Vida após a Morte escrita por Caty Bolton


Capítulo 1
Por que o Pip não tá no Céu?




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Pip morreu esmagado como um inseto.

Foi muito mais rápido que a mente do jovem britânico era capaz de processar e, apesar de ser culpa de um robô gigante, foi muito menos doloroso do que poderia ter sido em alguma outra situação, com uma morte diferente. Não que conhecesse alguma outra forma de morrer e depois disso também não teria a oportunidade. Quer dizer, a sua cabeça tinha sido esmagada antes de qualquer outra parte, perdeu a consciência bem antes do seu corpo virar aquela bagunça de carne, órgãos e ossos, que não lembrava nem de longe alguma coisa que, algum dia, já foi humana. O sangue estava por todo o asfalto. Como uma criança de doze anos de idade podia ter tanto sangue?

Não conseguiu encarar os seus restos por mais que cinco segundos sem ter vontade de vomitar, Deus, era grotesco demais. Pip olhou ao redor e a primeira estranheza que chamou sua atenção era que não haviam muitas cores, apenas preto, branco e cinza. Na realidade as casas, o asfalto e o céu – espera, não tinha realmente um céu, apenas uma imensidão vazia de branco acima de sua cabeça – não pareciam muito reais, mas ainda sim extremamente detalhistas, como desenhos feitos a lápis e, olhando com mais atenção, não havia preto ou cinza, apenas diversos tons de grafite diferenciando os detalhes de um desenho gigantes com e, estranhamente, com três dimensões.

Olhou para as próprias mãos, estavam normais assim como a poça de sangue estática no chão desenhado. Havia algo errado, as sensações, pensou enquanto fechava as mãos em punhos, o cheiro, aquele cheiro horrível de sangue. Era tudo real demais, conflitante demais com a paisagem ao redor. E Pip não se sentia morto. Respirava e sentia seu coração bombeando sangue para o resto do corpo, nada disso era o que imaginou que estar morto fosse. Não podia ter morrido! Aquilo tudo não passava de um sonho, sim, apenas um sonho – ou pesadelo. – mais bizarro e real da sua vida.

Por que não havia acordado?

Respirou profundamente e deu um passo para trás, não escutou som algum, então outro enquanto encarava, pelo que achava ser a última vez, o monte de carne por breves instantes. Deu as costas para a cena grotesca e correu na direção contrária. Se aquilo era mesmo um sonho e Pip já sabia que estava dormindo, por que não havia acordado? De repente encheu-se de medo. E correu, o máximo que suas pernas magras aguentaram, correu sabe se lá quanto tempo para longe, mas nada mudou. A mesma rua, os mesmos desenhos, se repetiam de novo e de novo. Ao menos não viu, para nenhum dos dois lados, nem sinal de sangue.

Esse foi o seu momento de alívio, os segundos em que pode limpar o suor do rosto com o casaco vermelho e fechar os olhos, respirando de um jeito barulhento e profundo, cansado. Por um segundo até mesmo apoiou as mãos nos joelhos, pois suas pernas estavam doendo de um esforço que não era acostumado a fazer...

Mas endireitou a postura relaxada tão rápido quando adquiriu e, com a cabeça erguida, subitamente abriu os olhos pois sentiu que estava pisando em algo, algo a mais. Então, de repente, o cheiro de ferrugem subiu, muito mais intenso que antes. O medo voltou e Pip sentiu vontade de chorar, vontade que não conseguiu reprimir. Abaixou o rosto, devagar, e viu seus sapatos afundando no meio da mistura disforme de restos mortais – dos seus restos mortais. Era estranhamente molhado, parecia estar pisando em um monte de carne moída, so que haviam pedaços de osso no meio.

Encarando aquela cena com os olhos arregalados e as mãos tremendo, demorou longos cinco segundos para a ficha cair. O vomito quis subir pela garganta e o loiro só teve tempo para andar para trás, tropeçando nos próprios pés, cair no chão e se virar para o lado antes de colocar tudo do estômago para fora. Mais uma vez o seu corpo pareceu vivo demais para quem estava morto, o gosto do suco gástrico estava especialmente desagradável, ácido, mas essa não era nem de longe a maior preocupação de Pip.

