Além de uma vida escrita por Ania Lupin


Capítulo 20
Belle Lockheart


Notas iniciais do capítulo

Mais um gente! Curiosa pelos comentários ;)



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Ponto de vista de Bella

Primeiro de março – minha coragem para pisar naquele hospital demorara muito a aparecer. Desde o dia quatorze de fevereiro – dia que até agora não sabia se fora bom ou um total desastre – pensava em falar com o antigo médico de minha mãe, mas sempre que discava o número, desligava antes que alguém pudesse atender.

E desde aquele dia, Edward parecia vigiar todos os meus movimentos, mais do que o normal. Várias vezes me peguei pensando se ele havia encaixado as peças e enfim descoberto o que tanto me incomodava naqueles últimos tempos, mas nunca tive coragem suficiente para lhe perguntar – ele também nada dizia.

Mas ontem foi a gota para mim, se passasse mais um dia irritadiça como estava, não iria mais me agüentar. Então naquele domingo, enfim, disquei o número já decorado e esperei até o doutor McCarteny atender.

E agora aqui estava eu, no mesmo hospital que vim com minha mãe inúmeras vezes quando era pequena – hospital que tinha tanta esperança de não precisar nunca mais entrar. Passei reto pela recepção no andar térreo – não precisava de nenhuma indicação, e queria ficar o mínimo de tempo possível naquele lugar. Já havia tomado minha decisão – a única coisa que faria era o exame, para confirmar o que eu já sabia.

Olhei para fora da janela, observando o dia perfeitamente ensolarado. A temperatura havia subido alguns graus naquela segunda, deixando o clima extremamente agradável – foi uma surpresa Edward acreditar na minha desculpa de visitar meus avós, bem num dia de aula, e não fazer questão de me acompanhar.

Andar térreo. Sobe.

Bem, com Alice não tinha sido assim tão fácil. Ela, que já havia feito os exames há algumas semanas atrás, me infernizava quase todos os dias para marcar os meus – não tive alternativa se não contar a verdade, logo depois pedindo várias vezes para o assunto nem ser comentado com Edward próximo.

Saí do elevador no quinto andar, dando de cara com a placa que eu tanto odiava – a mesma que via quando pequena – que revelava a especialidade daquele piso. Um arrepio passou por mim no momento em que vi meu reflexo no vidro da janela, e me forcei no mesmo segundo a virar-me dela. Era tão certo para mim que o resultado daria positivo, assim como a imagem que via refletida era idêntica a mamãe: o mesmo cabelo comprido, os mesmos olhos castanhos, a mesma expressão cansada.

Sacudi a cabeça – tentando fazer todos esses pensamentos irem embora, inutilmente – e andei até o final do corredor, parando na frente de uma porta branca, fechada.

Dr. Ronald McCarteny – Oncologista.

"Edward, o meu filho... meu único filho!"

"Elizabeth, se aca-"

"Eu não vou me acalmar, nunca, muito menos vou deixar uma garota qualquer entrar na vida de nosso filho! Por Deus, ela não tem nada, o pai mal deve conseguir pagar as contas daquele lugar que eles chamam de casa!"

"Isabella?" Saí de minha transe no momento em que senti uma mão pressionar meu ombro – não tinha ninguém naquela sala além do médico tão conhecido, ninguém gritava do lado de dentro.

Edward? Meu Edward? Quem era aquela Elizabeth? O mesmo nome de mamãe... E eu já havia escutado aquilo antes, tinha certeza...

"Isabella, você não veio com mais ninguém?" Foco Isabella, foco. Trazer alguém. E quem eu iria trazer, Alice? Para ela descobrir que eu ficaria igual à mamãe? "Você pode sair dos exames sem condições de dirigir, Bella-"

"Eu passo a noite no hotel aqui ao lado, qualquer coisa." Forcei um sorriso enquanto dizia, tentando não pensar em que explicação arranjaria para meu guarda de plantão se aquilo ocorresse.

Reunindo o pouco de coragem que me restava, entrei na sala, Ronald seguindo logo atrás de mim.

