco por cento de certeza que foram os meninos que interromperam o sistema de áudio, mas não saio por aí acusando sem provas. E a palavra de Severus, no quê concerne Black e seus amigos, infelizmente, é o mesmo que nada. Além do que, apesar de ser altamente improvável, eles podem ter estado no corredor por outros motivos ― ir ao banheiro, por exemplo, ou voltando do carro-restaurante.

Por isso, olho para Sirius, que tem postura impecável, os ombros arranjados numa linha rígida. Regulus, o irmão caçula de Sirius, está perto de Severus, acompanhando os movimentos do irmão com interesse. Ergo as sobrancelhas numa expressão inquisitiva, esperando que Sirius se defenda ― e aponte que ele estava tecnicamente impedido de circular por aí porque o seu passe está no bolso da minha jaqueta ― mas ouço novamente a voz de Severus.

“Sorte que eu estava lá, Lily, do contrário tenho certeza que Lupin encontraria uma maneira de encobrir o rastro dos seus mestres.”

Arregalo os olhos diante do comentário. Severus e Remus deixaram de ser amigos próximos há muito tempo, desde que Rem passou a andar com Sirius, James e Peter, mas duvidar da ética inabalável de Rem? Ainda por cima sabendo que isso poderia manchar seu histórico de boa conduta e ameaçar sua bolsa de estudos?

Sinto meu sangue ferver e trinco os dentes.

“Severus,” seu nome é como ácido em minha língua e eu capturo o olhar dele no meu, sustentando-o tempo o suficiente para que ele veja o fogo que ferve dentro de mim, “chega.”

O corredor fica silencioso ao ponto de eu conseguir ouvir o hmmmm watcha say da próxima música e sinto a barriga doer diante do esforço em conter o riso por causa da situação ridícula em que nos metemos.

“Deus,” é Potter quem soa exasperado, depois de apropriadamente esperar a frase icônica terminar, “você não cansa de mentir? Não precisa arrastar nenhum deles para isso. Você só me viu no corredor. Eu fiz tudo sozinho.”

Todo mundo responde essa afirmação com um “ooooh” impressionado, exatamente como se estivéssemos na plateia de alguma sitcom. Eu rolo os olhos e me aproximo mais um pouco, pronta para levá-lo de volta para a cabine e interrogá-lo até que ele nos diga como parar a música.

Mas James Potter não seria James Potter sem mais algumas palavras dramáticas:

“E, sinceramente, eu fiz um ótimo trabalho. Se alguém quiser me chamar pra ser DJ em alguma festa, meu número é 833-”

“Ok, chega,” eu interrompo, dando um tapinha pouco animado no braço dele. Algumas meninas mais novas que nós parecem decepcionadas por perderem a oportunidade de anotarem o número de Potter, e eu me lembro de sua expressão frustrada no corredor, enquanto esperava resposta pras suas mensagens de texto. “Obrigada pelo testemunho, Severus,” digo, de forma polida e distante. “Nós vamos investigar o que aconteceu. Todos vocês, voltem para as suas cabines! Não tem nada pra ver aqui!”

Fuzilo todo mundo com o olhar até que o corredor esteja desocupado, à exceção dos monitores e de Black, Pettigrew e Potter. Eu e Rem nos juntamos aos nossos colegas para discutirmos o quê fazer com James, e, embora algumas preocupações razoáveis sejam levantadas ― e se perdermos algum anúncio importante?, e se a música estiver incomodando os demais passageiros? ―, decidimos deixar que McGonagall lide com Potter. É difícil manter o foco porque todo mundo fica se distraindo com as músicas e cantarolando por debaixo da respiração ― até mesmo eu. No final das contas, me prontifico a caçar Marlene e ver se conseguimos desligar a playlist, e logo encerramos a reunião.

Quando saímos, James, Peter e Sirius estão vermelhos de tanto rir, e demoram a se recuperar para ouvirem o veredicto. Eu tenho que me concentrar em minha respiração para não explodir em gargalhadas junto com eles, e só conseguimos falar depois que Sweet Dreams acaba.

“James, você vai ter que conversar com a McGonagall assim que chegarmos,” Remus anuncia, a voz esganiçada conforme ele segura o riso. “Provavelmente vai dar em detenção.”

Nada que Potter não possa encarar, penso, porque duvido que até mesmo a administração de St. Fillan’s saiba exatamente quantas detenções ele já teve que cumprir.

“E Remus vai ficar de vigia na sua cabine o resto da viagem. Eu sei como ele é suscetível aos seus maus feitos, então não tentem nada, ou vão se ver é comigo,” ameaço, apontando para cada um dos três com a minha melhor voz de monitora. Black faz-se de mortalmente ofendido, mas meu tom parece ter algum efeito nos três, que se acalmam um pouco.

Troco um olhar com Rem, que apenas acena com a cabeça, e começo a fazer o caminho de volta para minha cabine. Quando estou na porta, há a transição de música e não demoro para reconhecer o início de Bring Me to Life. Não consigo conter o sorriso e rio baixinho, virando minha cabeça na direção dos rapazes que já se voltam para sua cabine.