Aquela sensação de estar vivo, de alguma forma, deixava a certeza de que tinha morrido ainda mais real. Lembrava perfeitamente da sua morte e duvidar disso com seus restos mortais bem embaixo dos pés – literalmente. – não fazia sentido. Nada daquilo fazia o menor sentido. O loiro se arrastou para longe da poça de sangue, seus sapatos estavam sangrentos, e sentou-se de pernas cruzadas.

O único som do ambiente vinha do choro do menino e quando ele parou o silêncio se tornou avassalador. As vezes Pip olhou para o seu próprio corpo, outras vezes para suas mãos e em alguns outros momentos para cima, para o vazio imenso de branco. Tentou se aproximar das construções, tocar, abrir portas ou até quebrar janelas, mas elas realmente não passavam de desenhos em uma folha de papel. E quando não tinha mais nada para tentar, apenas se deitou no chão e tentou dormir. Era estranho que não sentisse fome, sede e nem sono. E era ainda mais desconcertante que não tivesse nada para fazer.

Pip nunca entendeu a expressão silêncio ensurdecedor, parecia algo fora de alcance, fora da realidade, era impossível que o silêncio deixasse alguém surdo. Mas aquele silêncio definitivamente não era parecido com nada que já tivesse passado em vida, sentia como se fosse algo que sufocava, um peso. Era ensurdecedor. Tentou contar os minutos, mas sempre que chegava em sessenta segundos simplesmente recomeçava ou perdia a conta, o tempo não era uma variável importante onde estava, assim como a distância. Não fazia diferença. E por causa da falta de noção de tempo, depois que desistiu de falar, Pip não soube dizer quando começou a escutar aqueles sons.

Sons que vinham de dentro. Não identificou no início o que eram as batidas rítmicas, que nunca paravam, ou aquela leve corrente de ar. Não fez nada para tentar entender a princípio porque finalmente escutar alguma coisa, depois de só Deus sabe quanto tempo, era um alívio. Mas depois os barulhos, aos poucos, ficaram altos demais e Pip só entendeu de onde eles vinham quando colocou a mão no lado esquerdo do peito. Estava escutando o seu coração batendo como se ele estivesse ligado em um par de fones de ouvido, havia ficado no silêncio por tanto tempo que seus ouvidos escutavam literalmente o que vinha de dentro.

Por alguma razão sentiu vontade de chorar e até mesmo aquele choro silencioso estava barulhento demais agora. Por acaso havia descido para o inferno e ninguém lhe avisou? Aquilo era uma tortura. Pip sentia que iria enlouquecer, que já estava louco-

— O que você tá fazendo aqui?

A voz veio de trás, muito mais alta do que deveria ser, e a criança se assustou. Olhou para trás, viu um par de tênis pretos e uma calça preta. Levantou o rosto e viu um casaco preto de gola alta, então o cabelo escuro, mais negro que as roupas, e o rosto familiar com os olhos vermelhos, embaixo das sobrancelhas grossas, de Damien Thorn. O garoto esquisito que não falava há anos, aquele que era o filho do Diabo.

De repente, ficou inexplicavelmente feliz em vê-lo. Pip levantou do chão e abraçou o anticristo, porque finalmente estava vendo outra pessoa, algum rosto conhecido, depois de… Bem, de bastante tempo. Mas o abraço não durou nem mesmo dois segundos, pois logo o outro garoto lhe empurrou para longe, desconfortável e irritado com a repentina aproximação.

Tentando se recompor, logo Pip tratou de se falar:

— Perdão… – Não escutava a própria voz a quanto tempo? Era um pouco esquisito, suas mãos estavam inquietas. – Eu não quis-

— O que você tá fazendo aqui? – Damien interrompeu repetindo a pergunta, impaciente. Ele olhava para o loiro como se estivesse vendo algum tipo de bizarrice.

— Bem companheiro, eu morri-

— Não, disso eu sei. – Grosseiramente, o anticristo lhe interrompeu mais uma vez. Olhou como se não fosse nada, através do loiro, para os restos mortais antes de continuar. – Eu sei que você tá morto. Tô perguntando por que você ainda tá aqui.

A pergunta era um pouco específica demais, principalmente se levasse em consideração que Pip não fazia a menor ideia de onde estava. Por um momento pensou que fosse o inferno, mas também não fazia sentido.

— Eu não sei.