—__

Já conseguia sentir os efeitos do sedativo agindo no meu corpo: estava tudo mais lento, e era como se eu não conseguisse me concentrar o suficiente para formar alguma frase que tivesse coerência. Apenas conseguia olhar para Ronald e responder com a cabeça sim ou não para tudo que ele me perguntava – e as perguntas começavam a fazer menos e menos sentido.

"Você se lembra do nome de seu pai?"

Sim.

"Você tem algum animal de estimação?"

Não.

"Você sabe que dia é hoje?"

"Você sabe que dia é hoje, Belle?"

"Como?" Não sei de onde tirei forças para abrir minha boca – minha voz soara tão estranha.

Mas, Belle... Por que ainda tentava entender aquelas visões?

"Perguntei se você sabe que dia é hoje." Sim, claro – assenti. Segunda feira. Março. Dia dois?

"Já é dia dois, Belle." Aquela voz... "Dez horas, esteja pronta." Edward?

"Isabella?" Meus olhos estavam tão pesados...

"Agora durma, minha Belle. Amanhã tudo será diferente."

—__

Tinha ovos quebrados espalhados por toda a calçada. Meu rosto queimava, e minha coragem de olhar para o homem em quem esbarrara era zero. Por que eu tinha que ser sempre tão desastrada?

"Eu sinto tanto, eu-"

"Senhorita, não-"

"Vou pagar por eles, eu juro, toda essa neve, nem mesmo-"

"Não faço questão que pague por nada, por favor-"

"Nem mesmo vi o senhor, me deixe-"

"Deixe-me ajuda-la a levantar-se."

E uma mão firme, quente, segurou a minha, gelada, antes que eu pudesse objetar. E quando olhei naqueles olhos tão verdes, soube no mesmo instante que estava perdida – meu coração batia ainda mais forte, parecia que saltaria de meu peito a qualquer segundo.

"Senhor, eu-"

"Meu nome é Edward. Edward Anthony Masen."

—__

Estava frio, minhas mãos quase congelavam com aquelas finas luvas que mal as cobriam – a neve que caía não ajudava em nada minha situação. Talvez a única coisa que realmente me aquecesse naquele dia frio de inverno era a promessa de vê-lo ao entardecer.

No bolso do avental que usava, a foto que Edward havia me dado conseguia alegrar a maior parte do meu dia no meio daquela feira. Mas tudo ainda parecia tão irreal – na maior parte das vezes, me pegava pensando se estava ou não louca, se aquilo não era um grande delírio de uma mente perturbada. Como aquele rapaz, da alta sociedade, poderia se interessar logo por mim, a filha de um peixeiro?

"São três dólares, senhor." Disse, entregando o pacote a um homem loiro, alto, de olhos cor de mel.

Guardei as moedas no bolso contrário ao da foto enquanto via meu pai chegar com outros pescadores de mais uma viajem – salmão seria com certeza o jantar daquela noite, e teria que ser perfeito.

Não que cozinhar fosse um problema para mim – cozinhava desde que conseguia me lembrar. O que me fazia ter poucas memórias de minha mãe, Sue, que falecera antes dos meus seis anos – mas as poucas recordações que guardava comigo eram, até meses atrás, as melhores de minha vida.

Nunca tivemos muito dinheiro, mas papai sempre nos garantiu o básico com seu trabalho, e até minha mãe adoecer, éramos uma família genuinamente feliz, apesar das poucas posses materiais. Meu pai, Charlie, sempre dizia: o que importa é o que se sente aqui – no coração –, isso nenhuma quantia compra.

E ele continuava com o mesmo pensamento de antigamente, mas a felicidade desaparecera com Sue. Talvez por isso eu estivesse com tanto medo do jantar daquela noite, jantar no qual eu finalmente apresentaria a Charlie o homem que jurava me fazer feliz até o fim dos meus dias.

—__

"Quando você me disse que traria um convidado-" Mas a fala de meu pai foi interrompida por uma tosse violenta. "Ele é um Masen, Belle." As palavras saíram depois de alguns instantes.

"Eu o amo. Ele me ama também." Minha vontade era a de desabar em lágrimas naquela cozinha. "Um sobrenome importa tanto assim?"

"Você sabe a diferença que isso pode fazer. Filha-" Não...