“Ei, Potter.” Tento me manter séria mas duvido que tenha conseguido. “Ótima playlist.”

Mesmo à distância consigo ver seus olhos se arregalando, e qualquer resposta que ele possa ter tentado dar é perdida por Remus puxando-o para dentro da cabine.

Eu estou sorrindo quando volto para dentro da cabine, e quase nem registro Alice e Frank entregues aos hormônios, beijando-se como se não houvesse amanhã. Eles também não parecem registrar bem a minha chegada, e, embora eu limpe a garganta alto e dê umas tossidelas, eles continuam a se beijar, prontamente me ignorando. Panqueca mia em protesto e sobe o banco, deitando-se ao meu lado, insatisfeita por estar sendo negligenciada pela dona.

Dou de ombros e tiro o celular da jaqueta, perguntando se Marls ainda está ocupada com Dorcas. Odeio privá-la de tempo de qualidade com sua namorada, mas ninguém mandou ela ser tão competente com computadores. Aproveito para conferir as mensagens novas de ChudleyCannons, soltando um risinho diante de seus dedos desastrados. Pondero enviar uma piada sobre O Guia do Mochileiro das Galáxias e golfinhos, mas, como não tenho certeza se serei bem recebida, só mando emojis de vários animais em resposta.

A playlist continua em loop. Estou cantarolando baixinho quando a porta da cabine abre e o hijab colorido de Dorcas entra em definição. Ela entra puxando Marls pela mão, sorrindo timidamente para mim e arregalando os olhos diante da demonstração pública de afeto de Frank e Alice.

“Incrivelmente discretos,” eu quase grito na direção do casal que parece ter evoluído o suficiente ao ponto de não precisarem mais de oxigênio só para não pararem de se beijar. “Oi, Dorcas. Tudo bem?”

“Oi, Lil. Tudo ótimo.” Ela desvia o olhar para mim e pisca, estendendo a mão para acariciar Panqueca que instantaneamente começa a ronronar. “Como foi o verão?”

“Ah, você sabe, mais do mes―”

“É, tá, a conversa está ótima,” interrompe Marls, estendendo a mão e me puxando para cima quando a aceito. “Você precisa de mim para resolver um problema, Lils?”

Respiro fundo e aponto vagamente para cima.

“Esse problema. A playlist.”

Marlene acena com a cabeça.

“Vamos conversar com o condutor. Baby, me espera aqui?”

Dorcas concorda suavemente e continua a fazer carinho na gata. Marlene assovia alto e finalmente tira Frank e Alice de seu torpor hormonal e assusta todo mundo. Eles pelo menos enrubescem violentamente e ficam envergonhados, pedindo desculpas repetidamente para mim e Dorcas, mas eu e Marls não ficamos tempo o suficiente para ouvi-las completamente. Já estamos de volta ao corredor do trem e desbravamos o interior do vagão até vermos a cabine dos condutores.

“Vocês já pegaram quem fez isso?,” Marls questiona, ajeitando a roupa antes de bater na porta, de forma respeitosa.

“Potter confessou,” explico, conforme ouvimos movimentação do outro lado da porta. “Disse que fez sozinho.”

Marls ergue as sobrancelhas em resposta mas não diz nada, porque a porta abre com um estalido e um senhor esquálido e alto, com olhos muito azuis e sobrancelhas perfeitas olha para nós. Ele avalia minha jaqueta com cuidado, se prendendo na minha insígnia de monitora, e eu não hesito em vestir meu melhor sorriso conquistador de adultos.

Ele ouve a música, entretanto, e suas sobrancelhas saltam em seu rosto, escondendo-se atrás de seu cabelo grisalho.

“O quê está acontecendo?!,” ele exige saber, a voz estridente e uma expressão fechada no rosto.

“Boa tarde, Sr. Brecken,” cumprimento, depois de ler o seu crachá. “Me chamo Lily Evans, sou uma das monitoras da Academia St. Fillan’s…” Não demoro para esclarecer toda a situação para ele, que rola os olhos quando finalmente termino e peço para entrarmos, para desarmarmos a bomba musical de Potter.

“Crianças…” Ele nem tenta disfarçar a frustração e rispidez na voz, e eu e Marls trocamos um olhar meio desesperado. Sei que a Academia paga uma taxa gorda à empresa de transporte pra que eles façam vista grossa pra esse tipo de coisa, mas ainda me preocupo com as consequências que isso pode ter na minha carreira de monitora.

Não tinha como você saber o quê Potter estava aprontando, eu tento me reconfortar, e começo a enrolar a barra da minha jaqueta nos dedos.

“Brown!,” o Sr. Brecken chama a parceira, que está efetivamente conduzindo o trem. Brown é mais nova que o Sr. Brecken, e mais baixa também, com um rosto assimétrico mas simpático. “Tem música tocando nos alto-falantes dos vagões da Academia.”