— Ninguém veio te buscar? — Damien, agora, analisava o loiro sem discrição. O jeito que ele chegou perto, olhando para o garoto de cima a baixo, procurando por alguma coisa, foi mais que o suficiente para intimidar.

— Não…

— Isso é diferente.

O comentário havia sido com um tom de voz tão baixo que parecia mais que tinha pensado meio alto demais, com um jogo de palavras interessante, no mínimo. Pip pensou mesmo em perguntar o que estava acontecendo, que lugar era aquele e todas as outras perguntas clichês desse gênero, mas Damien foi mais rápido quando agarrou o seu braço. E, mais uma vez, abriu a boca para questionar o que ele estava fazendo, porém o que aconteceu na sua frente, nas costas do anticristo, foi o suficiente para manter o seu silêncio.

Uma porta brotou do chão, sem apoio nenhum, simplesmente se ergueu no meio do asfalto feito de grafite. Era lisa, branca, com uma maçaneta redonda e prateada. Apenas uma porta comum que apareceu do nada. Pip olhou para o desenrolar da cena, o tempo inteiro, impressionado e assustado, já Damien só se virou para a frente da porta, ainda segurando o loiro pelo braço, quando já tinha tudo acontecido e não parecia particularmente afetado com nada.

— Vamos ver o que tá acontecendo.

Damien não esperou por uma resposta para aquele outro comentário, somente, antes que o loiro pudesse falar qualquer coisa, abriu a porta com a mão livre. Do lado de dentro era estranhamente brilhante, o suficiente para uma sombra se projetar atrás dos dois garotos, e parecia ser uma superfície lisa, como uma grande lâmpada fluorescente.

Quando foi arrastado por Damien para passar pela porta, depois que atravessou, um súbito clarão branco cegou Pip.

Levou alguns segundos para a visão de Pip se acostumar com a súbita claridade e reparar que tinha sido deixado para trás por Damien, que caminhava cada vez mais para longe pelo novo ambiente. O lugar era bem diferente de tudo que o loiro viu em vida e, agora, em morte também. Amplo, o chão todo era feito do que parecia ser uma única superfície lisa, sem imperfeições e colorida de tons claros e de um jeito disforme. Haviam também móveis, como cadeiras, mesinhas é um balcão feito do mesmo material do piso na extremidade oposta à que o menino estava. Era um tipo esquisito de recepção e, com exceção de Pip, Damien e da mulher atrás do balcão, estava vazio.

O barulho dos passos de Damien pararam assim que ele se pôs na frente do alto balcão, o qual era apenas uma cabeça mais alto, na frente da mulher que estava do outro lado. Ela era branca, tinha em torno de trinta anos, loira com o cabelo preso em um coque e não sem nada de excepcional na aparência, nada que tornasse ela muito bonita, mas os olhos com íris prateadas eram realmente esquisitos.

— Por que o Pip não tá no Céu?

A mulher não deu atenção imediatamente para Damien, sequer levantou o olhar para ele ou demonstrou alguma reação, a revista que folheava era bem mais interessante, mas, de qualquer jeito, respondeu:

— Olá para você também, Damien. – Ela falou apática, com ironia, antes de realmente olhar na direção do garoto. – Do que você está falando?

Pip já caminhava timidamente para perto quando Damien se virou para chamá-lo, parou perto do balcão e a uma distância considerável do anticristo. Quase lado a lado, dava para notar melhor a diferença de altura entre os dois garotos e como o loiro era mais alto. A mulher lhe ofereceu um sorriso simpático que foi muito bem retribuído.

— Com licença…

— O que um garoto como você está fazendo andando com uma coisa como ele?

— Eu também quero saber. – O garoto demônio rosnou, disfarçado a irritação com um bocado de sarcasmo. Era uma troca gratuita de grosseria, pensou Pip. – Achei ele no meio do limbo, quase perdendo a cabeça, todo mundo sabe o que aquele lugar faz com as pessoas…

O silêncio durou por quase cinco segundos, tempo em que a mulher loira ficou encarando a mais alta das crianças, havia uma curiosidade no olhar dela, como se presenciasse algo incomum. Então ela falou, se dirigindo ao mesmo garoto que encarava, com um tom profissional:

— O seu nome completo e ano de nascimento, por favor.

— Phillip Pirrup, 1998.