Não queria ouvir aquilo, não queria acabar o jantar, só queria ele entrando pela porta. Que meu Edward tivesse um sobrenome desconhecido em Ilinóis. Que pudéssemos ficar juntos sem criar qualquer polemica em relação a isso.

"Ele pode me fazer feliz, pai. Por favor, só uma chance."

E uma batida na porta que levou meu coração para a boca interrompeu nossa conversa.

—__

"Você já pensou em como vão ser nossos filhos?"

Filhos? Algo que eu ainda nem atrevia a me deixar pensar! Ele parecia um sonho, tudo aquilo parecia um sonho.

"Imagino que terão os olhos maravilhosos do pai."

"Como se os azuis da mãe ficassem atrás." Senti meu rosto queimar quando ele se aproximou mais, e me beijou na frente de toda aquela multidão – para Edward, era como se houvesse apenas nós dois naquela rua.

"Você pensa em filhos." Minha voz saiu muito mais feliz do que pretendia, e eu conseguia sentir um sorriso se formando nos lábios que beijavam minha testa.

"Eu penso em tudo com você, meu anjo. Eu penso em filhos. Eu penso em nós dois, numa cidade tranquila, morando numa casa de tijolos com um cercado de madeira branco, com um cão no jardim para brincar com as crianças. Eu penso em envelhecer ao seu lado, e penso em tudo isso desde o primeiro dia em que te vi."

"Mas eu vou ficar cheia de rugas, e meu cabelo vai ficar branco-"

"E você ainda vai ser a mulher mais linda de todo o mundo para mim. E não é como se eu não fosse envelhecer também, Belle, bobinha." Mas então, ele era tão bonito – tão perfeito – que não duvidava que mesmo depois de velho fosse deixar de chamar atenção. "O que nós temos vai ser para sempre, anjo."

Como não ficar feliz ao seu lado?

"Para sempre."

—__

E enfim, chegara o dia de conhecer seus pais, e talvez eu nunca houvesse passado tanto nervoso em toda minha curta vida até então. Mas nunca cheguei a abrir a porta daquela casa – os gritos abafados de uma mulher, do lado de dentro, me faziam entender muito bem que não era bem vinda.

"Edward, o meu filho... meu único filho!"

"Elizabeth, se aca-"

"Eu não vou me acalmar, nunca, muito menos vou deixar uma garota qualquer entrar na vida de nosso filho! Por Deus, ela não tem nada, o pai mal deve conseguir pagar as contas daquele lugar que eles chamam de casa!"

Meu futuro marido, parado ao meu lado, olhava para baixo, mãos e olhos cerrados. Sua mão também nunca girou a maçaneta da porta, nós nunca entramos na casa número 10, da Rua Elm, Ilinóis.

Naquela sexta feira, passamos a noite juntos no meu quarto, planejando nossa vida a dois longe daquela cidade.

Vida que nunca chegou a acontecer de verdade.

—__

"E o que vamos ter para o jantar hoje, senhora Masen?" Edward me perguntava, enquanto seus braços agarravam minha cintura. Senhora Masen. Faltavam poucos dias, agora.

"Sorvete de baunilha." Disse sem hesitar, me virando de frente para ele com uma colher de madeira cheia de sorvete.

"Parece delicioso." Ele disse, afundando a cabeça no meu pescoço e inalando profundamente. "Um pouco doce demais, para o jantar." Quando se afastou, seus olhos praticamente queimavam.

Não consegui evitar o rubor nas minhas bochechas – ele conseguia me deixar com tanta vergonha. Quando voltei a olhá-lo, vi o sorriso torto que me deixava sem foco.

"Na verdade o jantar é frango com batatas, que Charlie tanto me encheu para fazer. O sorvete é para a sobremesa."

Ele me encostou na bancada da cozinha, tirando a colher de minha mão.

"Como eu disse," Senti um dedo contornar meus lábios, espalhando um pouco de sorvete. "Parece delicioso."

Então ele me beijou – e segundos depois, comecei a tossir. E a tosse – como a de meu pai – não parou.