“Sério?,” Brown parece entretida, e vira-se para nós com um sorriso. “Estava esperando para ver o quê vocês aprontariam esse ano… A viagem é sempre mais divertida com as pegadinhas dos meninos da St. Fillan’s!”

Que bom que alguém está se divertindo com a situação. Eu e Marls sorrimos sem-graça e damos de ombros.

“Precisamos desarmar as músicas, se não for incomodar,” peço, ainda meio sem jeito. Não acredito que Potter conquistou até mesmo a condutora do trem. Até onde o flerte desse menino consegue levá-lo?! “A minha amiga aqui é muito boa com computadores.”

Marls e a condutora passam os próximos minutos procurando vestígios da inconsequência de Potter, e eu não posso fazer nada além de supervisionar. Não sei o quê elas estão procurando, debruçadas em cima de painéis, teclados e telas, e só sigo as instruções que Marls me dá, como anotar um número e recitá-lo de volta e ir lá fora conferir se a música parou. Continuamos nos trilhos porque o Sr. Brecken assumiu a direção do trem, e a paisagem vai ficando cada vez mais familiar.

Depois da segunda tentativa, a música para. Brown tenta fazer um pronunciamento para o trem inteiro e consigo ouvi-la claramente, mesmo no meio do vagão, onde estou a pedido de Marlene. Ergo meus dois dedões em resposta ao teste bem-sucedido e volto até a cabine das condutoras. Marls agradece a paciência e recebe elogios de Brown, que fazem com que ela morda o lábio da forma que faz quando está envergonhada. Nos despedimos de Brown e do Sr. Brecken com apertos de mão e voltamos a nos encaminhar para a cabine.

É só aí que percebo o bonequinho na mão de Marls. Um pendrive, na forma do Mestre Yoda. Rio pelo nariz e chamo a atenção de Marls para mim.

“Só Potter mesmo pra escolher um pendrive desse…,” brinco, roubando a coisinha das mãos morenas de Marlene. O boneco é cheio de detalhes, e, depois de formatado, tenho certeza que vai estar como novo. Será que Marls deixa eu ficar com ele?

“Olha, Potter pode ter assumido a culpa,” Marlene estala a língua, pensativa, “mas ele com certeza não agiu sozinho. O código que inseriu a playlist no sistema de som não era muito complicado, mas tava além de qualquer capacidade de programação de James Potter, disso eu tenho certeza.”

“Porque todos os nerds de tecnologia de St. Fillan’s se conhecem e conhecem seu modus operandi,” falo, num tom que é um meio-termo entre desconfiado e desdenhoso. E também um pouco perdido, porque eu não entendo lhufas de programação. Mexer no Photoshop pra mim já é mais do quê o suficiente. “Não estamos em Mr. Robot, McKinnon.”

Ela me empurra com o ombro e rola os olhos pra mim.

“Foi você que pediu minha expertise,” me acusa, seus olhos coloridos estreitando-se em minha direção. “E eu estou compartilhando conhecimento de boa vontade.”

“Certo, certo, foi mal. O quê mais você pode me dizer, Detetive?”

“Que dentre os Marotos,” ela enfatiza a última palavra num tom enojado, arrancando risinhos histéricos de mim, “o único que consegue codar é o Black.”

Dou de ombros.

“Potter e Black são unha e carne. Faz sentido ele querer proteger o amigo.”

Especialmente porque eu tenho certeza que Potter sabe exatamente como a situação de Sirius com a administração está por um fio. Lembro que, no fim do ano letivo, McGonagall o chamou de canto e tenho certeza que foi para adverti-lo sobre os riscos reais de expulsão. Potter deve estar em melhores lençóis, principalmente porque não andou caindo na porrada com um aluno mais novo pelos corredores da Academia.

A ausência de música faz com que algumas cabeças despontem das cabines, mas quando olham para Marlene e eu, quase todo mundo acena com a cabeça, como se estivessem entendendo a mesma coisa ao mesmo tempo, e voltam para dentro. Uma dor de cabeça chata começa a querer dar as caras e eu suspiro, frustrada, quando entro novamente em nossa cabine.

Alice está mostrando os mais recentes comebacks de seus grupos de kpop preferidos para Dorcas, que escuta tudo fascinada. Toda vez que Dorcas balança a cabeça ao som da música, as miçangas na ponta de seu hijab fazem um barulhinho que entra em minha cabeça como agulhas afiadas. Alcanço minha bolsa assim que entro (infelizmente tenho que desalojar Panqueca) e tomo um Advil com um gole d’água.

O remédio não demora para fazer efeito, mas me deixa sonolenta. Me aconchego contra a janela e adormeço com uma gata ronronante em meu colo, deixando as ansiedades dessa tarde estressante de lado.


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Notas finais do capítulo

e aí, o quê acharam? lembrem-se que comentários são amor! deixam a gente muito felizinha e estimuladas a escrever mais pra vocês! ♥



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