Após escutar a resposta ela prontamente se endireitou na cadeira e foi para mais perto do balcão, com um deslizar do indicador na superfície lisa uma infinidade de partículas de todas as cores flutuaram no ar e, depois de três segundos, formaram um tipo de tela que também estava flutuando. A mulher se concentrou em procurar alguma coisa usando três dedos da mão – polegar, indicador e dedo médio – que Pip não conseguia ver daquele lado.

— Você têm tudo para entrar no céu, Phillip – A loira afirmou, de repente confusa com o que via na tela. Olhou para o garoto e depois para a tela de novo, enquanto deslizava o dedo pelo tipo de holograma na sua frente. – com essa ficha nem mesmo não ser mórmon muda isso.

Pip se perguntou o que mórmons tinham a ver com a situação toda, mas não falou nada, e se resumiu a sorrir encarando tudo aquilo como um elogio. Raramente recebia elogios. Damien apenas revirou os olhos, sem paciência.

— Claro que têm esses coelhos mortos, mas-

— O ele já matou alguma coisa?! – O anticristo interrompeu, aquela informação era realmente surpreendente. Encarou o mais alto por um instante, que também olhava de volta, e um sorriso brotou nos seus lábios, um sorriso meio debochado e meio divertido. – Você me surpreendeu mesmo agora, Pip.

— Eu não matei coelho algum! – Quase recuou por causa daquele sorriso, era um pouco intimidante. – N-não diretamente…

— Mas – A mulher chamou a atenção dos dois garotos, falando com um tom mais alto. – têm um problema. – Ela passou a mão pelo holograma, que sumiu no mesmo instante, então olhou para Damien e depois para Pip. – Em você. – Se levantou e cutucou a testa do garoto loiro com o indicador, as unhas eram curta e prateadas no mesmo tom dos olhos. – Na sua alma.

— Perdão? – Um monte de coisas passou pela cabeça do loiro em um tempo consideravelmente curto, enquanto olhava para adulta, confuso. Que tipo de problema teria? Era grave? Deveria ser, ela falou sobre a alma... – O que eu fiz?

— Nada realmente. – A mulher sentou-se de volta na cadeira, com os braços cruzados, e fez um gesto com a cabeça na direção do anticristo. – Mas ele sim.

Então Pip virou o rosto para o garoto do seu lado, que agora parecia igualmente confuso e sem entender o que estava acontecendo, o que ela queria dizer. Damien não deixou que o silêncio durassem nem mesmo dois segundos inteiros, pois logo já estava reclamando:

— Mas o que caralhos eu fiz!?

— Amaldiçoou o garoto.

Nesse momento Damien se calou, pensativo, e Pip continuou olhando ele, esperando uma resposta, uma explicação, que não veio. Sentiu vontade de perguntar o que ele tinha feito, mas no final das contas mantéu a boca fechada. A mulher loira voltou para a revista, como se simplesmente tivesse desistido da situação toda, mas o anticristo não ligou para isso:

— É sobre aquele negócio dos fogos-de-artifício, não é? – Ah sim, disso Pip se lembrava muito bem, e não era uma lembrança muito agradável. Tinha ficado com cicatrizes de queimaduras bem feias nas costas. Logo o garoto continuou, soando um pouco incerto. – Isso é besteira, a intenção não foi amaldiçoar, só machucar…

Pip se afastou um pouco mais de Damien e virou o rosto para frente, as duas coisas eram igualmente desagradáveis, mas ele não demonstrava ter a menor noção disso. De todo modo, o loiro continuou em silêncio.

— Você não conhece nem mesmo os próprios poderes? – A loira riu debochado, sem tirar os olhos da revista e folheou uma, duas vezes. – O Apocalipse vai ser mais fácil do que eu pensei…

— Cala a boca. – O garoto demônio rosnou em resposta, bastante zangado. – Não tem como, sei lá, resolver isso?!

— Não, bem, não que eu saiba. Mas até segunda ordem você condenou ele.

— Desculpe... – E Pip finalmente, depois de bastante tempo, falou alguma coisa. Estava nervoso, com medo, confuso. – O que vai acontecer comigo?

Quando escutou a pergunta, a mulher tirou os olhos da revista e pousou o olhar no britânico. Ela suspirou de um jeito deprimente antes de dar a resposta:

— Você vai para o Inferno, Phillip.


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