—__

Não faltavam muitos dias para Edward completar a maioridade, e finalmente ter acesso as contas que seus avós lhe deixaram de herança – mas eu já estava certa que nunca veria aquele dia chegar. E fingia estar bem ao lado dele – com todo o resto de minhas forças.

E ficar de pé, prendendo a tosse e colocando um sorriso no rosto enquanto preparava o jantar não era uma tarefa fácil – ainda mais sabendo que meu pai saíra para pesca com os mesmos sintomas que eu estava. Ele estava doente, fora dele que eu contraíra o que tinha agora – e esconder dele, com quem eu convivia vinte quatro horas por dia quando não era época de pesca, não fora uma tarefa fácil. Quase impossível, na verdade.

Mas como deixar seu pai descobrir que fora ele, indiretamente, o causador de sua morte?

Já era primavera, Edward estava para chegar, e eu me encontrava ao lado do fogão aceso, morrendo de frio. Foi naquele dia – um dia antes do planejado para fugirmos dali – que eu tomei a decisão mais difícil de toda minha vida.

E na noite seguinte eu não estava no porto, como combinado, mas sim no trem que rumava na direção contrária, para distante daquela cidade, para longe de meu Edward.

Como eu poderia deixá-lo me ver morrer? Como poderia arriscar ainda mais deixa-lo doente também?

Da maneira que havia previsto, a doença tomou conta de mim em poucos dias – eu também parara de lutar –, e no meu leito de morte apenas rezava para algum dia Edward conseguir me perdoar. Mas nunca poderia imaginar que eu, Belle Lockheart, teria a chance de vê-lo novamente, dias depois de minha morte.

—__

"Belle," O homem que eu mais amara em minha vida estava deitado na cama de um hospital. "Volte, Belle!" Delirando. "O que eu fiz de errado para você ir embora?"

Havia o deixado tarde demais, e a única coisa que me confortava naquele momento era que logo teria minha chance de implorar pelas suas desculpas.

Mal sabia eu que aquela oportunidade nunca viria.

"Belle..."

—__

"Isabella." Hum? "Acorde, Bella." Não. Não, agora não! "Isabella, você está tendo um pesadelo, acorde." Era Ronald quem me segurava numa posição sentada, enquanto pressionava um pedaço de algodão contra uma de minhas narinas – sangrando, outra vez.

Ao menos eu tinha nomes agora. Tudo aquilo não era um monte de ilusões, estava tão certa! Era verdade, então, que eu já o conhecia de algum lugar, quando o vi de costas naquele café. Mas o final... o que acontecia no final? Deus, precisava saber!

"Dormi por muito tempo?" Edward. Sempre meu Edward, tão igual! Eu me sentia tão diferente do que vira, mais magra, cabelo mais comprido, não cacheado. Meus olhos agora castanhos. Como eu me lembrava de tudo aquilo, como conseguira?

"Já são oito horas, da noite." Segurei o algodão ensangüentado e coloquei os pés para fora da maca, falhando na primeira tentativa de levantar. Maldita hora que resolvi pular o almoço.

"Alice vai me matar se eu não der notícias logo." Daquela vez consegui ficar de pé.

"E você está em condições de dirigir?"

"Só preciso comer alguma coisa antes, e então chego em casa até a meia noite." Forcei um sorriso – aquilo já estava se tornando uma mania –, enquanto procurava pela chave do carro em minha mochila, que avistara na cadeira ao meu lado. "Ronald-"

"Não é perigoso dirigir sozinha a noite?"

Ele não precisava nem responder minha próxima pergunta – ficou tudo tão claro quando o olhei nos olhos, que meu sorriso forçado se transformou em espontâneo. Mas não podia deixar de confirmar.

"Me fale o resultado, por favor."

Não repetiria o mantra de sempre em minha cabeça daquela vez: negativo, negativo, negativo. Aproveitaria aquele pouco tempo do melhor jeito possível – bem, ao redor de todos que amo, como uma pessoa normal. Ninguém descobriria antes do tempo, e eu não fugiria de ninguém como fugi em minha provável vida passada.

Estava conformada, não estava? Então por que, mesmo assim, doeu tanto ouvir aquela resposta?

"Foi positivo, Bella. O resultado foi positivo."


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